TRÁFICO

Em livro, jornalistas mostram que guerra às drogas criou o PCC e propõem alternativas

Mercados proibidos gerando lucros, masculinidades e seletividade penal atuam na criação da facção que dominou o país

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"Há uma questão associada a uma masculinidade muito mal resolvida. Há uma questão de gênero por trás dessa massa majoritariamente masculina"
"Há uma questão associada a uma masculinidade muito mal resolvida. Há uma questão de gênero por trás dessa massa majoritariamente masculina" - Luiz Silveira/ Agência CNJ

Em 2016, o jornalista Bruno Paes Manso, pesquisador no Núcleo de Estudos da Violência da USP, foi convidado pela Revista Piauí a investigar os motivos por trás da diminuição da violência em São Paulo enquanto a principal facção do Estado, o Primeiro Comando da Capital (PCC) se expandia. Especialista em crime organizado, sistema carcerário e violência, Manso iniciou sua apuração tentando entender como o Brasil lida com drogas, com o sistema prisional e o porte de armas. “Percebi que deveria tentar compreender o crime do ponto de vista nacional. O PCC se tornou um protagonista na cena do mercado de drogas no Brasil, nacionalizando o comércio”.

Por conta disso, junto de sua colega de pesquisa, Camila Nunes Dias, professora da Universidade Federal do ABC, condensou o volume de informações coletadas – que não couberam na reportagem – no livro  “A Guerra – Ascensão do PCC e o Mundo do Crime no Brasil”, publicado em agosto de 2018 (Editora Todavia). Na obra, Manso e Dias defendem a ideia de que a política de guerra às drogas criou o crime organizado no país, com um modelo carcerário que, cotidianamente, alimenta e nacionaliza o tráfico.

Em Porto Alegre, Manso participou de evento organizado pelo Instituto Fidedigna para debater sobre o avanço das facções no Brasil e o crescimento da violência. “As crises que passaram a ocorrer nos estados, que envolviam lideranças criminais, com o fortalecimento do tráfico de drogas e que lideravam rebeliões e ações fora dos presídios, fez com que os líderes dessas ações fossem transferidos para as detenções federais. Isso permitiu que esses chefes do crime passassem a ter contato permanente e estabelecessem redes para planejar coisas em conjunto”, explica.

‘O crime fortalece o crime’

De acordo com Manso, a história do PCC começa em paralelo ao Massacre do Carandiru, em 1992, quando uma intervenção da Polícia Militar do Estado de São Paulo, para conter uma rebelião na Casa de Detenção de São Paulo, causou a morte de 111 detentos.

No livro, o episódio é descrito como “a motivação derradeira para canalizar os esforços na mesma direção e conferir ao mundo do crime um governo paralelo capaz de proteger os criminosos”. Assim, teria surgido entre os presos um sentimento de união, em que “o crime fortalece o crime”, contra os agentes policiais e o Estado. “Foram anos de políticas equivocadas de guerra ao crime, de policiamento ostensivo em bairros mais pobres, onde se prenderam pessoas que estavam na ponta do tráfico, mas que não eram os chefões. Eles preencheram as vagas em presídios. Assim, ao invés de desarticular o crime, passou-se a fortalecer as facções dentro do sistema prisional”.

O jornalista afirma que o desenvolvimento da facção foi aliado ao crescimento do sentimento de raiva entre os jovens da periferia. “O crime usa um discurso sedutor para revoltar e fazer com que se crie uma unidade que enfrentasse os poderes da polícia dentro das comunidades”. Para ele, a denominação ‘guerra’ se justifica para falar do contexto do tráfico no Brasil pela violência que ilustra o crescimento das facções. “Chamar de guerra mostra que esse remédio que dá uma falsa sensação de segurança, como construir novos presídios, pode ser um veneno. Nos fragiliza mais. Deveríamos pensar em formas alternativas para desarticular esses grupos”, propõe.

Papel social do tráfico

“No Rio de Janeiro, facções tiveram um papel de assistencialismo forte”, explica Manso. Por estar presente onde o Estado não chega, comunidades passaram a contar com o crime organizado como provedor de bem estar social em pontos básicos, como garantia de saúde, educação e alimentação. “Em São Paulo, o PCC passou a, também, mediar conflitos e debates. Muitas pessoas procuravam autoridades do PCC para lidar com problemas de violência entre elas. Isso não significa que levaram a paz para esses bairros”.

Manso cita grandes festas realizadas em comunidades periféricas como pontos importantes nesse processo. Ao mesmo tempo em que os ‘pancadões’ proporcionavam entretenimento, firmavam a posição de líderes do tráfico dentro da comunidade. “Em São Paulo, marcam momentos de articulação para a venda de drogas e é onde se firma a influência de determinados grupos sobre determinadas comunidades”.

Para ele, o principal ganho da ampliação do poder do PCC dentro de bairros de periferia foi a ordem que a facção estabeleceu dentro de uma série de regras que visam manter o controle sobre as pessoas, a violência e as drogas. “Isso vem do mundo das prisões. As regras são criadas lá dentro e passam para o mundo exterior como pontos de mediação de conflitos”.

Bruno Paes Manso e Camila Nunes Dias | Foto: Carla Arakaki/Divulgação 

Disputa de narrativas

Historicamente, o Brasil observa sua expansão populacional associada à uma crescente onda de violência – relacionada ao contínuo processo de exclusão a que a população mais pobre é submetida. Para Manso, esse processo está ligado às demandas de populações marginalizadas e à truculência de Estado. “Quando o PCC é fundado, quando eles dizem que se uniram porque viram muitos irmãos morrendo, muitas mães chorando… Ele vem com um discurso que reproduz um discurso político. Ele critica o Estado opressor. A verdade é que criamos nossos homens-bomba”.

Manso afirma que uma disputa de narrativas tem marcado uma geração de jovens nas periferias brasileira. “Enquanto o Estado diz para esse menino que ele pode viver até os 80 anos, ganhando pouco, mas com uma vida relativamente estável, o tráfico seduz com uma trajetória mais curta, em que ele provavelmente viverá até os 25, 30 anos… Mas terá uma arma, conquistará mulheres, terá dinheiro, poder e influência”.

A medida em que o processo de encarceramento em massa é acelerado, a partir da década de 1990, esse discurso se articula dentro dos presídios, consagrando o que ficou conhecido como ‘batismo’ dentro do PCC. Membros da facção passaram a identificar outros presos que poderiam se somar à organização e, assim, firmavam um pacto de lealdade que, em tese, não poderia ser quebrado. “O papel do PCC não é de domínio. É de estabelecer uma certa ordem no caos. Eles são vistos, de alguma forma, como mediadores que articulam algo que todos querem – a polícia, a população e quem lucra com a venda de drogas e a violência em si.”

Manso é categórico ao afirmar que as drogas “só produzem um lucro exorbitante por estarem circulando em um mercado proibido” e que, assim, contribuem para a construção da narrativa pautada por ganho de poder – seja através de influência ou dinheiro – que permanece cooptando pessoas para dentro do tráfico. “E isso é sutil. Mas, também, mostra uma fragilidade enorme. Há, claramente, uma questão associada a uma masculinidade muito mal resolvida. Há uma questão de gênero por trás dessa massa majoritariamente masculina que coordena essas ações pautadas por estereótipos”.

Manso encerra dizendo que: “Estamos disputando trajetórias. Mais do que essa guerra, é uma situação que deve ser enfrentada da forma que é. Até hoje, ainda não achamos uma forma definitiva de enfrentar essa disputa de influências”.

Edição: Sul 21