Mais Médicos

A perda de médicos cubanos será uma catástrofe sanitária, diz médico

“Essa atuação irresponsável do futuro presidente está colocando a vida do nosso povo em risco”

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Médicos cubanos assumiram o atendimento em locais do País que brasileiros não preencheram vacância
Médicos cubanos assumiram o atendimento em locais do País que brasileiros não preencheram vacância - Foto: Reprodução / Araquém Alcântara

Em entrevista ao Brasil de Fato e ao portal Saúde Popular, o médico de Família e Comunidade Thiago Henrique Silva classificou como “catástrofe sanitária” a perda de médicos cubanos do Programa Mais Médicos no Brasil.

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Ele acredita que haverá aumento da demanda por atendimento nos prontos-socorros e unidades mais próximas dessas que perderão os profissionais estrangeiros. “Vamos deixar de ter médicos que estão cumprindo carga horária de 32 horas por semana nas unidades básicas de saúde, em lugares remotos do Brasil, onde não havia assistência à saúde”, enfatiza o integrante da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares (RNMMP).

Crítico às falas do futuro presidente Jair Bolsonaro (PSL), responsável pela decisão do governo cubano de abandonar o Programa Mais Médicos no Brasil, Silva desmistificou o funcionamento do convênio, realizado pela Ilha com outras 66 nações no mundo.

Mestre em Saúde Pública pela USP, ele lembrou que o governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB, 1995-2002) lançou mão da contratação de médicos cubanos em 2001 para garantir atendimento no Tocantis, sem a ideologização observada agora. Em sua opinião, a proposta da “Carreira de Médico de Estado” é contraditória e não será viabilizada pela política econômica defendida pelo presidente eleito e seu ministro da Economia, Paulo Guedes.

Quanto à substituição imediata dos mais de 8 mil profissionais cubanos, por meio da Lei do Serviço Militar, conforme consta do programa de governo de Bolsonaro, Silva lançou um desafio aos colegas: “espero que aceitem a convocatória para fazer atendimento nas comunidades ribeirinhas, quilombolas, no interior do País, nas periferias dos grandes centros atender ao nosso povo; torço para que nosso povo não sofra”.

Confira trechos da entrevista:

Brasil de Fato -- O que significará para a vida da população, principalmente a que mora nas periferias, locais mais distantes onde há uma resistência de fixação dos médicos brasileiros, a saída dos mais de 8 mil profissionais médicos do Programa Mais Médicos?

Thiago Henrique Silva – Uma catástrofe sanitária. Não estamos falando que as pessoas não terão receita renovadas [prática comum em postos de saúde], vamos deixar de ter médicos que estão cumprindo carga horária de 32 horas por semana nas unidades básicas de saúde, em lugares muitas vezes remotos do Brasil, onde não havia assistência à saúde.

O que iremos ver no concreto, por exemplo, serão as filas dos prontos-socorros aumentarem, as unidades [básicas de saúde] próximas desses serviços onde os médicos cubanos serão desalocados terão aumento da demanda. Teremos uma catástrofe sanitária. Essa atuação irresponsável pelo futuro presidente está colocando a vida do nosso povo em risco.

Em nota, o Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems) e a Frente Nacional de Prefeitos (FNP) apelaram para a manutenção dos profissionais cubanos no Brasil sob risco de faltar atendimento à população. No último edital do programa cerca de 900 municípios apresentaram adesão ao Mais Médicos...

As duas entidades sempre estiveram à frente da pauta do acesso à saúde, porque o secretário de saúde do município é o mais cobrado pela população no cotidiano, pela falta dos equipamentos de saúde. Em 2011, tivemos uma portaria do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) que fez uma limpeza no preenchimento de superposições.

Um médico que tinha de cinco a oito vínculos públicos de 40 horas semanais, com vários municípios da região. Esse médico não cumpria a carga horária em todos os municípios, passava pouquíssimas horas em cada município e fazia aquelas consultas de renovação de receita.

Quando ocorreu a renovação do CNES, a gente descobriu que um médico não poderia ter mais que dois vínculos públicos, ou 100 horas no máximo [semanais], e não 320 horas. Aí abriu-se um vácuo. Tínhamos 700 municípios no Brasil sem um médico. Daí, a Frente Nacional de Prefeitos e o Conasems lançaram o movimento “Cadê o Médico?”.

Portanto, eles [entidades] sabem como é o cotidiano. Estão fazendo pressão ao futuro presidente, e, a princípio, Bolsonaro não parece preocupado com essa questão.

Como funciona o convênio Brasil-Cuba para o Programa Mais Médicos, incluindo essa questão do salário do profissional cubano, que uma parte vai para o governo cubano?

Nessa questão mora muita desinformação. Cuba tem uma empresa que se chama Empresa Cubana de Serviços Médicos, uma estatal que gerencia serviços médicos no Brasil e em outros países.

Há a cooperação com países vítimas de catástrofes, como na passagem do furacão Katrina (2005), o terremoto no Paquistão, as catástrofes no Nepal, no Haiti, do Ebola na África. Vários países mantinham essa cooperação nos termos da solidariedade. Alguns desses países observando essa atuação iniciaram acordos com Cuba, porque precisavam de médicos para atender, e aí ofereciam contrapartida a Cuba. Na Venezuela, quando houve a saída de vários médicos, no início do governo Hugo Chávez, o país oferecia a Cuba petróleo e Cuba seu apoio na medicina.

Trata-se de uma Ilha pequena, que está sob embargo econômico desde 1959, embora hoje apenas Estados Unidos e Israel se mantenham favoráveis ao bloqueio na Assembleia Geral da ONU, mas ela segue impedida de fazer comércio com o mundo. Portanto, a força de trabalho médica, formada na Ilha, é o que pode oferecer nos acordos econômicos.

Quando é lançado um edital, os profissionais médicos de Cuba assinam um contrato, sabem quanto é o salário. O governo brasileiro paga para a estatal que realiza os contratos com os profissionais cubanos.

A "diferença salarial" é uma forma de financiar a saúde e a educação para todos os cubanos. Todos os direitos são assegurados [pelo Estado] às famílias dos médicos e dos demais cubanos. Há pobreza, mas não há a desigualdade que existe no Brasil. Aqui, temos crianças voltando a morrer de diarreia, o que não ocorre em Cuba.

Os profissionais cubanos recebem em torno de 3 mil reais livres [pelo programa federal] e os municípios que receberam esses profissionais garantem moradia, transporte e alimentação.

Como os médicos cubanos ajudavam a efetivar o SUS?

Se o posto de saúde está estruturado lá, mas não há uma figura de jaleco branco, como querer que a população respeite o SUS? [Atuação do profissional] é uma forma de efetivar o SUS, na prática.

O primeiro edital do Programa Mais Médicos não foi dirigido à contratação de médicos cubanos. Foi para médicos brasileiros e não foram preenchidas todas as vagas, principalmente as mais distantes.

Existe a possibilidade de prefeituras manterem os médicos cubanos no programa, de forma independente?

O Brasil já teve, quando José Serra era ministro da Saúde, médicos cubanos; os estados podiam fazer convênios diretamente com a empresa estatal. Entretanto, se o próximo governo alterar a lei essa alternativa pode ser inviabilizada.

A grande questão é que para Bolsonaro essa é uma questão ideológica. Bolsonaro sabe que não vai recuperar a economia do Brasil com a agenda do Paulo Guedes [futuro ministro da Economia], que promoverá arrocho à classe trabalhadora, e ele está tentando colocar cortinas de fumaça, Escola Sem Partido e o Mais Médicos, para blindar ideologicamente o governo que nem nasceu e já está produzindo tantos retrocessos ao povo brasileiro.

O presidente eleito votou contra o Mais Médicos, entrou com representação no STF questionando a constitucionalidade do programa, votou em favor do congelamento dos investimentos em áreas sociais como a saúde, Emenda do Teto dos Gastos. Como fará para fixar médicos nas periferias e locais de difícil acesso? A convocação de médicos, como estabelece a Lei Militar e consta de seu programa de governo, pode ser uma saída?

Espero que os médicos brasileiros tão críticos ao Mais Médicos, assinem essa convocatória. Estou lançando o desafio para que todos os colegas, que um dia depreciaram o Mais Médicos, aceitem a convocatória para fazer atendimento nas comunidades ribeirinhas, quilombolas, interior do País, periferias dos grandes centros. Torço para que o nosso povo não sofra. Esse é um apelo do ponto de vista civilizatório, por se tratar de um retrocesso civilizatório a gente perder esses médicos [cubanos].

Mas, eu não acredito que esse chamado [convocação] tenha um alcance amplo, porque já foi demonstrado na história do Mais Médicos, não estamos inventando, que em regiões distantes do Brasil, os médicos brasileiros não se fixam. Não se fixavam antes e nem durante o programa.

E sobre a Carreira de Estado?

Quanto à carreira do Estado, poderia ser uma alternativa caso o ministro da Economia não fosse o Paulo Guedes, e Bolsonaro não tivesse votado a favor da Emenda Constitucional 95. Quando presidi a Associação Pernambucana dos Médicos Residentes, defendíamos a Carreira de Estado para todos os profissionais de saúde - porque saúde se faz com médico, enfermeiro, psicólogo, terapeuta ocupacional, fisioterapeuta -, porém ela confronta a Lei de Responsabilidade Fiscal, elaborada no governo Fernando Henrique Cardoso e que Bolsonaro defende. O projeto da Carreira de Estado impõe a ampliação do orçamento da saúde, o que Bolsonaro é contra. É uma contradição!

De toda forma, a Carreira de Estado não vai chegar nem perto do alcance do Mais Médicos, por conta da política econômica que Bolsonaro e o seu ministro da Economia defendem.

Embora se diga que aumentou o número de médicos no Brasil, 23% em sete anos, conforme levantamento do Conselho Federal de Medicina, há um descompasso na distribuição, não? O DF registra 4,35 médicos por mil habitantes – média da Suíça –, enquanto no Maranhão são 0,87 médico para mil habitantes. Como equalizar isso?

Não tenho ideia de como será. O que tenho certeza é que a carreira de médicos, defendida pela corporação, não conseguirá avançar nessa política econômica.

Hoje já temos uma proporção de médicos melhor do que havia anos atrás. Para se ter uma ideia, a categoria médica era a única no Brasil que gozava de pleno emprego. Existia mais vagas de empregos para formandos do que formandos. Esse cenário está mudando aos poucos, pois tivemos uma política dentro do Mais Médicos, que garantia ampliação das vagas de medicina, ampliação das vagas de residência médica de todos os programas estratégicos para o SUS.

O Mais Médicos criou uma expansão de vagas de universidades também. Durante os governos progressistas tivemos a maior criação de vagas em universidades públicas; criação de muitas universidades públicas em locais muito distantes, que o mercado não tinha interesse de investir.

Mesmo com esse aumento do número de médicos, vai faltar profissionais médicos, principalmente em regiões mais distantes, Maranhão é um exemplo. Como acabou com o investimento em residência médica, esses profissionais vão migrar para os grandes centros urbanos.

 

Edição: Diego Sartorato