Milícias

Aliança de policiais com crime organizado vem desde a década de 50, diz escritor

Aloy Jupiara, um dos autores de “Os Porões da Contravenção”, conversa sobre as origens históricas dessa articulação

Brasil de Fato | Brasilia (DF) |
Coronel Paulo Malhães (esq.), comandou a Casa da Morte no Rio de Janeiro e foi um dos oriundos da repressão a se associar ao jogo do bicho
Coronel Paulo Malhães (esq.), comandou a Casa da Morte no Rio de Janeiro e foi um dos oriundos da repressão a se associar ao jogo do bicho - Comissão da Verdade

Uma força-tarefa do Ministério Público e da Polícia Civil realizada no mês de janeiro aponta proximidade da família Bolsonaro com milicianos no Rio de Janeiro. Apesar de grave, este é apenas mais um exemplo de uma dinâmica presente há décadas no estado. 

No livro “Os Porões da Contravenção – Jogo do Bicho e Ditadura Militar: a história da aliança que profissionalizou o crime organizado” [Editora Record], os jornalistas Chico Otávio e Aloy Jupiara dissecaram a gênese do crime organizado contemporâneo. 

Na fórmula, que se conformou nos anos 70, jovens bicheiros, policiais integrantes de grupos de extermínio e militares oriundos da repressão e da tortura se articulam para estabelecer novos padrões de atuação criminosa. Um dos frutos foi justamente a expressão político-institucional deste novo arranjo. 

Em entrevista ao Brasil de Fato, Jupiara afirma que a cobertura policial ao jogo do bicho tem um longo histórico: “No mínimo, [esta aliança] vem da década de 50, mas pode ser anterior”. À época dos fatos relatados no livro-reportagem, não havia ainda o formato de milícias, mas o jornalista entende que “as experiências registradas no livro, também estão na raiz nas atividades das milícias”, já que parte dos métodos é bastante similar. 

Confira a entrevista:

Brasil de Fato: O livro retrata a aliança entre agentes da repressão militar com o crime organizado. Como se deu esse processo? 
Aloy Jupiara:
Quando ocorreu a decisão de diminuir ou acabar com a repressão política efetivamente -- com os porões -- e, ao mesmo tempo, iniciar uma abertura política, os torturadores e o pessoal mais diretamente envolvido na repressão se sentiu traído pelo regime [militar]. E foram procurar outros espaços onde eles pudessem ter o mesmo poder de vida e morte que tinham. Quem abriu esse espaço para eles foi o crime organizado, que naquele momento, no Rio de Janeiro, dominava a cidade. E foi o jogo do bicho que acabou fazendo uma aliança com esses grupos. 

O comando das Forças Armadas tomou ciência desse processo? 
Sim, tinham ciência. 

E onde os grupos de extermínio, compostos por policiais, entram? 
O jogo do bicho já tinha uma aliança muito forte com a polícia. [Uma aliança] histórica com a Polícia Civil e com a Polícia Militar. Era um jogo de corrupção onde eles usavam a polícia para se proteger, para saber quando ia haver algum tipo de operação nas regiões em que atuam. Os grupos de extermínio do passado, muitas vezes, estavam a mando de quem? Dos bicheiros. 

A relação entre policiais e jogo do bicho data de que época? 
No mínimo, vem da década de 50 para cá. Pode ser anterior. Há registro de policiais dando cobertura para o bicho desde aquela época. Os grupos de extermínio, da década de 60, atuavam por si só, mas também atuaram a pedido de bicheiros. Desde essa época havia uma relação íntima entre esses grupos. Só foi se agravando. Assim como há casos de policiais que deram sustentação ao tráfico. 

Quais as consequências entre essa aliança entre repressão e crime organizado? 
Naquele momento, estava havendo uma redistribuição territorial pelo jogo do bicho. Até os anos 60 e início dos 70, a cidade era muito fracionada. Havia muitos bicheiros com áreas pequenas. Surge uma geração nova, naquela época, formada, por exemplo, por Castor de Andrade, por Anísio Abraão David. Esse grupo começa a se articular para formar a cúpula do jogo do bicho, do crime organizado. O que eles pensam? 'Não podemos ter territórios tão fracionados, precisamos de uma cúpula enxuta, com poucas cabeças que mandam em grandes áreas'. 
Acontece uma guerra por conta disso. Essas pessoas que se reuniram para formar a cúpula ou compravam [os pontos de jogo], com base em ameaças, ou simplesmente matavam. 
Aí se juntam as duas coisas. Os bicheiros já tinham seu grupo armado, baseado em policiais militares e civis, que vinham dos antigos grupos de extermínio. Eles pegaram esses grupos e juntaram com os agentes da repressão. Os agentes militares possuem conhecimentos que os assassinos de aluguel não tinham. Era um conhecimento de organização, hierarquia e centralização. Uma das pessoas que levou a essa noção e que ajudou a formar a cúpula foi o o capitão [Aílton] Guimarães [Jorge]. Ele não foi a única pessoa. Outros bicheiros foram recrutando outros elementos. Os policiais não tinham conhecimentos que o grupo militar podia dar para o jogo do bicho. A gente de chama de processo de profissionalização que foi guiado por esse militares oriundos dos porões da ditadura, que contribuiu para mudança da territorialização do crime na cidade. 

A questão da divisão territorial daquela época é o que origina o que estamos vendo no Rio de hoje? 
Esse é o ponto que você pode pegar para explicar o que acontece hoje, ou o que aconteceu de lá para cá. O que há hoje na cidade do Rio de Janeiro? Um processo intenso de retalhamento da cidade. Só que hoje, nesse processo atuam três grupos: os próprios bicheiros -- ao contrário do que muita gente acha, continuam controlando territórios, eles substituíram pelas máquinas de caça-níqueis --, o tráfico de drogas, que ao longo dos anos 70 para cá cresceu exageradamente, e as milícias. 
O que a gente vê hoje no Rio é uma reorganização dos territórios, com intersecções. Às vezes, você encontra na área de tráfico máquinas de níqueis, que em geral tem um selo e marca do bicheiro ao qual pertencem. Como pode conviver no mesmo limite territorial um grupo e outro? Como há essa negociação ainda não foi apurado.  É o tipo de reportagem e de livro que ainda está por ser escrito. 

A presença de bicheiros nas escolas de samba do Rio é algo que beira o folclórico. Mas é uma imagem, ao menos fora do Rio, que perdeu um pouco de força. Por quê? 
As escolas existiam antes dos bicheiros. Elas já seriam o maior espetáculo da Terra independentemente dos bicheiros. Eles não são a alma das escolas. A alma são as comunidades dos sambistas. Os compositores, os ritmistas. Mas eles entraram, dominando. E teve um efeito ruim sobre as escolas: eles impossibilitaram o surgimento de lideranças comunitárias dentro do samba que pudessem administrar as escolas. Qual sambista que quer ser presidente de escola e vai enfrentar bicheiro cercado de seguranças? Nenhum. Pouquíssimas escolas têm sambistas como presidentes, dirigentes. O Bicho inviabilizou isso. 
Uma das razões pelas quais eles entraram nas escolas de samba é para conquistar um espaço de reconhecimento público junto às classes médias e alta. No momento em que a [juíza] Denise Brossard os condena [em 1996], e eles saem da cadeia, se recolhem. Os negócios continuam, mas eles passam a não querer o foco e os holofotes. 
Mas ficou claro que eles continuaram a frente disso quando houve a Operação Furacão, em 2006. Em março de 2012, foram condenados -- Capitão Guimarães, Anísio e Turcão -- no primeiro processo a 48 anos. Houve uma pequena reforma dessa pena que caiu para 47. Em 2015 houve o julgamento do segundo processo e foram de novo condenados a 25 anos, mas permaneceram em liberdade, como estão até hoje. E tem o julgamento de segunda instância marcado para o dia 19 [de fevereiro]. Tem que levar em conta também que eles têm idade avançada. 
Hoje, nós já temos a nova geração, os filhos deles. Alguns estão sendo preparados para substituí-los. E há guerra, em algumas famílias, nessa sucessão. A maior delas foi na sucessão do Miro [Waldemir Garcia], que foi patrono da Salgueiro por muito tempo, com o assassinato do Maninho, seu filho. 

Esse prestígio social ligado à escola de samba também se articula com o prestígio político? 
Em relação ao jogo do bicho, embora seja generalizada a ideia de colocar pessoas dentro das instituições políticas, o caso exemplar talvez tenha seja o caso da família do Anísio Abraão David em Nilópolis. Eles entram na Beija-Flor. E se aproximam em meados dos anos 60 e no início de 70 eles entram de vez. 
Anisío é ligado, por exemplo, ao Simao Sessim, que só foi derrotado agora na última eleição para deputado federal. Ele foi prefeito de Nilópolis. Desde aquela época ele era eleito deputado federal. Uma associação de coisas: popularidade, pelo domínio da escola de samba, o poder físico porque o bicho é controlado por eles e o poder institucional, de criar deputados federais, prefeitos. E uma coisa que a milícia faz hoje: formar advogados, para dar suporte. 
Talvez a milícia tenha se inspirado. Eles acabaram usando as mesmas estratégias que o bicho usava na guerra particular que estavam travando por domínio de território. 

Existe alguma narrativa jornalística que tenha estabelecido uma relação direta entre o jogo do bicho e o surgimento das milícias? 
Não existe. Eu não diria que a origem está no bicho. A origem está em muito lugares, inclusive na forma como o bicho lidou com o domínio de seus territórios. A milícia usa algumas das mesmas "tecnologias". Além de brigar entre si, eles trocam experiências, um emula o que veio do outro. As experiências lá de trás, registradas no livro, também estão na raiz nas atividades das milícias. É um mosaico. 
 

Edição: Katarine Flor