Coluna

Quando a ignorância provoca orgulho

Imagem de perfil do Colunistaesd
Coreografia na Praia de Iracema, Fortaleza (CE), para demonstrar apoio ao então candidato Bolsonaro
Coreografia na Praia de Iracema, Fortaleza (CE), para demonstrar apoio ao então candidato Bolsonaro - Reprodução Youtube
Afinal, não é necessário estudar para ser fascista

Aqueles que observam o fenômeno Bolsonaro de forma mais crítica e, por que não dizer, com certo humor, revelam uma discordância sobre as eleições e a ressaca pós-eleitoral. Um dos grandes nomes da fotografia, o brasileiro Sebastião Salgado, acha que o Brasil “ficou louco”. No seu diagnóstico, o país já dava “sinais de insanidade”, dois anos atrás quando operou um impeachment sem crime de responsabilidade. Quadro patológico que, agora, se agravou. Muita gente também entende que o Brasil não enlouqueceu, mas foi assaltado por um surto incontrolável de idiotia.

Bem, as duas hipóteses não são excludentes. Até porque, tanto a loucura quanto a burrice podem se enamorar do fascismo. Nos dois casos, os sintomas do paciente são similares: negacionismo, intolerância, brutalidade. Para quem sofre as consequências pouco importa se o motor daquilo é demência ou disparate.

Os italianos, que conviveram por décadas com o fascismo, primeiro apaixonadamente e depois com uma raiva que acabou dependurando Mussolini num gancho de açougue, sempre gostaram de discutir o assunto.

Federico Fellini, por exemplo, tratou dele no cinema e numa antiga entrevista ao El País, da Espanha. “A época do fascismo elevou a imbecilidade ao nível de pensamento político”, comentou o diretor. Para nós, 73 anos após a derrota do fascismo de Mussolini, é uma descrição que parece bem familiar, não?

Outro italiano, Umberto Eco, notou que, sob o prisma fascista, “pensar é uma forma de castração”.  O escritor e filósofo explicou que, por isso mesmo, a cultura é suspeita na medida em que é identificada com atitudes críticas.

“Foram tempos em que caía bem apresentar-se como ignorante”, agregou Fellini. O que nos aclara outro ponto: numa sociedade regida pelo fascismo, a cultura não só é suspeita como deplorável. Mais vale cultuar o corpo do que o espírito. Na Itália fascista, reparou Fellini, todo mundo se pôs a fazer ginástica e os músculos, desde logo, ganharam mais importância do que o saber. Para ele, “o fascismo foi triste porque fez com as pessoas se tornassem estúpidas e más. O italiano, em geral afável, despreocupado e generoso, tornou-se venal e instável”.

Logo, se a cultura é suspeita, cultiva-se a ignorância. O que Fellini e Eco testemunharam, na Itália fascista, reproduz-se em Pindorama. Aqui, turbinado pelas fake news que fazem vítimas aos milhões e instantaneamente. Sob bombardeio, figuras antes até doces, transformam-se. Convertidas, buscam a verdade que mais se adapta a sua transformação. Da cogitação partem em velocidade de trem-bala para a convicção sem um pit-stop na reflexão.

Então, fica mais fácil entender a existência de pessoas que, ainda hoje, acreditam naquela montagem da capa da revista Forbes apresentando Lula como o sujeito mais rico do país. Ou que o ex-presidente também é dono da Folha de S. Paulo. Juram que Dilma importou 50 mil haitianos para votarem nela em 2014. É a mesma massa que, em 2018, acreditou na existência do kit gay e que Haddad distribuiu mamadeiras em formato de pênis. Muitos professam a teoria da terra plana. Aos terraplanistas juntam-se os criacionistas e os que rejeitam a vacinação, expondo suas crianças a doenças que podem ter consequências trágicas.

Nenhuma dessas tolices – e dezenas de outras -- é admitida em voz baixa, quase em sussurro, em particular. Muito pelo contrário. São gritadas para o mundo na rua, no whatsapp, no facebook, no instagram, nas caixas de comentários.

Há uma espécie de orgulho de ser burro. Como escreveu um amigo, é a “burrice-ostentação”. Algo que não exige maior esforço. Afinal, não é necessário estudar para ser fascista. É uma ideologia absorvida mais pelo emocional do que pelo racional. Mais pelos bíceps do que pelo cérebro. E, para azar do Brasil, muito mais vem a caminho.

 

* Ayrton Centeno é jornalista. Trabalhou, entre outros veículos, no Estadão, Veja, Jornal da Tarde e Agência Estado. Documentarista da questão da terra e autor de "Os Vencedores" (Geração Editorial, 2014) e “O Pais da Suruba” (Libretos, 2017), entre outros livros.  

Edição: Cecília Figueiredo