Consciência negra

Se queremos mudar o mundo, deve ser a partir da luta antirracista, diz Mireille Fanon

Professora, filha de Frantz Fanon, analisa como a escravização das populações negras foi a base do sistema capitalista

Brasil de Fato | Acra (Gana) |
Mireille é filha de Frantz Fanon, importante intelectual, psiquiatra e militante negro
Mireille é filha de Frantz Fanon, importante intelectual, psiquiatra e militante negro - Rute Pina

O fato de o capitalismo ter sido forjado na escravização impede Mireille Fanon Mendès-France, professora da Universidade Paris Descartes, de separar a análise da luta de classe dos movimentos antirracistas.

“Se queremos mudar o mundo, deve ser a partir da questão da racialização, porque o mundo se organiza a partir disso”, afirma a professora, que esteve no Brasil em 2015 como consultora do grupo de trabalho da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre afrodescendentes. “Se as pessoas entenderem que o capitalismo se constrói a partir da desigualdade e da racialização de uma parte da população, mudaremos a mente das pessoas”, completa.

Mireille é filha de Frantz Fanon, intelectual, psiquiatra e militante negro nascido na Martinica, uma pequena ilha do Caribe colonizada pela França. A obra de Fanon, com livros como Os Condenados da Terra e Pele Negra, Máscaras Brancas, foi central para o pensamento negro no século 20. Hoje, ela organiza e dissemina o legado do pai presidindo a Fundação Frantz Fanon.

Na semana da Consciência Negra, o Brasil de Fato publica os principais trechos da entrevista que Mireille concedeu em Gana, em agosto, quando participou do III Seminário Pan-Africanismo Hoje.

Confira os principais tópicos abordados na entrevista.

Neocolonialismo

Não tenho certeza se temos que falar em neocolonialismo. Algumas pessoas querem mostrar como uma nova forma de colonialismo, mas eu discordo.

A base do colonialismo continua e se expressa na forma como os países africanos estão sendo invadidos por transnacionais e também pela indústria canadense de mineração extrativista. Isso também se expressa na forma, por exemplo, que a União Europeia obriga os países africanos a assumir o comando da questão da migração, pedindo que eles levem a política europeia para seus países africanos, como no Mali, Níger e na Líbia também. Dá para ver quantas bases [militares] estão no continente africano.

No nosso cotidiano, é visível na forma como o Estado lida com a questão das pessoas descendentes de africanos. É possível ver isso na forma como tratam a questão da educação, da moradia... Ou se você olhar o número de pessoas, nos Estados Unidos, que estão presas – em sua maioria, são negras. E não é uma forma nova de colonialismo. É uma forma fundamental de colonialismo.

Precisamos prestar atenção na forma como a ideologia do racismo se constrói. Ela foi construída a partir do tráfico transatlântico de escravos e da escravização. Eu diferencio escravidão de escravização.

A escravidão com certeza já existia antes, na África e mesmo no sul da Europa, mas ela acontecia depois de guerras, entre tribos ou reinos, quando se capturavam e escravizavam as pessoas [do lado derrotado]. Mas a escravização é completamente diferente. É quando você pega uma pessoa e a desumaniza – e a transforma em uma peça de mobília. Ela deixa de ser um ser humano.

É por isso que é muito importante diferenciar escravidão de escravização. Nesse sentido, é aí que isso se torna um mercado. A escravização era um mercado. É a base do capitalismo. É por isso que é uma herança tão importante, principalmente na África.

Quantas pessoas são racializadas no mundo? Descendentes de africanos? Africanos? Migrantes ou não migrantes? Mesmo uma pessoa que é cidadã de Gana, por exemplo, se vai para a Europa, ela é racializada.

Temos que interconectar e considerar a interseccionalidade entre ser negra, ser mulher, ser muçulmana, que são motivos para ser racializada. É muito importante entender isso. Se não estamos tratando do problema do racismo, racialização e do racismo estrito, não estamos entendendo.

Racismo sistêmico

Eu já fui especialista da ONU para a questão afrodescendente e visitei o Brasil na época. [No relatório produzido para a organização] eu usei o termo “racismo estrutural”, mas também temos que acrescentar o [racismo] sistêmico, porque o capitalismo se baseia na escravização e no racismo sistêmico. Se existe racismo sistêmico, é porque existe um racismo estrutural que está profundamente enraizado na mente das pessoas, e isso é parte estrutural da supremacia branca do que chamamos modernidade.

Isso vem de quando dizem “a negritude e a indigeneidade não são valores humanos de fato”. Essa é a questão. Até hoje, na mente das pessoas, mesmo que não se expresse, ainda é verdade para muita gente.

Se queremos mudar o mundo, deve ser a partir da questão da racialização, porque o mundo se organiza a partir disso. Se você observar, existe um por cento da população que é branca e eles são líderes, mestres, presidentes, dominam o mercado financeiro, o mercado intelectual, as universidades, a construção do conhecimento. Eles decidem o que você tem que aprender nos livros.

Eu sou da França, infelizmente [risos]. Se o povo francês e a educação francesa não quiserem que você saiba o que eles fizeram, as atrocidades, os crimes de guerra em Madagascar, na Nigéria, na África, eles apagam essa parte do currículo. Não é importante [para eles]. E pior: eles transformam a realidade. Eles dizem: “O colonialismo foi bom para o povo africano, porque eles conseguiram hospitais, educação, bla bla blá”.

Precisamos desconstruir a ideologia da supremacia branca, caso contrário, um por cento da população [continuará sendo] elite e 99% da população, “não seres”. A elite é o “ser” e 99% são o “não ser”. Mas dentro desses 99%, também temos uma hierarquia. Quanto mais branco você for, mais seguro estará – ou poderia estar. Quanto mais negro, com certeza mais condenado. Isso exclui as pessoas. É uma coisa que temos que levar em consideração. É por isso que o termo neocolonialismo não faz sentido.

A Comissão da Verdade e Reconciliação [criada no fim do apartheid sul-africano] foi só uma fachada, só espetáculo. Como é possível viver em um país onde uma parte muito pequena da população matou você durante anos e anos e anos e, depois disso, viver juntos? É importante estabelecer um processo jurídico real, porque, se você é um cidadão comum e comete um crime, vai preso. Como é possível que quando essas pessoas cometem esses crimes – crimes gravíssimos – elas não são presas?

Isso reforça o sentimento de impunidade para essas pessoas brancas de que elas são as mais fortes e podem dominar o mundo da forma que quiserem. É terrível.

A situação em que a África do Sul está hoje é bem difícil, porque os jovens não querem mais aceitar isso. Quando eles pedem a queda da estátua de [Cecil] Rhodes [campanha iniciada em 2015 na Cidade do Cabo que levou a um grande movimento pela descolonização da educação no país], estão certos. Precisamos disso em todos os lugares. Na ilha da Martinica e em outros lugares, a estátua do antigo colonizador ainda está lá.

Dizem que os seres humanos são todos iguais. Não! Alguns seres humanos são “mais iguais” que outros. É isso. Alguns até reivindicam e gritam por igualdade: “Queremos igualdade para nossos cidadãos!” Mas é uma piada, porque a igualdade se baseia na desigualdade.

Movimentos identitários

Não é suficiente dizer que queremos esmagar o capitalismo. Não é o suficiente. Precisamos tratar do motivo pelo qual o capitalismo é tão forte, pelo qual o setor financeiro é tão forte. E o motivo para eles estarem nos matando. E vai piorar. Quanto mais forte fica o sistema capitalista, piora, porque eles não têm outra solução que não matar pessoas. Quando a dificuldade que eles enfrentam é grande demais, a única possibilidade [que encontram] é matar cada vez mais pessoas.

Isso vem da escravização. Temos isso na França. É a mentalidade europeia. Ela se organiza assim. E isso é terrível para a sociedade. Por isso acredito muito que é importante tomar uma atitude sobre isso.

Se as pessoas entenderem que o capitalismo se constrói a partir da desigualdade e da racialização de uma parte da população, mudaremos a mente das pessoas. Eu realmente acredito que não podemos repetir o que nossos pais e avós fizeram. Primeiro, precisamos descolonizar a mente das pessoas. Essa é uma das partes da obra de Frantz Fanon. É desalienar a mente das pessoas, porque a sociedade deixa você louco ou com problemas psicológicos e psiquiátricos. Precisamos mudar isso.

Edição: Pedro Ribeiro Nogueira