Eleições

Artigo | Como a fala desconexa de Bolsonaro cria unidade contra um inimigo comum

Limitações e deficiências do discurso do presidenciável são, na verdade, sua maior vantagem para unificar eleitorado

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
 Bolsonaro não só tem forte presença digital, mas também pensa e se articula de forma não-analógica
Bolsonaro não só tem forte presença digital, mas também pensa e se articula de forma não-analógica - Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Há perguntas que inquietam o eleitorado que rechaça Jair Bolsonaro: como uma campanha baseada em notícias falsas e com um candidato que discursa de forma tão desconexa é capaz de atrair uma parcela significativa da população? Como grande parte do povo brasileiro foi capaz de aderir a uma plataforma abertamente machista, homofóbica, racista e elitista? O segredo do presidenciável do PSL é justamente esse: ninguém aderiu ao pacote completo.

As supostas fragilidades de Bolsonaro enquanto candidato são, na verdade, sua principal vantagem. Com pouco tempo de televisão e parco volume de dinheiro investido em campanha digital, ao menos oficialmente, a candidatura de extrema direita conta, por outro lado, com uma massa de ativistas digitais. A relação entre a campanha “apócrifa” e a oficial ainda não é exatamente clara. O que mais salta aos olhos, entretanto, não é apenas o método escolhido por ele, mas sim a adequação quase perfeita de forma e conteúdo, e entre campanha digital e sua linha política. 

Seu discurso -- capaz de citar em uma mesma fala um versículo bíblico, o combate à corrupção, a redução da maioridade penal e a questão de gênero – não é linear em termos racionais tradicionais. Não apresenta encadeamento de fatos e análises. Não desenvolve conclusões a partir de premissas. Não estabelece relações de causa e consequência verificáveis. Esse mosaico fragmentado que é sua retórica indica que Bolsonaro não só tem forte presença digital, mas também pensa e se articula de forma não-analógica. 

Com sua narrativa fragmentada, é capaz de amalgamar diversos setores que, entre os cidadãos comuns, não teriam razões imediatas para se relacionar. Por que alguém preocupado com a corrupção deveria automaticamente se associar com a defesa do agronegócio, quando a realidade apresenta diversos indícios em contrário? O modelo de discurso bolsonarista simplesmente elenca uma séria de temas, permitindo que boa parte do eleitorado tenha ao menos uma preocupação compartilhada com sua plataforma. Os outros tópicos são absorvidos de forma secundarizada.

Seu estilo exagerado e “brincalhão”, de forma complementar, cria uma visão tão insólita de mundo que aquele que escolhe um tópico de seu discurso pode desacreditar dos outros, ou ao menos levar menos a sério. Obviamente, ainda que haja em sua fileiras até mesmo neonazistas, nem todo eleitor de Bolsonaro acredita que gays devam apanhar, ainda que tenda a acreditar que os LGBTs são privilegiados.

Realidade

Bolsonaro, que se ampara no medo e no ressentimento social e os estimula, foi capaz de juntar diversos setores sob o signo de um inimigo comum. Trata-se de uma operação ideológica no sentido estrito da palavra. Apesar das significativas melhoras pelas quais o país vem passando desde a redemocratização, em especial nos governos do PT em relação à justiça social, é óbvio que nem todas as mazelas do Brasil foram resolvidas. Para os bolsonaristas, que enxergam um caos social de forma distorcida, é preciso identificar os responsáveis por isso. 

O primeiro culpado, evidente e direto, é o próprio PT. Os outros são as feministas, os sindicatos, os sem terra, o movimento negro e os LGBTs. Setores que tiveram avanços parciais recentes em nossa sociedade. Mas para os bolsonaristas, os historicamente oprimidos são responsabilizados pelos próprios males que denunciam. Os movimentos de negritude, por exemplo, são os responsáveis por criar a divisão racial no país. Os sindicatos, por estabelecer uma cisão entre trabalhadores e patrões. 

Na visão bolsonarista, estes grupos, o inimigo comum, foram beneficiados em detrimento do “cidadão comum” - e “de bem”. Aquele preocupado com o alto índice de homicídios, através desse discurso, passa também a combater LGBTS e feministas pela suposta degradação social generalizada. Aqueles setores religiosos mais sensíveis a “questões morais”, que já combatiam os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e os direitos civis de homossexuais, incorporam também a pauta anti-reforma agrária. É na confusão que tal aliança difusa prospera.

Assim, ao se encontrar culpados pelo que ainda se falta ajustar em nossa democracia se criam também um passado e um presente idílicos, nos quais tais setores não existiram e não existirão: a ditadura militar e o um possível governo do próprio Bolsonaro, que fala em “eliminar ativismos”.

Tópicos

Ao discursar oralmente, Bolsonaro funciona não como um expositor, mas como um perfil de Twitter disparando torpedos. Ou um grupo de WhatsApp onde mais importante que a perenidade da mensagem é seu impacto momentâneo. Um estilo comum a políticos com Trump e Berlusconi. Intuitivamente ou não, foi capaz de operar uma distinção entre a razão científica - argumentativa e lógica – e a razão política radicalizada. A campanha de Bolsonaro se vale de um tipo de coerência que não é o usual. Provavelmente, não será um discurso iluminista capaz de desmontar o todo de sua visão, que beira a teoria da conspiração, o capaz de derrotá-lo no curto prazo eleitoral. 

Assim, neste segundo turno, para os e as interessadas em superar sua plataforma eleitoral, é preciso identificar neste mosaico de interesses diversos que Bolsonaro representa aquilo que, ao ser colocado como prioridade, pode afastar parcela de seu eleitorado de sua candidatura. Uma dica: ele não costuma divulgar propostas para a economia, exceto para desautorizar seus principais assessores. 

*Rafael Tatemoto é repórter do Brasil de Fato

Edição: Pedro Ribeiro Nogueira