Primeira advogada trans, negra e nordestina a conseguir o nome social na carteirinha da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Robeyoncé Lima foi eleita deputada estadual em Pernambuco por meio de um mandato coletivo. Insatisfeitas com os rumos da política no país, cinco mulheres se reuniram para formar a candidatura “Juntas”, com o objetivo de ocupar a Assembleia Legislativa do estado em defesa dos direitos humanos.
“Nos elegemos com 39.175 votos. É um projeto de reparação histórica porque estamos ocupando um espaço que foi historicamente negado. Estamos fazendo uma reparação daquilo que nunca tivemos oportunidade, está sendo nos devolvido nosso lugar de fala que desde 1500 foi tomado”, afirma Robeyoncé.
Em entrevista ao Brasil de Fato, a representante da Juntas relata que a perspectiva da vida política da “mandata coletiva” é defender os direitos humanos e assegurar que os direitos existentes permaneçam.
Ações contra a transfobia estão entre as principais bandeiras que Robeyoncé planeja defender. Em 2017, 179 pessoas trans foram assassinadas no país, 35 a mais do que em 2016, conforme Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). Minas Gerais, Bahia e São Paulo lideram a lista de ocorrências.
“Não é fácil ter uma transexual ou travesti eleita deputada. Não é fácil existir uma transexual ou travesti aqui no país, que conseguiu sobreviver até os 30 anos ou 35, sem ser assassinada, sem ser morta. É uma perspectiva de superação, de superarmos o que está posto socialmente para nós. Se chegamos aqui até agora, quer dizer que podemos ir mais adiante. A resistência não é algo novo pra gente. A luta não é algo novo”, diz Robeyoncé.
Confira a entrevista com a militante que saiu da periferia de Alto Santa Teresinha (PE) para ocupar a Assembleia Legislativa de Pernambuco.
Brasil de Fato: Como se consolidou sua trajetória política?
Robeyoncé Lima: Minha história de militância começa dentro do próprio ambiente acadêmico, universitário, por meio do diretório acadêmico, ocupar os espaços. E quando você se forma, traz essa militância das grades da universidade e leva para fora. Saímos da militância acadêmica e fomos para a militância nas ruas, pelos movimentos sociais. Eu especificamente pela militância no movimento LGBT. Mas, com o tempo, vamos percebendo que a atividade de rua também é importante mas não é suficiente. Vamos percebendo a necessidade de ocupar outros espaços para além da academia, para além da rua.
Foi por isso que quando chegou para mim o convite para participar da "mandata" coletiva das Juntas, resolvi encarar esse desafio
Como essa candidatura foi articulada?
As cinco mulheres já tinham em comum, em primeiro lugar, a insatisfação política estarmos em um contexto em que a política tradicional nunca deu voz e nunca deu vez para nós. Em segundo, já sabíamos que se fossemos disputar individualmente, nossas chances seriam bem de menores de conseguir uma vaga nesse local institucional. Resolvemos nos unir para ter um pouco mais de força e um pouco mais de possibilidades. Uma possibilidade mínima de conseguir uma vaga no ambiente institucional que sempre nos foi renegado, que nunca foi dada oportunidade estarmos lá, naquele local.
Devido a estas dificuldades, de inserção nessa política tradicional, e também devido ao fato de nenhuma das cinco ter um sobrenome político - nenhuma das cinco vêm tradicionalmente daquela hereditariedade política - resolvemos nos junta. Nos elegemos com 39.175 votos. Esse projeto é de reparação histórica, porque estamos ocupando um espaço que foi historicamente nos renegado. Estamos fazendo uma reparação daquilo que nunca tivemos oportunidade, está sendo devolvido nosso lugar de fala que desde 1500 foi tomado.
É uma ação política só o fato de estarmos ali, naquele ambiente institucional. A Assembleia Legislativa de Pernambuco é um prédio que tem mais de 180 anos e, obviamente, este prédio histórico foi construído com o suor dos meus ancestrais. Foi construído com o suor dos ancestrais da Erica Malunguinho, que foi eleita deputada aqui em São Paulo mas é de Pernambuco. Como é que um prédio, construído com a força e com o suor da nossa ancestralidade não dá oportunidade sequer de ocuparmos um espaço dentro dele? É nesse sentido de ocupar esse espaço politicamente, de fazer essa reparação histórica e ao mesmo tempo aquilombar esse espaço. Mudar a configuração da política que temos hoje, que nunca deu vez, que nunca deu voz às minorias. Minorias entre aspas porque na verdade somos maiorias. As pessoas negras, LGBTs, quilombolas, indígenas e todas as outras sub-representatividades que temos no país.
Qual a perspectiva de atuação sob o governo Bolsonaro?
A perspectiva de atuação é basicamente lutarmos pelo direitos que ainda não perdemos, porque perdemos muito. Temos uma democracia de 30 anos em que muitas pessoas sub-representadas nem sequer reconhecem o que é essa democracia porque não tiveram acesso aos direitos básicos mínimos. Que tipo de democracia é essa que temos? Vamos atuar nesse sentido, de resgatar a perda de direito e segurar o que temos nessa perspectiva de luta, de insistência e de resistência porque a luta não é novidade pra gente, é algo do nosso cotidiano.
Não é fácil ter uma transexual ou travesti eleita deputada. Não é fácil existir uma transexual ou travesti aqui no país, que conseguiu sobreviver até os 30 anos ou 35, sem ser assassinada, sem ser morta. É uma perspectiva de superação, de superarmos o que está posto socialmente para nós. Se chegamos aqui até agora, quer dizer que podemos ir mais adiante. A resistência não é algo novo pra gente. A luta não é algo novo. Para chegar aos 30 anos de idade sendo transexual e travesti, você já está com a casca bem dura. Já tem o molejo dessa vida hostil, desse ambiente que vivemos.
No período eleitoral, houve casos de mulheres trans e travestis que foram assassinadas e, segundo as denúncias, sob os gritos de "Bolsonaro presidente". Como lidar com esse ódio fomentado pela figura do presidente eleito?
Com esse governo legitimamente eleito pelas urnas, foi dada uma autorização para que a sociedade fizesse esse tipo de extermínio, o que também não é novidade pra gente. O extermínio de LGBTs, travestis e transexuais não é de hoje. Mas o que temos é uma intensificação desse extermínio. Uma multiplicação, uma elevação ao cubo. Como podemos trabalhar essa questão em uma sociedade tão conservadora como a que temos? Uma sociedade que tenta colocar novamente as pessoas em seus papéis tradicionais de que mulher negra tem que estar na cozinha, que homem negro tem que ser operário, que travesti e transexual tem que estar nas esquinas fazendo programa. Que alternativa podemos dar a essas pessoas no sentido de que podem ter sim outras opções para além do conservadorismo de extrema direita que é o que temos agora?
Nós perdemos o discurso do anti-sistema. Tínhamos um sistema posto, as pessoas estavam inconformadas com esse sistema, vem a extrema direita com esse discurso anti-sistema e convence as pessoas a votar nesse tipo de candidatura, de ideia e nesse tipo de candidato presidenciável. Não é 55% da população brasileira que é racista, que é LGBTfóbica, que é preconceituosa com nordestinos. Acho que tem que haver um diálogo com essas bases. Precisamos revisitar nossas bases no sentido de formação dessas pessoas porque muitos votaram nesse candidato sem saber realmente ele os ideais que ele traz com ele.
E como seria isso?
Se você for, por exemplo, em alguma periferia daqui de São Paulo mesmo ou até de Pernambuco falar sobre fascismo, muitas pessoas não vão entender o significado da palavra. Então é uma falha e até uma autocrítica. Foram ambientes que deixamos de acompanhar e ambientes que o Estado também deixou de acompanhar. O Estado deixou de subir a periferia, deixou de subir o morro. Então chega essa ideia de nacionalismo, de privatização, que faz com que chegue no imaginário das pessoas que a esquerda é ruim. Que tudo que é do Estado é ruim, que tudo que é público não presta. Como podemos trabalhar isso nas pessoas e oferecer outras alternativas que não esse liberalismo que diz que lugar de mulher é sempre na cozinha e dos travestis é sempre na esquina das ruas. Não vejo outra possibilidade além de empoderar essas pessoas, no sentido de que elas podem fazer algo diferente para além disso. Dar outras alternativas a elas.
Como fazemos isso? Somente por meio do diálogo, da conversa com essas pessoas. Revisitar esses ambientes que deixamos de ir e que a igreja está lá até hoje. São perspectivas como essa que fazem com que sigamos em frente e continuemos lutando e persistindo nessa revisitação das pessoas no sentido de empoderá-las. Quem sabe, em 2022, tenhamos mais deputadas transexuais e travestis eleitas?
A essencialidade disso tudo é justamente empoderar as pessoas no sentido de saberem que é possível sim elas irem além dos destinos que a sociedade neoliberal coloca pra elas. Porque o principal que queremos é isso, justamente empoderar as pessoas. Se hoje temos 3 deputadas trans em todo o Brasil, nada impede que em 2022 sejam eleitas 10, 20, 30 deputadas trans em todo o país.
Você foi a primeira advogada a conseguir o nome social na carteirinha da OAB. Qual o significado dessa conquista e da importância do nome social?
Temos um Legislativo conservador em relação aos avanços e direitos de transexuais e travestis, e de LGBTs de uma maneira geral, mas temos o Judiciário sendo o "salvador da pátria" nas pautas LGBTs. Foi o caso do nome social [porque] o Judiciário regulamentou e facilitou a questão da retificação do nome no cartório. Vai ficar muito mais fácil deixar de ter o nome social para ter o nome civil propriamente.
O nome social era aquele nome administrativo, um nome interno. Só éramos tratadas pelo nome social naquela instituição. Mas das grades da instituição para fora, éramos a pessoa que estava no documento. Um documento que não nos representa, que nunca nos representou. Quando chega o Supremo dizendo que podemos pegar o nome social, ir no cartório e requerer a retificação dos seus documentos para que o seu nome social vire civil, facilitou ainda mais esse processo.
Não dependemos mais do Judiciário, não dependemos mais do que eu chamo de loteria judicial. Quando entrávamos com um processo de retificação, entrávamos fazendo figa para que caísse na vara de um juiz que fosse de mente aberta porque fica discricionário ele ceder ou não a notificação do seu nome. No cartório tem essa facilidade de que, apresentando todos os documentos, o cartório tem que retificar seu nome e aí passa a ter o nome civil.
Aos poucos o nome social está perdendo o objeto, sua finalidade. Foi uma conquista, uma política importante, mas é precária, fraca, frágil. Porque não pode substituir o nome. Na própria carteira da OAB, se não tiver com o nome retificado, ela virá com os dois nomes. O masculino e o feminino. Que foi o que aconteceu com a Márcia Rocha, primeira advogada de todo país a conseguir o nome social na carteira da OAB, mas ela não era retificada, então o nome ficou com masculino e feminino.
Claro que o que temos mais dificuldade para além do procedimento é justamente o trato com as pessoas. Elas chamam fulano de tal com um nome, e, de repente, fulano de tal chega com outro nome e exigindo ser tratada como fulana. Em termos burocráticos, a retificação do nome é mais fácil. Agora a dificuldade realmente vai ser a sociologia da retificação do nome, o aparato sociológico. As pessoas lhe conhecem de um jeito e quer ser tratada de outro jeito. É algo que precisamos trabalhar e amadurecer mais.
Edição: Pedro Ribeiro Nogueira