MOBILIZAÇÃO

Aborto, o futuro pertence ao "SIM"

Em nenhum país da América Latina, a questão do aborto envolveu tanto a cidadania quanto na Argentina

Brasil de Fato | Buenos Aires (Argentina) |
Debate levou milhares de mulheres às ruas da capital do país
Debate levou milhares de mulheres às ruas da capital do país - Fotos: Suzana Pires

De um lado, as marchas pró-legalização do aborto que adotaram a cor verde. De outro, os contrários, mobilizados principalmente pelas igrejas, com o azul celeste. Foram imensas manifestações, sobretudo as “verdes”. Após vitória na Câmara, a legalização foi derrotada no Senado, em 8 de agosto, pela diferença de sete votos. Assim, só poderá voltar a ser debatida em 2019.

Os conservadores, porém, tiveram uma vitória precária, como observou o senador Michel Pichetto: “O 'não' ganha esta noite, mas o futuro não lhes pertence”. A repórter e fotógrafa brasileira Suzana Pires esteve na Argentina e dá o seu relato pessoal sobre o embate:

Relato:

"Não fui para trabalhar. Queria viver. Estar presente neste momento tão incomum. Mas, uma vez lá, comprometi-me a fazer fotos para que algumas mídias pudessem publicar em tempo real os acontecimentos. Teria que fazê-lo com o celular para enviá-las rapidamente. Fotografei com celular e com minha amiga e companheira câmera fotográfica.

Num certo momento, cheguei a pensar que era muito para lidar ao mesmo tempo: uma cidade e uma cultura desconhecidas; o clima e aquela massa gigantesca de pessoas formada de individualidades que expressam suas diferenças na pintura do rosto, no penteado, nas diferentes cores de seus guarda-chuvas, nos cartazes. Em comum, a convicção de que legalizar o aborto é impedir que as mulheres morram e tirar do Estado o poder de legislar sobre seus corpos!

O símbolo que identifica a todas e todos, e que gera acolhimento, sensação de pertencimento e empoderamento, é o pañuelo verde, no qual se lê: Educação sexual para decidir, contraceptivos para evitar o aborto, aborto legal para evitar a morte.

'E agora estamos juntas'

Mães de braços dados com suas filhas, avós e netas caminham juntas expressando no rosto e na pose para a foto o orgulho desta impressionante união de mulheres de tantas gerações. No canto ou no grito das meninas, a palavra patriarcado, que até pouco pertencia à sociologia e outras 'ias, salta dos livros para a boca e volta como vômito de rejeição à violência de gênero, à dominação dos homens e do Estado.

Ao cantar, gritar e dançar: 'Poder, poder, poder popular.../ E agora que estamos juntas / e agora que eles nos veem / abaixo o patriarcado / vai cair, vai cair. / Acima o feminismo que vai vencer, que vai vencer...', revelam consciência de quem já compreende as estruturas sociais e políticas dominadas por homens ricos e brancos.

Num dado momento do dia, um grupo de meninas olhava para o prédio do Senado e uma delas falou num tom reflexivo: 'Lá estão os 72 que legislam sobre nossos corpos'. E eu vi aquela cúpula como uma torre medieval, mas percebi que aquelas gurias já haviam jogado um pó de trigo branco sobre a invisibilidade do poder!

O que fazer desta energia gerada pela potência deste movimento, agora que a derrota no Senado tornou-se o tema mais forte para a discussão do próximo Encontro Nacional de Mulheres, nos dias 13, 14 e 15 de outubro de 2018.

Por ora, sem a aprovação do aborto legal e seguro, elas têm a si mesmas com as redes que criaram, um número de telefone e o apoio nos momentos de solidão e medo.

Depois de viver esta experiência de estar com mais de 2 milhões de pessoas nas ruas, a Buenos Aires dos meus sonhos românticos e seus locais turísticos (que não pude desfrutar), passa a ser também a referência da luta das mulheres no mundo!

Fotografias, mais que as palavras, são as minhas verdades!"

Edição: Marcelo Ferreira