Coluna

Minhas esperanças estão despedaçadas. Preciso de seu apoio

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Marisol Escobar, The Family, 1962
Marisol Escobar, The Family, 1962 - MoMA
O sistema parece ter como premissa a violência estruturada contra pessoas comuns

Por Vijay Prashad*

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No ano passado, o assessor de segurança nacional dos EUA, John Bolton, foi a Miami, onde cunhou uma nova – e assustadora – expressão: troika da tirania. Ecoou outra famosa expressão dita pelo então presidente George W. Bush, eixo do mal. O eixo de Bush incluía Irã, Iraque e Coreia do Norte. A guerra ilegal de Bush contra o Iraque prosseguiu, assim como as duras sanções contra o Irã e a Coreia do Norte. Bolton referiu-se à Cuba, Nicarágua e Venezuela. A ilha caribenha tem estado sob um embargo dos EUA desde 1960, e esta não é uma frase de efeito: o embargo de décadas já custou ao povo cubano mais de 800 bilhões de dólares.

Há sanções em vigor contra a Venezuela, que viu sua economia e sociedade serem duramente atingidas pela espiral descendente dos preços do petróleo. Agora, aumentam as pressões sobre o governo venezuelano, exercidas pelo Grupo Lima, pela Organização dos Estados Americanos (OEA), bem como – e de forma mais acentuada - pela administração de Donald Trump. Líderes de extrema direita no continente - como o brasileiro Jair Bolsonaro e o colombiano Iván Duque Márquez, assim como o próprio Trump - salivam com a perspectiva de mudança de regime na Venezuela, mas também na Bolívia, Nicarágua e Cuba. Eles querem extirpar a "maré rosa" da região. Para mais informações sobre a mudança de regime na Venezuela, consulte meu relatório [em inglês].

Seguindo os desdobramentos da América Latina, remeto à poesia do poeta revolucionário cubano Nicolás Guillén (1902-1989), em particular seu mágico poema Problemas do Subdesenvolvimento:

Monsieur Dupont te chama de inculto,

porque você ignora qual era o neto

preferido de Víctor Hugo.

Herr Müller se pôs a gritar,

porque você não sabe o dia

(exato) em que Bismark morreu.

Teu amigo Mr. Smith,

inglês ou ianque, eu não sei,

se insurge quando você escreve “shell”.

(Parece que você coloca um ele a menos,

e ainda por cima pronuncia “sel” .)

Bem, e então?

Quando chegar a tua vez,

manda eles dizerem “cacarajícara”,

e onde está o Aconcágua,

e quem era Sucre,

e em qual lugar do planeta

morreu Martí.

Um favor:

Que falem com você sempre em espanhol.

A escultura acima foi feita pela artista venezuelana Marisol Escobar. O título é A família. Fala sobre os laços entre as pessoas, mas também sobre as forças que tornam tão difícil que o mundo dos humanos seja de fato humano.

Se as armas estão apontadas para a Venezuela, o mesmo não ocorre em Bangladesh. Lá, segundo diversos relatos, a eleição do mês passado foi marcada por violência e fraude. A Liga Awami, do xeique Hasina, galopou rumo à vitória, mas só porque a oposição boicotou as eleições e porque o aparato estatal – de acordo com vários relatórios - participou da produção de votos. Vinte e quatro pessoas foram mortas por causa da violência. A prisão das pessoas que querem expandir os limites da democracia se tornou rotina. As Nações Unidas pediram uma investigação sobre o pleito.

Enquanto as cédulas de votação flutuavam no vento, as trabalhadoras do setor de vestuário - o coração do Produto Interno Bruto de Bangladesh (30 bilhões de dólares por ano) - saíram às ruas para exigir aumento do salário mínimo. Em 2013, o governo fixou o salário mínimo mensal em 5300 takas (63 dólares) para as quase cinco milhões de trabalhadoras do setor têxtil. A reivindicação é que a remuneração mínima passe para 16 mil takas (191 dólares), mas o governo a rejeitou. Enviaram a polícia - veja acima - para reprimir as manifestações e fazer com que as fábricas de Savar e Ashulia - ambas na periferia de Daca, capital de Bangladesh – fossem silenciadas. Depois de uma intensa semana de luta, o governo fechou as portas para negociações com um salário mensal de 8000 takas (95 dólares), um aumento anual de 5%. Um valor muito abaixo do necessário para que as pessoas em Bangladesh necessitam para suas vidas. Há seis anos, o Centro de Diálogo Político, com sede em Dhaka, sugeriu que a alimentação de um mês - no mínimo - custaria a um operário de vestuário 6919 takas (87 dólares). As coisas estão mais difíceis agora. Mas, para oferecer roupas a um preço barato para a classe média do mundo, as trabalhadoras de Bangladesh precisam morrer de fome. A alegria para elas é mínima. Seus horizontes se rebaixaram para perto da sobrevivência.

Há alguns meses, um dos mais proeminentes fotógrafos de Bangladesh - Shahidul Alam - foi preso por ampliar as vozes daqueles que lá vivem. Enquanto estava na prisão, o escritor Arundhati Roy lhe escreveu uma carta comovente - falou sobre a "crueldade tola e mesquinha" dos governos do nosso mundo. Todo o sistema parece ter como premissa a violência estruturada e cruel contra pessoas comuns que devem viver como uma população descartável que trabalha ou uma população descartável que não trabalha. Depois da eleição, Shahidul respondeu a Arundhati, e falou com repugnância sobre a classe dominante de Bangladesh, que "se sentará em seus carros com isenção de impostos, agitando bandeiras", ao desrespeitarem as regras e abusarem da Constituição. Nada em Bangladesh é único. É um clichê dos nossos tempos, onde o lucro suga até a medula dos trabalhadores e os incêndios tóxicos do sectarismo queimam a sociedade.

Prabir Purkayastha e eu nos juntamos recentemente a Prasanth R., em Déli, para falar sobre essas questões, essa crise de lucratividade, essa fome e essas chamas [em inglês].

Tudo isso é um clichê. O título desta carta vem do meu amigo Anand Teltumbde, escritor e ativista que tem sido ameaçado de prisão pelo governo da Índia. Anand escreveu uma carta aberta pedindo apoio, mais do que isso, nos oferece detalhes do estranho caso movido contra ele. O ataque jurídico a Anand vem no mesmo momento em que o governo indiano move ações contra os líderes estudantis Kanhaiya Kumar, Umar Khalid e Anirban Bhattacharya. São acusados de perturbar a ordem pública. É um pensamento horrível. Respondendo a esses eventos, Arundhati Roy escreveu: “uma doença paira sobre nós”.

Não é apenas algo que aflige o sul da Ásia. Um funcionário do Ministério da Agricultura do Brasil - Nabhan Garcia - convocou o Congresso para que tipifiquem as ocupações feitas pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) como "terrorismo". A violência à solta no Zimbábue e no Marrocos estabelece limites à democracia. Os EUA conduzirão uma mudança de regime contra a Venezuela em nome da democracia; o Brasil prenderá militantes sem-terra em nome da democracia.

Assassinatos e supressôes dos líderes do povo são uma tática antiga. Voltemos para 1961, quando Patrice Lumumba, amado líder da revolução congolesa foi assassinado pelos belgas, EUA e setores militares do congo. Lumumba (1925-1961) foi o primeiro ministro da República Democrática do Congo. Seu discurso no Dia da Independência provocou os belgas. "Nós não somos mais seus macaques [macacos]", disse ele. "Vamos começar uma nova luta, uma luta sublime, que levará nosso país à paz, prosperidade e grandeza". O Congo, ele disse, será o "centro de irradiação do sol para toda a África". Não era pra ser. Não foi. Mesmo agora, este bravo país, este país rico, vê suas eleições e riquezas roubadas, sua liberdade suprimida.

Enquanto isso, há cem anos, Rosa Luxemburgo e Karl Leibknect - líderes do Partido Comunista Alemão - foram mortos a sangue frio em Berlim. Quando os seguranças vieram prendê-la, Luxemburgo encheu sua bolsa com livros, incluindo Fausto, de Goethe, que ela então estava lendo. Ela esperava ser levada para a prisão. Mas, em vez disso, os dois comunistas de 47 anos foram espancados até a morte e seus corpos jogados no Canal Landwehr.

Poucos dias antes de seu assassinato, Luxemburgo escreveu um ensaio em movimento – A ordem reina em Berlim. A repressão ao movimento dos trabalhadores foi severa. Mas, com a esperança enchendo seu coração, Rosa Luxemburgo escreveu: “A vossa ‘ordem’ está alçada sobre a areia. A revolução se alçará amanhã com a sua vitória e o terror pintará vossos rostos ao ouvi-la anunciar com todas as suas trombetas: fui, sou e serei!”

*Vijay Prashad é historiador e jornalista indiano. Diretor Geral do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

Edição: Luiza Mançano