Saúde

Alexandre Padilha: “Governo Bolsonaro pode deixar legados irreversíveis”

Ex-ministro da Saúde, que criou o programa Mais Médicos, lamenta a destruição anunciada pelo governo de extrema-direita

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Padilha participa junto a profissionais da saúde de ato em defesa da democracia e do SUS Faculdade de Saúde Pública da USP, em 2016
Padilha participa junto a profissionais da saúde de ato em defesa da democracia e do SUS Faculdade de Saúde Pública da USP, em 2016 - Roberto Parizotti | CUT

O médico e ex-ministro da Saúde durante o governo Dilma Rousseff (PT), Alexandre Padilha, participou da última edição do programa "No Jardim da Política", da Rádio Brasil de Fato, e comentou o cenário de retrocessos na saúde pública no governo Bolsonaro. 

Deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores (PT), Padilha é reconhecido internacionalmente por ter participado da criação do programa Mais Médicos, responsável por garantir atendimento em regiões isoladas do país ou com déficit de profissionais a partir de 2013.
Confira os destaques da entrevista

Brasil de Fato: Como foi estar à frente de um ministério tão importante, com uma demanda tão cara para a população brasileira? 

Alexandre Padilha: Para quem é médico, profissional de saúde, que sempre lutou pelo SUS -- eu estou nessa luta desde quando era estudante de Medicina, no comecinho dos anos 1990 --, não tem nada que honre mais do que poder um dia ser ministro da Saúde de seu país. Ainda mais em um governo que eu ajudei a construir, o governo da presidenta Dilma. [Ela] Nos permitiu fazer enfrentamentos bastante importantes. O Mais Médicos foi o mais conhecido -- por conta da polêmica e do debate, da importância e da necessidade da população como um todo --, mas eu tive muito orgulho de fazer parte de uma gestão que fez com que o Brasil voltasse ao protagonismo da luta contra a AIDS no mundo. 

Muitas vezes a pessoa é casada com alguém que vive com HIV, a gente chama de casais sorodiscordantes -- um termo técnico feio. A gente descobriu que se essa pessoa, mesmo não estando infectada com HIV, pudesse tomar a medicação iria reduzir muito o risco de ela ter a transmissão. Isso fez com que o Brasil, de 2013 para cá, reduzisse em 16% a mortalidade pelo HIV, foi reduzida a incidência de casos novos. Estou falando de políticas que estão sob ameaça agora, pelo governo Bolsonaro. 

Por exemplo, na  nossa época no Ministério da Saúde, a gente criou a rede de atenção psicossocial. A ideia era lidar com o tema da loucura, do uso problemático de drogas, respeitando as pessoas, tentando garantir o convívio com a família. Acabar com a experiência trágica que o Brasil teve dos manicômios. A gente começou a reconstruir tudo. Também está sob ameaça pelo atual governo

Em novembro, houve a saída de Cuba do programa Mais Médicos, que deixou um buraco enorme no atendimento feito, especialmente em áreas mais distantes. Quais foram as consequências mais imediatas, e quais podem ser as consequências a longo prazo?

É um grande estrago. E a gente vai medindo esse estrago a partir dos meses, dos anos. Eu estou convencido de uma coisa: não é a razão, nem dados, nem evidências que vão guiar esse governo. Até porque alguns ministros acreditam que a Terra é plana [risos]. Tem ministro que veio questionar porque se fala da Teoria da Evolução das Espécies nas escolas.

A medida que o Bolsonaro e o [Sérgio] Moro tomaram [sobre a flexibilização do posse de armas] é de permitir que se criem verdadeiros batalhões privados na casa das pessoas. Vai contra qualquer evidência, dados sobre o impacto da liberação de armas sobre a vida das pessoas. A gente tem que ter muita clareza disso: é um governo que não vai ter preocupação nenhuma de governar para a maioria da população e, mais do que isso, não tem nem preocupação de construir maioria na sociedade.

As posições do presidente Bolsonaro que fizeram com que Cuba resolvesse sair do programa Mais Médicos são uma evidência disso. Já tinha acabado a eleição, já tinha acabado o palanque. O que se espera de um presidente da República e de um ministro da Saúde? É contra os médicos cubanos, é contra parceria com Cuba? Então construa um plano de transição, discuta isso com secretários municipais. Não foi isso.

Primeiro, durante a transição inteira não foi apresentada nenhuma proposta concreta. Só declarações que desqualificavam os médicos cubanos. Não tem como Cuba manter médicos em um país no qual o presidente o tempo todo os desqualifica. Pode colocar em risco esses médicos. A gente sabe da intolerância que teve no começo. Cuba fez aquilo que qualquer país teria feito, por reconhecer a qualidade do seus médicos. E o Brasil, sobretudo a população que mais precisa, ficou sem esses médicos da noite para o dia.

Eu acho que isso vai se agravar até fevereiro e março, quando saem os exames de residência médica. Até agora não vi do atual governo nenhuma proposta concreta para resolver um problema que vai ser muito difícil de ser resolvido.

Quem vai sofrer mais, em São Paulo, por exemplo? Quais são as unidades que não têm médicos completados? É no Itaim Paulista, no extremo da zona leste. Não tem profissional. Embu-Guaçu, a mesma coisa. Muito grave. O impacto imediato é interrupção de atendimento. Nas áreas indígenas, total abandono: 75% dos médicos que estavam atendendo nas áreas indígenas no Brasil eram do Mais Médicos. Não houve a reposição desses profissionais.

Qual o indicativo que esse governo dá para o SUS?

De medida concreta, nenhuma até agora. Teve decreto para liberar arma, teve Medida Provisória (MP) para tirar Terra Indígena da Funai e passar para o Ministério da Agricultura, teve o fim do Ministério do Trabalho e Emprego, teve medidas que agridem fortemente o meio ambiente. Até agora, na Saúde eu não vi nenhuma medida.

Aliás, o Bolsonaro acabou de sancionar o orçamento retirando R$ 1 bilhão da área da saúde. Tem um bilhão a menos do que foi autorizado no ano passado.

Durante os governos Lula e Dilma, nós tivemos um problema grave que foi a retirada da CPMF [Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira]. Da noite pro dia, tirou mais de 40 bilhões da saúde. Aos poucos fomos recuperando com crescimento anual. A regra era reajustar de acordo com o crescimento econômico do país mais a inflação. Não tinha o teto de gastos, o congelamento que tem hoje. Depois, conquistamos o recurso do pré-sal, que foi a primeira coisa retirada pelo governo golpista do Temer. E depois esse congelamento de vinte anos.

Não tem, por enquanto, nenhuma medida concreta de compromisso com a expansão e qualidade do SUS. A gente fala de ampliação do acesso ao atendimento e a gente precisa melhorar muito a qualidade do SUS.

Eu dou aula em um programa de residência, de especialização, para oito profissões juntas da saúde. Essa é a ideia de você ver o cuidado de uma pessoa, cuidar de uma comunidade, de uma família com a visão de várias profissões da saúde. Isso reduz a medicalização.

Existe uma falta de compromisso também com aquilo que o SUS tem de experimentação, da forma diferente de cuidar das pessoas; uma forma mais humana, medicalizando menos, preocupada com a prevenção. Eu não vejo nenhum discurso, nenhuma fala de compromisso com isso.

O governo tem dito que os Centros de atenção Psicossocial (CAPS) e os CAPS Álcool e Drogas “não servem para nada”. Esses avanços estão em risco?

Eu acho que estão em risco, não só pelo atual governo, mas já pelo governo Temer. É bom todo mundo lembrar. No Brasil, a história foi tratar o transtorno mental afastando a pessoa da família, da sociedade, prendendo, como foi a lepra nos tempos bíblicos; e até o século 20 o Brasil tinha leprosários.

Várias famílias, quando a pessoa tinha a chamada lepra, que a gente chama de hanseníase, era afastada dos seus filhos na época da ditadura. O cuidado da loucura foi assim até os anos 90. A Lei da Reforma Psiquiátrica é da segunda metade dos anos 90. Quase já chegando nos anos 2000. A ideia de que o Brasil não deveria ter mais manicômios mexe com dois grandes interesses: de um lado, aqueles de que de fato querem considerar o transtorno mental como algo a ser afastado da sociedade, que tem que ser recluso, longe das famílias, da sociedade, do espaço de trabalho. Como não aceitavam antes quem era leproso, quem era infectado pelo HIV.

Um outro interesse é o interesse financeiro, porque os hospitais manicomiais, os hospitais psiquiátricos, são uma fonte de lucro para muitos grupos. É um serviço, teoricamente, com pouco custo, porque é um paciente que não necessita de grandes procedimentos ou intervenções, não há exames com muita frequência. Ou seja, aquilo que custa mais em manter um hospital é baixo. E que tem um retorno imediato para quem é dono do hospital. Existem federações no Brasil que nunca aceitaram o fim dos manicômios nem o fortalecimento da ideia de que a gente precisava cuidar das pessoas junto das famílias e das comunidades.

O governo Temer já fez um ataque muito profundo a isso. Fez mudanças na forma de financiamento, seja dando mais dinheiro para internação hospitalar, reduzindo recursos para os CAPS, anunciando fechar o centro de atenção psicosocial. E no atual governo Bolsonaro todas as falas até agora vão nesse sentido. Acho que devemos estar atentos. Eu sempre digo que o governo Bolsonaro pode nos deixar dois legados irreversíveis: vidas destruídas e um ambiente destruído. Porque direitos, avanços, leis, políticas públicas, isso faz parte da construção histórica. Às vezes você tem recuo, às vezes você tem atraso, às vezes consegue avançar.

O SUS é um histórico de avanços, de deficiências que precisam ser superadas, de muita luta por qualidade. A gente precisa melhorar muito o SUS ainda no país. Mas ele é um desenho que foi se construindo longo desses trinta anos, e qualquer medida que desmonte esse desenho causa impactos imediatos. Então, nesse sentido, ele é um sistema ainda muito frágil.

De 2017 para cá, nós tivemos uma coalizão anti-SUS. Vimos o governo federal cortando recurso e prefeitos ficando quietos, até elogiando ou fechando serviços, como aconteceu aqui com o Doria, que fez estruturação para fechar 100 unidades de saúde na cidade de São Paulo. O governo federal é demorado. Demorou mais de seis meses para fornecer vacina de febre amarela para os municípios. Os municípios não falavam nada, os governos estaduais não falavam. Não passou para São Paulo. São Paulo deveria ter recebido vacina da febre amarela já no final de 2015. Não recebeu. Não recebeu em 2016 e o Alckmin não falava nada. O que faz com que a gente tenha o primeiro indicador mais sensível, o aumento da mortalidade infantil depois de 16 anos de queda.

Também tivemos queda nas coberturas de vacinação. Porque tentaram responsabilizar o problema da imigração da Venezuela para trazer sarampo no Brasil. O problema é que a taxa de cobertura vacinal de sarampo caiu no Brasil inteiro. Se tivesse tido uma queda na região de Roraima, mas não. Foi no Brasil inteiro que caiu a taxa de cobertura vacinal de sarampo. A gente sempre teve, a partir dos governos Lula, taxas maiores que 90%. Quando eu estava no ministério chegou a ser 100% de poliomielite, sarampo e DTP (vacina para difteria, tétano e pertussis acelular [coqueluche]), que são as principais vacinas marcadoras para as crianças. Caiu para 80% de sarampo. Poliomielite caiu para 78%, abaixo do que a Organização Mundial de Saúde passa a considerar como algo muito crítico. Então, nós tivemos redução da cobertura vacinal em todo país. E o atual governo não tomou nenhuma medida ainda sobre isso.

Tivemos uma mudança muito grave que o governo Temer fez e que tem impacto na mortalidade infantil, na vacinação, e a mudança da política nacional de atenção básica. Entre essas mudanças, por exemplo, se passou a considerar que uma equipe de saúde da família não precisa mais de agente comunitário de saúde. Então, teve equipes que desmontaram. Aqui na região metropolitana de São paulo, na região do ABC, todas as várias prefeituras; os agentes comunitários de saúde foram mandados embora porque não era mais obrigatório existir. Então, tem mudanças que destroem a atenção básica no país, e que tem um impacto muito imediato.

Quais os impactos no sistema de saúde pública a partir da medida do governo Bolsonaro, que flexibiliza a posse de armas de fogo? 

Tem um impacto que a gente prevê, quando a gente faz um cálculo, por exemplo, sobre o ritmo de crescimento de homicídios por armas antes do Estatuto do Desarmamento e depois do desarmamento, em 2004. Antes de 2004, a cada ano aumentava 2.2 o número de homicídios por arma. A partir de 2004, isso caiu para quase 0.3, uma redução de quase 90% no ritmo de homicídios por arma de fogo no país.

A previsão que a gente tinha era que, se fosse manter a curva de antes do estatuto, a gente chegaria mais ou menos a 40 assassinatos por cem mil habitantes por ano. A gente chegou a 30, e mesmo assim, a gente é 30 vezes maior que a Europa, ou seja, somos um dos países que mais mata no mundo. É uma previsão muito grave. Primeiro em relação às vidas e segundo em um aumento do atendimento nos pronto-socorros, da demanda para urgência emergência, para o SAMU. Não impacta a vida só de quem for atingido por armas, vai aumentar a fila do pronto-socorro, do SAMU, e a demanda de todos os serviços de urgência  e emergência.

Depois, um aumento para o serviço de reabilitação, porque muita gente precisa fisioterapia e cuidados permanentes. De um lado, é feito um torniquete na saúde pública com o controle de investimentos e do outro são tomadas medidas que fazem com que haja mais pessoas, ou mortas ou doentes. Aqui na cidade de São Paulo, a gente teve a experiência do controle da velocidade nas marginais. Durante seis meses, não houve óbito na marginal, mas entrou o Dória e aumentou a velocidade. Voltou a ter óbito. Voltou a demanda ao SAMU. Para tentar reduzir, foi colocada uma frota específica do SAMU para ficar na beira da marginal. Isso retirou o SAMU do resto da cidade de São Paulo.

Em relação à discussão sobre a presidência da Câmara e de uma frente de oposição, como está o clima no Legislativo?

Está quente. É normal, janeiro sempre o mês de muitos bastidores, muita movimentação. No dia primeiro de de fevereiro tem a eleição da presidência das mesas e da definição das comissões. É importante todo mundo saber porque são eleições diferentes e parte importante das movimentações tem a ver com isso. Eu como deputado, e o conjunto da bancada do PT, temos dito que não aceitamos participar de uma chapa de um bloco com o PSL. Porque no dia primeiro de fevereiro vamos querer discutir uma medida para cancelar o decreto das armas de Bolsonaro.

Nós vamos defender modificações na medida provisória que Bolsonaro fez. A gente vai querer que o Consea (Conselho de Segurança Alimentar) volte. Vamos defender que as terras indígenas não fiquem sob o Ministério da Agricultura. É incompatível qualquer tipo de bloco com o PSL, pelas posturas e pelas falas dos seus líderes. Então, essa é uma primeira decisão que o PT já tomou, que a gente construa um bloco com partidos de centro-esquerda que tenham posições comuns às nossas, de defesa dos direitos sociais.

Vamos querer rever e ampliar os investimentos na saúde e educação, com partidos que não defendem a ideia da escola com censura e “sem partido”. Eu faço a defesa de que a gente componha um bloco com partidos de centro-esquerda, e tem muita conversa para rolar sobre isso ainda.

Na prática, são três eleições separadas: uma é a do presidente [da Câmara], onde podem ter uma, duas, ou três candidaturas. Os partidos e deputados votam. A outra, é a definição dos cargos da mesa, porque ela tem papéis diferentes. Além da presidência têm alguns cargos como secretaria, primeira e segunda, mesa diretora, que tem um papel importante na tramitação dos projetos da Câmara. E tem uma terceira, que para mim é a mais importante de todas, que são as comissões. Todo projeto que entra na Câmara dos Deputados, seja iniciativa de um deputado, do Senado ou do Executivo, tem que ser discutido nas comissões. Um projeto da área da saúde que Bolsonaro vai querer mexer, tem que ser debatido na comissão da saúde. Quando é uma medida provisória é passada para a comissão de medida provisória.

É muito importante a composição das comissões, e elas dependem de quantos deputados têm cada partido. Teoricamente, o PT seria o primeiro a escolher a comissão, porque temos a maior bancada. Mas é por isso que os partidos montam blocos, para ter mais votos que o PT e poderem escolher na frente. A preocupação que eu tenho, e que para mim é o centro da estratégia, é garantir que esses partidos de centro-esquerda possam ter um bloco que permita que a gente possa ser os primeiros a escolher as comissões. Talvez não consiga ser o primeiro, mas o segundo para que a gente fique com presença de comissões que sejam significativas para sistemas que vão ser debatidos na Câmara.

Não tem outro caminho para quem quer defender a população mais pobre no país, quem quer defender o MST, o meio ambiente, a saúde pública e a educação pública, que não seja estarmos juntos nesse momento. Um passo importante é fazer um esforço para ter um bloco que junte do PSOL ao PDT, partidos que tenham um compromisso com a agenda nacional, com direitos sociais, para estarmos juntos inclusive para definir quais as comissões são as mais importantes a serem ocupadas.

O ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, suspendeu a investigação sobre o caso Queiroz a pedido do próprio Flávio Bolsonaro. Por outro lado, o ex-presidente Lula continua preso em um julgamento cheio de controvérsias.

É gravíssimo. Um governo como esse, com as medidas que vem a tomar, só consegue sobreviver se estiver combinado com medidas de exceção muito claras que mostram um Estado absolutamente autoritário. O STF poderia suspender a investigação alegando que alguém envolvido tem foro privilegiado, como por exemplo deveria ter feito quando o Moro cometeu aquele crime inconstitucional de dar vazão à uma conversa telefônica de uma presidenta da República. O STF deveria ter agido naquele momento. Pode ser um dos motivos, talvez o único motivo, para o STF suspender. Queremos saber quem é que tem foro privilegiado e está envolvido. Quem recebeu dinheiro do Queiroz e está envolvido com esse caso. É a única justificativa para suspender uma investigação como essa.

É um governo que vai se sustentar em uma justiça absolutamente seletiva, com a tutela militar, que é o que a gente vê cada vez mais, com ameaça militar o tempo todo em relação às medidas e com a combinação de governos estaduais que também passam a adotar cada vez mais medidas autoritárias. Um exemplo é o Dória com a repressão da polícia militar à manifestação aqui na cidade de São Paulo, e do governador do Rio de Janeiro que tem práticas de censura todo dia. Quero ver o que vai fazer com o carnaval. Estamos vivendo um momento no país de afronta total à democracia e ao Estado democrático de direito.

Logo depois da eleição defendi que os partidos de esquerda, a Frente Brasil Popular, montasse de imediato uma verdadeira rede de apoio e acolhimento às pessoas que estão sendo vítimas e tendo seus direitos violentados, porque acho que essa vai ser uma prática crescente no país, pensando em 2019 com muito enfrentamento. Os gabinetes precisam estar à disposição disso, nosso mandato parlamentar vai estar aberto para isso.

Como você está acompanhando essa onda de desinformação que tem sido propagada?

É gravíssimo. Não é à toa que várias pessoas têm escrito e falado isso e como isso significa um ataque à democracia. A democracia pressupõe que se tenha um espaço público de debate, de checagem das informações. Porque a partir daí você convence as pessoas a se mobilizarem ou não, a partir daquilo que elas defendem.

Eu não tenho dúvida que isso é um ataque gravíssimo à democracia, compõe um exercício autoritário do governo, ainda mais um governo que fica o tempo todo tentando criar inimigos. É uma característica dos governos fascistas, de tentar o tempo todo canalizar o medo, o sentimento de ódio dentro da sociedade à algum inimigo interno ou externo.

O nazifascismo foi o iniciante das fake news. Nos últimos anos a gente vinha conquistando pela democracia os espaços públicos de debate, às vezes com o monopólio econômico que seja, mas pelo menos se tinha mediação disso, e o momento das fake news acaba com tudo isso. E está cada vez mais claro que o que foi feito durante a campanha do governo Bolsonaro foi uma espécie de projeto piloto experimental de uma forma de a extrema-direita atuar no mundo todo. Tentaram reproduzir a experiência com o WhatsApp também no debate das eleições parlamentares europeias. Vários países da Europa estão inclusive debatendo mudanças de legislação para não permitir essa ação agressiva através das redes sociais com a disseminação das fake news.

Outros países aqui da América Latina também estão tentando mudar suas legislações para tentar impedir isso, porque todo mundo percebeu que é um ataque grave à democracia.

Uma das narrativas que gente mais ouve em relação ao SUS é que “o SUS não presta”...

Se formos nos guiar apenas pelo o que aparece na televisão, redes sociais, ou nas críticas… Toda vez que aparece alguma falta de atendimento, uma perda de qualidade de atendimento - não estou negando que exista, precisamos melhorar muito o sistema de saúde -  sempre fazem questão de ter imagem do SUS. Toda vez que é uma coisa boa, ninguém fala que é do SUS, não falam nem o nome do hospital às vezes. Esse é o embate político que tem interesses por trás, sobretudo interesses privados.

O Brasil cometeu uma ousadia, que é: um país com 200 milhões de habitantes buscar construir um sistema público, universal e gratuito. Nenhum país com mais de 100 milhões de habitantes cometeu essa ousadia. A gente vai na contramão de muitos interesses privados que estão nesses outros países e querem entrar no Brasil, com cada vez mais força. Por isso o esforço permanente de destruição do SUS.

Sou daqueles que acham que a gente precisa lutar muito por um SUS de muita qualidade, mas precisamos reconhecer os avanços que tivemos nos últimos 30 anos. Sem o SUS não teríamos reduzido a mortalidade infantil, não teria transplante público, não existiria SAMU. Os bancos de sangue, por exemplo, são um dos motivos simbólicos de função do SUS. Na década de 1980, com os bancos privados,havia venda do sangue enquanto mercadoria. Milhares de pessoas se contaminaram com HIV, Hepatite B e Hepatite C porque não se tinha nenhum controle público dos bancos de sangue como temos hoje no país, com programa de imunização.

A luta por melhoras obviamente está colocada.

AP: Tem muita coisa que presta e coisa que não presta no SUS. E a gente precisa lutar para melhorar o que não presta. Não podemos abrir mão da saúde como direito e de ter um sistema nacional público no país. 75% da população brasileira só tem o SUS. Não tem outra alternativa de cuidado. E os outros 25% usam o SUS sem dizer que estão usando.

Muitas vezes, a pessoa vai no médico privado, tem plano de saúde, mas na hora de pegar um medicamento vai na farmácia popular porque pode pegar o remédio de graça. Às vezes, um medicamento custa 6, 7 mil, e pega pelo SUS porque tem o direito de pegar. Os transplantes, que são extremamente caros, 96% são realizados pelo SUS. Um cirurgião plástico na Faria Lima, que cobra privado, ele só é cirurgião plástico porque um dia treinou no Sistema Único de Saúde. Nem os médicos mais caros seriam profissionais de saúde se não tivessem treinado no SUS.

Edição: Mauro Ramos