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Ajuda israelense teve motivação teológica

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É preciso agradecer a ajuda, mas é necessário lembrar que a motivação do Estado de Israel foi tanto humanitária como ideológica
É preciso agradecer a ajuda, mas é necessário lembrar que a motivação do Estado de Israel foi tanto humanitária como ideológica - Foto: Embaixadada de Israel
Além de se curvar para os EUA, Brasil de Bolsonaro dobra espinha no campo moral

Os soldados, técnicos e oficiais israelenses chegaram rápido a Brumadinho, ainda no domingo. Trouxeram toneladas de equipamentos sofisticados e inservíveis. O número de desaparecidos em razão do crime da Vale estava em torno de 180 e em breve a estimativa seria revista para cima, passando de duas centenas.

Assim como chegou, a tropa de cerca de 130 homens e mulheres voltou celeremente para seu país, na quinta-feira. Boa parte dos equipamentos não foi desencaixotada e o número de vítimas já batia algumas dezenas acima. A relação com as equipes locais foi tensa e criou um indesejável duplo comando.

Mas é preciso agradecer a ajuda e o trabalho dos israelenses, que deixaram seu país para colaborar com o resgate de cidadãos brasileiros atingidos pela ganância da empresa, subserviência de alguns representantes de conselhos ambientais e políticos financiados por mineradoras. Foi um exemplo de solidariedade internacional que vai contra as ondas recentes de nacionalismo e mesmo da história recente do país. No entanto, é necessário também lembrar que a motivação da ajuda do Estado de Israel foi tanto humanitária como ideológica ou, mais propriamente, religiosa.

Desde a campanha eleitoral o presidente Bolsonaro vinha patrocinando a pauta evangélica ultraconservadora, enviando sinais de atração a Israel. Prometeu mudar a sede da embaixada brasileira para Jerusalém (seguindo o exemplo dos EUA de Trump), intensificar o comércio entre os dois países e adquirir tecnologia para enfrentar a seca no Nordeste com projetos de dessalinização da água do mar. Uma agenda que afrontava o reconhecimento histórico da diplomacia brasileira ao Estado palestino e apontava ainda a mudança de rota em relação aos países árabes.

As três medidas se mostraram polêmicas e ficaram apenas na retórica. A embaixada segue em Tel Aviv e tem gerado comportamento errático por parte de vários integrantes do governo e da família do presidente, incluindo o vice-presidente, o chanceler e o filho zero-dois, que continuam batendo cabeça sobre o tema.

O comércio com a região ficou comprometido com a interrupção de compra de carne de frango de alguns frigoríficos brasileiros por parte de países árabes, que reagiram ao realinhamento diplomático anunciado. Os prejuízos imediatos foram contabilizados em escala muito maior que o eventual incentivo do comércio com Israel. Sem ganhar nada com suas bravatas, o Brasil saiu perdendo de imediato, apenas para bancar um discurso sabujo aos interesses norte-americanos.

Em relação às ações contra a seca envolvendo tecnologia israelense, não apenas o funcionamento das usinas prometidas já era conhecido por pesquisadores brasileiros, como as novas usinas se mostraram bem menos efetivas que outros projetos desenvolvidos para o semiárido. Entre eles, a construção de cisternas, implantado com sucesso desde o primeiro governo Lula, e a transposição do São Francisco. 

Mesmo assim, Benjamin Netanyahu veio para a posse de Bolsonaro e foi tratado como estrela internacional, o que nunca havia sido por motivos positivos. Andou na praia, tomou caipirinha, posou para fotos. Mas pagou o preço nas agendas oficiais.

A recepção ao primeiro-ministro israelense no Brasil teve como ponto alto o contato com lideranças cristãs, sobretudo evangélicas. Foi recebido pelo governador-bispo Crivella, com a presença de pastores de várias igrejas, como Malafaia e Malta. Paparicado pelo concílio neopentecostal, devolveu o tratamento reconhecendo a importância dos evangélicos para seu país, lembrando-se, certamente, do turismo teológico vendido a prestações pelas empresas ligadas ao telenegócio da fé.

Faltava inaugurar a nova fase com uma ação exemplar. Como a transferência da embaixada patina no pragmatismo capitalista (empresários cultuam o dinheiro – muito mais que Deus – acima de todos) e a transformação do Nordeste em Jardim do Éden micou no realismo do aquecimento global, faltava um fato de peso para inaugurar a parceria. O crime da Vale, de forma hedionda, deu o argumento.

Sem maiores conversas com os responsáveis brasileiros pelas ações de resgate, foi anunciada a chegada de uma missão israelense na região. Todos sabem o valor político de um trabalho como este no cenário internacional, sobretudo para um país marcado por desmedidas relações militares com povos da região. Sem falar na abertura de novas frentes de relacionamento com o país, principalmente na venda de tecnologia.

Até aí, faz parte do jogo de um novo governo, que tem o direito de realinhar sua política externa, dentro do ordenamento jurídico internacional. O que espanta é a motivação real da aproximação com Israel. O fato de ter na sua base a influência evangélica conservadora é um precedente perigoso. Não se trata de uma aproximação marcada pela racionalidade dos negócios ou da política, mas pelos desvios teológicos ou teocráticos que caracterizam o governo Bolsonaro.

A relação dos evangélicos com Israel não passa pela geopolítica, mas pela religião. Para os neopentecostais, Jerusalém não é apenas o lugar que abrigou o templo sagrado no passado, mas a cidade que vai dar nascimento à retomada da profecia. A volta do salvador está ligada umbilicalmente à cidade considerada santa, que por isso precisa ser expurgada das influências heréticas e protegida em seu futuro escatológico.

Evangélicos, como as antigas tribos de Israel, também acreditam que são eleitos. Não no sentido político da palavra, mas na dimensão mística. E, é bom frisar, seguem em sua fé na distinção a matriz norte-americana conservadora, que é um dos pilares de sustentação do governo Trump. Ou seja, além de se curvar para os EUA em matéria de economia, o Brasil de Bolsonaro, por meio de suas igrejas neopentecostais, dobra a espinha no campo moral.

Pode parecer que esse é um aspecto menor, quando se pensa no país em sua dimensão econômica, social e política. Mas assim como o ultraconservadorismo abriu o campo para a vitória eleitoral, a nova institucionalidade saberá cobrar seus interesses na hora certa. Mesmo que para isso tenha que entregar sua maior reserva de dignidade. Deus não está na goiabeira. Se ele existe, deve estar na lama onde o puseram.

Edição: Joana Tavares