Minas Gerais

Opinião

Artigo | Deus nos quer na luta pela vida

A certeza da impunidade conta com o nosso esquecimento

Brasil de Fato | Belo Horizonte (MG) |
O rompimento da barragem não se pode atribuir a natureza. A responsabilidade por essa tragédia é da empresa Vale
O rompimento da barragem não se pode atribuir a natureza. A responsabilidade por essa tragédia é da empresa Vale - Foto: Sarah Torres/ALMG

O texto do Evangelho de Lucas 4.14-21 fala da missão de Jesus. Jesus proclama que sua missão é fazer uma diferença positiva nesse mundo. Ele não veio para castigar, condenar, ameaçar as pessoas com o fogo do inferno. Nada disso. Jesus veio para transformar esse mundo de maneira positiva. Jesus anuncia que ele sabe muito bem o que Deus espera dele. Evangelizar os pobres. Proclamar a libertação aos cativos. Restaurar a vista aos cegos. Colocar em liberdade os oprimidos. Anunciar o ano aceitável do Senhor – isso é – anunciar um tempo de transformação, um tempo de reconstrução.

Jesus foi enviado por Deus para nos mostrar o caminho para Deus por meio do amor ao próximo e do cuidado com a criação.  Por isso ele diz que ele foi ungido. Ungido é uma pessoa que recebeu claramente uma missão e vai cumpri-la em nome de Deus. Nesse sentido, creio que esse texto da missão de Jesus pode nos auxiliar a entender também a nossa missão como igrejas e como cristãos, nesse momento em que todos estamos chocados com os acontecimentos do drama, da tragédia, da catástrofe que aconteceu na sexta-feira dia 25 de janeiro em Brumadinho.

Mais uma vez vemos imagens de destruição massiva do meio ambiente, escutamos vozes angustiadas de familiares que não sabem de seus parentes e amigos. Mais uma vez vemos pessoas que perderam tudo que tinham na vida e agora não sabem que caminho seguir. Brumadinho ficará conhecida como o palco de uma das maiores catástrofes do Brasil.

O rompimento da barragem não se pode atribuir a natureza. A responsabilidade por essa tragédia é da empresa Vale. Todos nós concordamos que se a responsabilidade é da empresa, então ela deve assumir a indenização das famílias e a reparação do estrago feito ao meio ambiente. Mas pela experiência em Mariana (2015), onde as famílias afetadas ainda hoje esperam alguma indenização, o sofrimento dessas famílias de Brumadinho também pode se alongar por anos em sua luta pela reparação de suas vidas.

Todos nós também concordamos que os minérios são necessários para o desenvolvimento econômico de Minas Gerais, do Brasil e do mundo. As prefeituras das cidades com exploração mineral necessitam das empresas para gerar empregos e impostos para o município. Assim é também com o estado e o país. Mas catástrofes como de Mariana e agora de Brumadinho podem ser evitadas.

Não se trata de ser contra o desenvolvimento do município, do estado ou do país, mas por que as empresas poderosas são tão negligentes com o cuidado da vida e da criação de Deus? Todos nós sabemos que uma das razões é a impunidade. Quem tem dinheiro encontra um jeito para estender juridicamente qualquer punição. E os poderosos também sabem que podem contar com o nosso esquecimento como sociedade. Hoje muitas pessoas ainda estão indignadas, mas daqui a 15 dias a vida de todos nós terá seguido em frente, as vítimas já não estarão nas manchetes dos jornais. Ou seja, a certeza da impunidade conta com a nossa colaboração, com o nosso esquecimento. Para que daqui há alguns meses não aceitemos que venham dizer que é importante que a empresa, que agora está suspensa juridicamente, volte a funcionar. Se esquecermos, daqui a um mês as vítimas vão estar lutando sozinhas.

Será que Deus tem alguma coisa a dizer sobre isso? Acho que Deus está angustiado por querer um contato conosco.

Primeiro, Deus é o Criador dos céus e da terra. Não importa se você acredita que o planeta Terra foi formado a 4,5 bilhões de anos atrás e não em 6 dias. O cientista francês Louis Pasteur, cujas descobertas tiveram enorme importância na história da química e da medicina (e graças a essas descobertas hoje temos várias possibilidades de prevenir e tratar doenças), disse uma vez: “Um pouco de ciência nos afasta de Deus. Muita ciência nos aproxima de Deus”. Portanto, pessoas da ciência ou da religião temos uma coisa em comum. A natureza precisa ser cuidada, a vida é algo frágil que desaparece com um sopro.

Segundo, Jesus nos chamou a viver o amor. O amor não deixa ninguém sofrendo sozinho. O amor se solidariza. Portanto, Jesus nos chama a não abandonar as pessoas em seu sofrimento. Mesmo que a catástrofe deixe de ser notícia nas mídias, deveríamos nos interessar por acompanhar a luta dessas vítimas – como um mandato de Jesus.

Terceiro, catástrofes como essas podem ser evitadas. Elas não precisam acontecer. Elas só acontecem por causa da negligência, por causa da falta de fiscalização, por causa do abrandamento de leis ambientais para não prejudicar o desenvolvimento econômico. O nosso pais precisa de empregos – são 12 milhões de desempregados e outros 24 milhões vivendo por conta própria. Mas as empresas precisam ser mais fiscalizadas com o cuidado da vida. Tem muita empresa que joga água contaminada nos rios. Tem muita empresa que torna difícil respirar por causa dos resíduos que elas jogam no ar. E tem muitas outras barragens aqui em Minas Gerais e outros estados do Brasil que já foram declaradas não seguras e com alto risco de romper – e mesmo assim, as empresas não tomam nenhuma providência. É claro que precisamos de desenvolvimento econômico, mas com segurança.

Portanto, penso que as igrejas cristãs e todas as religiões devemos assumir nosso papel de ser mais vigilantes com o cuidado da vida. Nós perdemos muito quando os conflitos políticos partidários nos colocam uns contra os outros. Isso não deve continuar assim. Acima de nossas preferências políticas deve estar o nosso compromisso com a vida e o cuidado da criação de Deus. Devemos deixar os conflitos de lado. Aos governantes compete governar pelo bem de todos e a nós como igreja compete estar alertas para que a vida não seja colocada em risco por interesses econômicos particulares. Pois, a catástrofe de Brumadinho não foi vontade de Deus. A morte e o sofrimento dessas pessoas não foi vontade de Deus. Não foi Deus que quis assim.

Essas mortes, essa destruição ambiental e esse sofrimento é responsabilidade da empresa Vale, da omissão dos governos e organismos de fiscalização que foram negligentes em seu trabalho.

Mas não adianta apenas lamentar e chorar sobre o leite derramado. Chegou o tempo da solidariedade – de não deixar as famílias lutando sozinhas. Se elas tiverem que protestar pelas ruas pelos seus direitos, deveríamos apoiá-las e protestar junto com elas. E também devemos ser vigilantes para não deixar que outras catástrofes como essa venham a acontecer em outros lugares – com a desculpa que precisamos do desenvolvimento econômico. É possível ser um pais mais desenvolvido e viver melhor sem matar ou destruir. Portanto, independente de nossa preferência política partidária, somos todos e todas filhos e filhas de Deus, e Jesus nos diz de maneira muito clara - que nós também devemos fazer uma diferença positiva nesse mundo - que nossa missão é nos unir na defesa da vida e de toda a Criação de Deus.

Na igreja luterana nós insistimos em nossos cultos que a Palavra de Deus não pode ser semeada e ficar estéril dentro do nosso coração. Se a Palavra de Deus ficar apenas no nosso coração, ela murcha, seca e morre. Portanto, a Palavra de Deus - para permanecer viva - ela precisa de ar livre, ela precisa ser aplicada no dia a dia. Deus nos chama a viver a sua palavra em solidariedade na luta pela justiça e no cuidado com a sua Criação. Esse é o chamado para cada um(a) de nós. Fiquem com Deus.

Pastor Nilton Giese é da Comunidade Evangélica de Confissão Luterana em Belo Horizonte.

Edição: Elis Almeida