TECNOLOGIA

Guerra comercial entre China e EUA: uma disputa pela liderança tecnológica

É necessário entender que é possível travar política internacional e construir um mundo de ganhos mútuos

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Trump e Jinping em Pequim: guerra comercial e tecnologia
Trump e Jinping em Pequim: guerra comercial e tecnologia - Shealah Craighead/White House

No início do mês, a diretora financeira da Huawei, gigante chinesa de telecomunicações que recentemente se tornou a segunda maior fabricante de celulares do mundo, foi presa no Canadá a pedido da polícia estadunidense sob alegações de ter participado ativamente de transações que violam sanções dos Estados Unidos contra o Irã. A detenção de Meng Wanzhou, que em breve deve ser deportada aos EUA e, se condenada, pode enfrentar décadas atrás das grades, se deu na mesma noite em que Donald Trump e Xi Jinping se reuniam em Buenos Aires, durante o encontro da cúpula do G20 na capital argentina, e concordavam com uma trégua de 90 dias na guerra comercial que marca as relações entre chineses e estadunidenses desde o princípio de 2018. Em resposta, o governo chinês já deteve dois canadenses – um ex-diplomata e um escritor – e alertou para a possibilidade novas retaliações aos envolvidos caso a executiva não seja liberada. Analistas agora temem que o caso possa desfazer o acordo feito na Argentina e alimentar as hostilidades no comércio entre Washington e Pequim. 

Se por um lado, porém, a preocupação por parte de agentes do mercado, políticos e especialistas quanto à guerra comercial sino-estadunidense é compreensível, o conflito, por outro, é apenas uma face do fenômeno maior, este sim protagonista das recentes narrativas que marcam as interações entre os dois países, evidenciado pela prisão de Meng em Vancouver – uma feroz disputa pela liderança tecnológica mundial entre Estados Unidos e China. Por trás das repetidas alegações estadunidenses de que os chineses abusam do sistema internacional ao adotar práticas injustas de desenvolvimento, há a clara percepção de que uma China em plena ascensão ameaça a dominância militar e econômica de Washington, cujo eixo é justamente a dianteira tecnológica global ocupada pelos norte-americanos há quase um século, e que, portanto, é preciso combatê-la. Tarifas a importados chineses nos Estados Unidos são parte deste esforço, mas não o quadro completo da ofensiva dos norte-americanos contra Pequim. 

Há alguns anos, boa parte das políticas de modernização da base industrial chinesa vem sofrendo frequentes ataques de Washington. O caso mais recente e notório é o do Made in China 2025, um plano que busca preparar a indústria chinesa para ascender ao topo das cadeias internacionais de valor sob o contexto da quarta revolução industrial. Em 2017, a Câmara Americana de Comércio lançou um relatório em que relata preocupação com aquisições de empresas e propriedade intelectual estadunidense estimuladas pelo plano por parte de corporações chinesas. Já neste ano, uma delegação de oficiais de governo dos Estados Unidos enviada a Pequim defendeu não somente a correção do desequilíbrio comercial entre os dois países, mas também – e principalmente – o próprio abandono do Made in China 2025 por parte do governo chinês. Para os oficiais, o plano possibilita que corporações chinesas compitam injustamente em mercados internacionais e eventualmente dominem indústrias estratégicas em muitos casos hoje dominadas por empresas dos EUA. 

Concomitantemente, o ambiente político e econômico nos Estados Unidos tem se tornado crescentemente hostil a empresas chinesas de tecnologia de ponta. Em janeiro deste ano, legisladores estadunidenses pediram que a AT&T, uma das principais prestadoras de serviços de telecomunicação do país, cortasse relações comerciais com a Huawei por questão de segurança nacional. Em junho, o Senado dos EUA votou a favor do restabelecimento de sanções que proibiriam a ZTE, outra grande empresa chinesa das telecomunicações, de adquirir ou se utilizar de qualquer tecnologia estadunidense – sanção essa que só seria revertida um mês depois, após quase levar a ZTE à falência. Em agosto, o presidente Trump assinou um decreto que proíbe o uso de equipamentos das duas empresas por qualquer agente de governo dos Estados Unidos, assim como por qualquer empresa que mantenha contratos com Washington. 

Frente às novas desconfianças, os volumosos investimentos chineses em empresas de tecnologia estadunidenses também passaram a enfrentar um momento de amplas dificuldades. Alinhando-se às alegações de que o governo da China se utilizaria de investimentos e aquisições internacionais para ter acesso facilitado a tecnologias sensíveis, a administração Trump enrijeceu sensivelmente o processo de análise de propostas de compra ou participação acionária em corporações detentoras de tecnologia avançada no país por parte do gigante asiático. Somente neste ano, um grande número de transações internacionais valendo centenas de bilhões de dólares foram bloqueadas por autoridades estadunidenses, incluindo a tentativa da Broadcom, empresa de Cingapura com relações próximas a Pequim, de adquirir a Qualcomm e a XCerra por uma subsidiária do Sino IC Capital, fundo de investimentos estatal chinês. 

A China, por sua vez, tem feito mais que assistir passivamente ao avanço estadunidense contra seus interesses. Para além de revidar, ao longo do ano, às crescentes tarifas de Washington com taxações também aos importados dos Estados Unidos na China, Pequim ainda declarou recentemente através de Zhong Shang, seu Ministro do Comércio, que o gigante asiático não pretende ceder às exigências político-econômicas dos Estados Unidos mesmo que a administração Trump siga estabelecendo limites ao comércio entre as duas nações. Já no último dia 10, uma corte chinesa baniu a venda no país de modelos antigos do iPhone, principal produto da estadunidense Apple, devido a supostas infrações de propriedade intelectual da empresa norte-americana. Em artigo sobre o tema, o estatal Global Times afirma que a decisão, apesar de nada ter a ver com a detenção pouco mais de uma semana antes de Meng Wanzhou no Canadá, demonstra que a China também é capaz de pressionar as gigantes tecnológicas dos Estados Unidos. 

Pequim, entretanto, já declarou em repetidas oportunidades querer o fim do tensionamento de suas relações com Washington, chegando até mesmo a recalibrar seus discursos oficiais de modo a combater a percepção das aspirações modernas da China como ameaças aos estadunidenses. O novo episódio envolvendo a executiva da Huawei, porém, aponta para as dificuldades em conciliar os interesses de uma potência estabelecida e de outra em ascensão em um mundo de muitos que ainda veem a unipolaridade com única opção. É de se esperar que chineses sigam traçando seu caminho rumo a seus anseios, assim como que estadunidenses sigam defendendo seus interesses frente a quaisquer fatores tido como riscos. Se há de se manter a paz, entretanto, é necessário entender que é possível travar política internacional e construir um mundo de ganhos mútuos em que os avanços de uns não venham necessariamente a custo do prejuízo de outros. Caso contrário, a guerra comercial entre Pequim e Washington poderá ser somente o primeiro dos muitos estágios de uma corrida cuja alto preço será pago por todos nós. 

Edição: Opera Mundi