Histórias

Constituição foi destruída nos últimos dois anos, afirma Bete Mendes

Aos 69 anos, a atriz atuou na luta contra a ditadura militar, foi presa política e participou da fundação do PT

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Bete Mendes na inauguração do Armazém do Campo, espaço de comercialização de produtos da reforma agrária, no Rio de Janeiro
Bete Mendes na inauguração do Armazém do Campo, espaço de comercialização de produtos da reforma agrária, no Rio de Janeiro - Reprodução/Youtube BdF

O Brasil atual versus o Brasil em meio à ditadura militar entre as décadas de 1960 e 1980. Para a atriz e militante política Bete Mendes, esses dois momentos históricos do país se assemelham mais do que podemos imaginar. Se os 21 anos de repressão dos militares foram marcados pela luta popular em busca da redemocratização, sobre os dias de hoje, Bete é enfática: vivemos um "arremedo de democracia".

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Lado a lado com os 50 anos de carreira no teatro e na televisão, a atriz, hoje com 69 anos, carrega longa trajetória na militância política. Participou da fundação do Partido dos Trabalhadores (PT) na década de 1980, foi presa e torturada nas celas da ditadura militar brasileira, atuou ativamente da luta pela redemocratização – inclusive cumprindo dois mandatos como deputada federal – e assistiu de perto a formulação da Constituição Cidadã de 1988, que completa 30 anos de promulgação em 5 de outubro, a qual ela diz que está sendo "desrespeitada de foma violenta".

Bete denunciou publicamente ao então presidente José Sarney a violência praticada pelo coronel Brilhante Ustra que, no ano de 1985, ocupava o cargo de adido militar em Montevidéu, capital do Uruguai. 

A atriz escreveu uma carta à Sarney, suscitando debates sobre a Lei da Anistia. Isso tem mais relação com os dias de hoje do que se poderia imaginar.

"Na Nova República, sonho de ontem, é a realidade palpável de hoje. Mas ela não se consolidará se no atual governo, aqui ou alhures, elementos como o coronel Brilhante Ustra estiverem infiltrados em quaisquer cargos ou funções”.

Amiga dos movimentos populares e sociais e dos partidos progressistas, Bete, formada em artes cênicas pela Universidade de São Paulo (USP), atendeu ao pedido da Rádio Brasil de Fato para uma conversa sobre história, política e trajetória pessoal.

Confira, a seguir, a entrevista completa:

Brasil de Fato – A senhora teve dois mandatos como deputada federal, um pelo PT de 86 a 87, e outro pelo atual MDB, de 87 a 91. Quais as lembranças dessa época em que ocupou o poder institucional? O que isso significou na sua vida?

Bete Mendes – Sempre fui militante, desde a época estudantil. Quando fui convidada a ser candidata pelo partido que eu, felizmente e com muita honra, ajudei a fundar, o Partido dos Trabalhadores, não tinha a menor perspectiva disso, visto que eu era uma militante da vida e uma atriz profissional.

Mas, quando aceitei e tive a felicidade de ser eleita, fui para o Congresso Nacional e tive uma revelação, um retrato, uma síntese, do que são as nossas lutas e do que é o Brasil. Nós tínhamos uma representação múltipla e ainda uma Constituição herdada dos atos da ditadura militar, transformada, por exemplo, por todos os atos institucionais da ditadura, e tínhamos uma dificuldade de trabalhar exatamente por essas razões. O que me assustou muito e foi uma grande lição para mim, é que era a síntese da sociedade brasileira, da relação dos trabalhos e do poder, ou seja: os que têm dinheiro e condições, e a classe trabalhadora.

A minha primeira experiência foi excelente. Depois, me reelegi pelo PMDB e comecei os trabalhos da constituinte em um Congresso que se assemelhava ao anterior. Eu conversava com vários parlamentares com mais experiência, e víamos a disputa e a luta interna pelo que a gente achava que tinha que ser mudado de fato e a necessidade dessa constituinte.

Visita de Bete Mendes, quando era Secretária Estadual de Cultura em São Paulo, ao Museu Histórico e Pedagógico Comendador Virgolino e Oliveira, em 1987 (Foto: Divulgação)

A experiência que eu tive nessa época foi muito profunda. Por que eu não continuei na vida política? Até porque eu sempre explicava que a minha função era política, a minha atividade profissional é artística. E essa experiência no legislativo, e depois no executivo, na Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, foram muito ricas para eu entender melhor e poder lutar melhor. 

A senhora foi ativa no processo que formulou a Constituição de 1988, que completa 30 anos neste ano. Acha que nossa Constituição, desde então, foi respeitada?

Lamentavelmente, tragicamente, infelizmente, não. A Constituição Cidadã pode ter alguns defeitos, e naturalmente têm. Uma coisa que na política a gente entende e eu acho que as pessoas que se organizam, conversam e dialogam sabem é que o que vale a pena é a discussão, a divergência, é você não achar nada perfeito. O perfeito só na religião, o céu e o inferno. Na realidade dos homens a gente vai aperfeiçoando.

Essa constituinte que gerou a Constituição Cidadã deu para o Brasil uma condição que ele não tinha antes. E ela está sendo desrespeitada, como eu disse, de uma forma violenta. Diria que nós tivemos, nos dois últimos anos, com o golpe tomando o poder, a destruição da Constituição Cidadã, porque o que já arrebentaram dos direitos que estão na Constituição é algo criminoso, inconstitucional. As leis trabalhistas que foram arrebentadas, as condições básicas de o Estado garantindo a vida, liberdade, moradia, educação, saúde, alimentação, transporte – tudo isso está sendo destruído.

Como foi a luta durante a ditadura pela retomada da democracia brasileira e contra a violação dos direitos humanos cometidas pelos militares. O que isso significou e o que as novas gerações devem aprender com aquele período?

Eu tive a situação histórica de estar dentre aqueles que lutaram, sofreram, foram torturados e muitos foram mortos. E continuamos nessa luta de uma maneira muito consciente. Na época que eu estava no movimento contra a ditadura militar, eu também aprendi muito, porque a vida, na verdade, é uma grande escola.

O que nós lutávamos por liberdade, por condições mínimas de vida, pelo direito mínimo de democracia, nós conquistamos. O que está acontecendo hoje é que tudo isso está sendo destruído numa velocidade brutal. Um exemplo evidente, escancarado e violento para todos nós é o ex-presidente Lula estar preso. Isso é inconstitucional, é um arremedo de democracia e é, claramente, um ato golpista.

Atriz foi presa política por duas vezes na ditadura militar (1964 - 1985) (Foto: Divulgação)

O que eu relaciono dessa época da nossa luta com hoje? Ao mesmo tempo que eles estão fazendo todos esses golpes contra a nossa democracia e a cidadania brasileira, nós temos o movimento nazista com uma cara horrorosa, de uma pessoa que se candidatou, que é deputado, que quer ser presidente do Brasil. Ele clama contra as mulheres, os homens negros, a população indígena, os LGBTs, os direitos trabalhistas, a assistência à infância, contra tudo. É um nazista.

O que mais me assusta nisso tudo não é ele, são os seguidores dele e a mídia que ele tem. Na época da ditadura, nós não tínhamos essa mídia tão desenvolvida como há hoje, mas tinha os canais de televisão, rádio e jornais escritos, revistas, dizendo coisas que eram o que o governo ditatorial impunha. O que me preocupa é que as pessoas se informem. O mais importante é termos informação.

Não podemos admitir que haja uma candidatura de uma pessoa que agora, como quando votou no golpe pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff, cumprimentava o torturador Brilhante Ustra. Se uma pessoa cumprimenta um torturador e acha que tem que dar armas para matar bandido, não pode estar em um caminho democrático e natural. A luta contra a ditadura se reflete hoje da mesma maneira porque, na época, nós tínhamos um governo imposto com os militares, a falta de direitos civis e liberdade de imprensa; hoje nós temos uma liberdade entre aspas, porque estamos tendo cerceamento da informação e da comunicação com os veículos de massa.

Como enxerga o momento político que nós vivemos hoje e a disputa eleitoral que enfrentamos?

Na classe artística, nós sempre nos manifestamos em momentos contundentes, em movimentos organizados. Temos hoje a grande maioria da classe artística que é sensível e tem noção do que é liberdade, condição de trabalho, se manifestando contra o candidato nazista e que preferimos não dizer o nome porque é um nome terrível, e a favor, em grande maioria, do nosso candidato, Fernando Haddad.

Bete Mendes e Gilberto Palmares, deputado estadual pelo PT, no Rio de Janeiro (Foto: Arquivo Pessoal)

Acho que nós temos que votar conscientemente no dia 7 de outubro para presidente, governador, deputado federal, deputado estadual e dois senadores. Alerto para isso porque muitas vezes as pessoas ficam nos executivos, ou seja, no presidente e governador. O legislativo tem uma importância vital, democrática, para que nós possamos, se o nosso voto contribuir para isso, continuar com muita competência a proposta do PT. Para ela continuar, nós temos que ter a maioria na Câmara e no Senado Federal, e da mesma maneira para os estados, com assembleias legislativas com maioria das propostas do PT e dos partidos progressistas juntos, porque são partidos comprometidos com a maioria da sociedade brasileira e com a classe trabalhadora.

Edição: Tayguara Ribeiro