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RELIGIÃO

Opinião | As religiões e o fascismo

No artigo dessa semana, o monge Marcelo Barros fala dos erros cometidos pela igreja na busca pelo poder

Brasil de Fato | Recife (PE) |
"É preciso ter coragem de rejeitar essa imagem de um Deus poderoso e cruel e testemunhar que Deus só pode amar"
"É preciso ter coragem de rejeitar essa imagem de um Deus poderoso e cruel e testemunhar que Deus só pode amar" - PH Reinaux

Um jovem procurou o bispo Pedro Casaldáliga e lhe disse: “Eu sou ateu”. O bispo lhe perguntou: “De que Deus, você é ateu?”.

No século VI, o papa Gregório afirmava que conhecia dois tipos de idolatria: a mais banal era adorar a deuses falsos. A outra, mais sofisticada e, entretanto, cotidiana na prática religiosa consiste em adorar o Deus verdadeiro de uma maneira falsa. Na Bíblia, essa ocorreu quando os sacerdotes do templo e o rei Salomão construíram o templo de Jerusalém. Até então, Deus se tinha revelado no deserto, em meio à caminhada do povo hebreu. Deu ao povo a sua lei, o seu projeto libertador, em meio ao fogo de um espinheiro ardente. E sempre quis morar no mesmo tipo de barraca (tenda) na qual o povo nômade vivia. Ao construir o templo, os sacerdotes copiaram as religiões de seus vizinhos e transformaram o projeto divino da aliança em uma estrutura especificamente religiosa. Reproduziram os mesmos tipos de cultos sangrentos com sacrifícios de animais que os cananeus faziam, só que agora oferecidos ao Deus da aliança que nunca pediu nem quis isso.

Assim aprisionaram a Deus em leis cultuais, em exigências de tributos e tabus que dividiam, e até hoje discriminam, as pessoas em puras e impuras, religiosas e profanas, abençoadas e outras abandonadas por Deus e pela religião. Na Bíblia, durante todo o tempo, os profetas denunciaram essa religião dos sacerdotes. Protestaram que Deus chama o povo a viver a fé baseada na justiça e no cuidado da vida dos pobres. Jesus entrou nesse mesmo caminho. Conforme os evangelhos, quando ia ao templo era para exercer a profecia (ensinar) e não para oferecer sacrifícios rituais. Revelou aos discípulos que Deus é Pai (Abba: paizinho) e não um Deus todo-poderoso. Ensinou-os a orar diariamente: Pai Nosso, venha a nós o teu reino (isso é, o teu projeto de um mundo novo). Por isso, ele foi perseguido pelos religiosos da sua religião e foi entregue aos romanos pelos sacerdotes que pediam: Crucifica-o!, Crucifica-o!.

Na sua história, muitas vezes, as Igrejas cristãs substituíram a religião do templo, mas a mantiveram praticamente igual. Aprimorou belos rituais baseados no poder sagrado, mas sem relação com a justiça e o direito. Durante séculos, a Igreja Católica aceitou a escravidão, concordou com as guerras de conquista e a colonização para se expandir e para ter do seu lado o poder político, sempre acreditando estar com isso agradando a Deus. O Concílio Vaticano II veio propor uma mudança nesse projeto. Embora muitos bispos e padres ainda pensem e se comportem assim, essa não é mais a postura oficial da Igreja. Infelizmente, grupos pentecostais herdaram da velha Cristandade o que ela tinha de pior. Agora têm como projeto criar um Brasil pentecostal. A coalizão da extrema direita se declara “Por Deus”.  É esse projeto que está por trás do tal templo de Salomão que Edir Macedo reconstruiu em São Paulo. É o que está por trás da espiritualidade de vários grupos religiosos evangélicos, mas também católicos. E de algumas emissoras de rádio e televisão religiosas.

Foi esse tipo de religião que entregou Jesus à morte. Foram esses religiosos que apedrejaram Santo Estêvão acusando-o de ter blasfemado contra o templo (contra a religião). Foram eles que queimaram na fogueira Santa Joana d’Arc para ficar bem com os ingleses que tinham conquistado a região norte da França. Foram eles que mataram nas inquisições e cruzadas milhares de pessoas em nome de Deus e chamavam isso “auto de fé”.

É preciso retomar o espírito do Evangelho e ter coragem de rejeitar essa imagem de um deus poderoso e cruel e testemunhar que Deus só pode amar e não quer um mundo religioso e sim um mundo justo e fraterno, de paz, justiça e comunhão com a Terra e a natureza.

Na exortação apostólica sobre a alegria do Evangelho, o papa Francisco afirma: “A proposta do evangelho não consiste só numa relação pessoal com Deus. E a nossa resposta de amor também não deveria ser entendida como uma mera soma de pequenos gestos pessoais a favor de alguns indivíduos necessitados, o que poderia constituir uma “caridade por receita”, uma série de ações destinadas apenas a tranquilizar a própria consciência. A proposta é o reino de Deus. Trata-se de amar a Deus, que reina no mundo. (...) O projeto de Jesus é instaurar o Reino do seu Pai: por isso, pede aos seus discípulos: Proclamai que o Reino do céu está perto”. (E. G. 180).  

 

*Marcelo Barros é monge beneditino e assessor de movimentos populares

Edição: Monyse Ravenna