Entrevista

Carol Proner: Pacote "anticrime" aumentará mortes de inocentes e agentes públicos

Jurista afirma que medidas propostas pelo ex-juiz e agora ministro da Justiça, Sérgio Moro, são "catastróficas"

Brasil de Fato | São Paulo |

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Carol Proner, membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia
Carol Proner, membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia - José Eduardo Bernardes

Uma das juristas mais respeitadas do Brasil, Carol Proner, doutora em Direito Internacional pela Universidade Pablo de Olavide, em Sevilha, na Espanha, concedeu entrevista exclusiva ao Brasil de Fato sobre o pacote de medida lançado pelo ex-juiz de primeira instância e agora ministro da Justiça, Sérgio Moro, na segunda-feira, dia 4 de fevereiro. Para ela, muitas medidas previstas no chamado pacote “anticrime” ferem princípios constitucionais e possuem caráter meramente populista.

Proner concorda com os juristas que afirmam que o projeto de Moro terá consequências negativas em termos de segurança pública. "Ele [Moro] atrai para si a responsabilidade do punitivismo, da letalidade, da violência, da matança social, do genocídio, a partir de um projeto que é uma fraude, na minha opinião, e que está traindo as expectativas do povo de que nós teremos paz social. Nós teremos guerra, teremos mortes, não só de bandidos, como ele gosta de dizer, não só de inocentes, mas também de agentes públicos, de modo generalizado, de todos aqueles que estejam na base da pirâmide social brasileira", critica a jurista.

Ela ainda fez duras críticas à figura de Moro como ministro da Justiça: "Ele deixou a carreira de magistrado, uma carreira com todas as garantias dos sonhos de muitas pessoas que ingressam no campo do direito, para se tornar um herói do combate à corrupção. No entanto, agora, já nos primeiros sinais de corrupção da família Bolsonaro, do clã, com ligações com milícias, coisas tenebrosas, ele se cala, ele é silente, ele é omisso".

Confira a entrevista na íntegra:


Brasil de Fato: Quais os possíveis impactos do “pacote anticrime”, divulgado na semana passada pelo ex-juiz e agora ministro da Justiça, Sérgio Moro?

Carol Proner: Acho que tem sido o assunto da comunidade jurídica, principalmente entre os criminalistas e as associações de defesa dos direitos e garantias constitucionais, as garantias fundamentais. É muito impactante, a começar pelo título. Um projeto de lei “anticrime”, ou seja, uma pretensão enorme de pretender resolver as questões de segurança pública, mas profundamente punitivista.  Temos aí os institutos de direito criminal mais importantes do país, que já fazem pesquisas com estatísticas e números precisos da violência organizada ou não organizada da nossa sociedade, que mostram que a solução não está no aumento do punitivismo, mas nas soluções racionais. Então é muito impactante e triste que, em um momento como o que o Brasil vive, logo nesse início do ano, quando o país ainda está se recuperando de tantos traumas democráticos dos últimos dois anos, a gente tenha logo "de presente" um pacote de alteração de quase 14 dispositivos legais, dos mais variados, do Código Processual Penal, da Lei de Execuções Penais, do Código Penal, das leis especiais, inclusive a de organizações criminosas de 2013, aproveitando-se de um clamor emocional da sociedade por justiça, por combate à corrupção sistêmica. Se esse projeto for aprovado como ele está, da forma como ele está sendo encaminhado, será um genocídio, como tem sido dito, um genocídio ainda maior dos menos privilegiados, dos mais vulneráveis da sociedade.

Há um ponto específico do projeto de Moro que tem sido entendido por muitos especialistas como uma licença para matar dada aos policiais. Qual a sua opinião sobre esse tema?

Na proposta de alteração do artigo 23 do código penal, o projeto diz: “o juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixá-la de aplicar se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Então, um agente público, agindo em legítima defesa, frente a um medo escusável, a uma surpresa ou uma violenta emoção é algo que não precisa ser criminalista para entender que, evidentemente, isso é uma licença para matar. Isso faz coro com aquela máxima do Bolsonaro durante a campanha eleitoral: “soldado nosso não senta no banco dos réus”, ele dizia. Então é isso: “soldado nosso, diante de um medo escusável, pode matar. Diante de uma violenta emoção, será escusado da responsabilidade”. E sem contar o seguinte: no artigo 25, que ele também propõe a alteração de redação, menciona-se que “o agente policial em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado, que previne injusta ou iminente agressão, que previne agressão ou risco de agressão...”, ou seja, a prevenção passa a ser também uma autorização de ataque da polícia, na prática. Então, isso gera, sem dúvida nenhuma, uma licença para matar. É a apologia à violência penal, é o populismo, a ideia de que "bandido bom é bandido morto", e que tudo isso faz com que o policial possa se sentir mais seguro. Quando nós sabemos: vai aumentar a violência generalizada e o policial também será mais abatido. 

Assista um resumo da entrevista com Carol Proner:

Há também uma questão sobre a prisão após condenação em segunda instância, legalizando uma prática que o Sérgio Moro já vinha defendendo como juiz de primeira instância. Sobre esse aspecto, qual a sua avaliação?

Essa questão é o número 1 do Código [de Processo Penal], vem logo no primeiro capítulo e é talvez, o ponto chave para o juiz, ou melhor, o ministro Sérgio Moro. Na leitura desse código anticrime, como ele titula, nas entrelinhas, nós encontramos a legalização, através dessas alterações propostas, da Lava Jato, naquilo que é excepcional, que excede a lei, que é ilegal até o momento. Então, essas alterações, em grande medida, servem para tentar regulamentar, legalizar, muitas das medidas que foram testadas de uma forma excepcional na operação de combate à corrupção, fazendo uma analogia ao combate ao terrorismo, aos crimes de organizações criminosas, etc. Essa primeira medida, para assegurar a execução provisória da condenação criminal após julgamento em segunda instância é, para ele, uma questão fundamental, para regulamentar tudo o que ele vinha apoiando. Ele tenta regular isso via alteração de lei ordinária, fazendo tábula rasa completamente a um princípio, uma garantia constitucional que para nós é inegociável, que é a presunção de inocência. 

O projeto de lei "anticrime" é essencialmente inconstitucional. Todas as propostas de endurecimento penal, de criminalização, esbarram nos direitos fundamentais duramente conquistados depois da ditadura militar com a redemocratização. E a tendência é o fracasso mais absoluto. Inclusive, isso é dito por pessoas que nem estão em uma linha, digamos, garantista ou de defesa dos direitos humanos. Pessoas realmente responsáveis, preocupadas e engajadas na construção de um sistema de segurança pública que possa diminuir os cárceres, os presídios, os números de presos, que nem respondem ainda a um processo, estão presos cautelarmente. Então é realmente assustador.

Também há uma tentativa de institucionalizar a delação premiada através desse pacote anticrime.

Ele importa o plea bargain, que é um sistema norte-americano, que lá está sendo revisto; quer dizer, ele está importando o início de uma tentativa de solução de controvérsias no âmbito do processo penal, que, hoje em dia, se a gente vai no sistema norte-americano, eles estão revendo. A sociedade que mais prende no mundo, mais presos possui, que são os Estados Unidos, já leva em consideração que esse é um sistema que não funcionou. Há um debate importante que precisa ser feito, porque de fato isso pode gerar efetividade processual penal. Mas da forma como está proposta, seguindo esse sistema norte-americano, sem a contextualização com a situação brasileira e sem a contextualização com os próprios problemas que esse sistema importado, esse estrangeirismo, traz para o nosso sistema penal, será, como tem sido dito pelos criminalistas, catastrófico também. No caso da delação premiada, nós já vimos o que aconteceu na Lava Jato. Delações escolhidas a dedo, em um processo seletivo em que só algumas interessaram, outras não interessaram, contra alguns interessaram e contra outros não interessaram. Essa seletividade faz com que a Operação Lava Jato se desmoralize completamente. E também serviu quase como um método psicológico e físico de tortura. Você está preso e sai se fizer uma delação que interesse, contra determinados alvos, normalmente políticos e se você sair ainda fica com uma parte do que roubou, do que desviou, do que indevidamente gestionou, caso sua contribuição seja efetiva para a finalidade proposta, que é, dentro da seletividade penal, a perseguição política. 

E há coisas que também não estão tão claramente ditas nesse projeto, né?

Na minha área [Direito Internacional], tem algo que é especialmente indignante, que é o ponto 18 do projeto, que fala sobre “medidas para aprimorar o processo criminal”. Há uma proposta de alteração legal, que fala da lei das organizações criminosas, e que menciona que “o Ministério Público Federal e a Polícia Federal poderão firmar acordos e convênios com congêneres estrangeiros para constituir equipes conjuntas de investigação para apuração de crimes de terrorismo transnacionais ou cometidos por organização criminosa internacional”. As atribuições, as competências e a composição dessas equipes de investigação conjuntas dispensam, segundo a proposta de alteração do artigo terceiro da lei, a formalização ou autenticação de natureza especial, e mesmo a previsão em tratados internacionais. Bom, isso aqui é completamente inconstitucional e esbarra em uma competência exclusiva do Congresso Nacional, quando tratados, ou acordos, ou atos internacionais, gerem compromissos gravosos ao patrimônio nacional. 

Em 2015, temos notícia de que o Procurador-Geral da República da época, o Rodrigo Janot, viajou aos Estados Unidos com procuradores federais de Curitiba, levou documentos, conversou com agências. A gente não sabe [o que aconteceu], isso não é transparente, isso sai em notas de rodapé de jornais. Eu sou professora de Direito Internacional e me parece que acima das competências do Ministério Público e da Polícia Federal, nesses acordos para combater crimes transnacionais, como a corrupção, está o interesse nacional, está a soberania nacional. A gente não negocia a imagem das nossas estatais. A gente não negocia a imagem do nosso país. Antes mesmo da investigação chegar a um termo, a uma boa altura processual, já a imagem de empresários e empresas estão completamente execradas. A execração pública, midiática, [é feita] por um julgamento que passa pelo judiciário e passa também pela mídia. Um dia nós vamos ter que olhar para isso e ver quanto mal a Operação Lava Jato fez para o nosso país, destruindo cadeias produtivas, destruindo empregos, destruindo a nossa autoestima como nação, as estatais, o nosso orgulho diante do nosso futuro que estava, de certa forma, empenhado com os recursos dessas empresas estatais dedicados aos direitos à educação, à saúde, etc.  Eu fico imaginando se nós poderíamos esperar algum dia que o Procurador-Geral dos Estados Unidos viesse nos fazer uma visita para contar que eventualmente houve corrupção em um banco público americano, Federal Reserve americano, e ajudar os acionistas brasileiros a processar o banco público, processar os gerentes de um partido político ou coisa parecida. Eu acho que basta o argumento da reciprocidade para perceber que nós perdemos a nossa estima soberana nesta forma de condução do combate à corrupção. Essa é a minha opinião.

Com a chance desse projeto ser de fato aprovado, alguns parlamentares da base de Jair Bolsonaro chegaram a dizer que “ou é isso ou é a reforma da Previdência”. Você acha que vai ter espaço para debate? A Associação de Juristas pela Democracia pretende entrar nesse debate com o poder público?

Olha, eu acredito que o Sérgio Moro não vai ter tanta facilidade para aprovar esse projeto. Tem certas coisas que vão aparecendo e vai ficando muito ruim. É preciso falar da figura pública que está por trás desse projeto. O ministro que até ontem era um magistrado, era acusado de praticar uma seletividade penal, atos de exceção. Isso ficou muito claro não só na condução do processo do Lula, que nós estudamos a fundo, mas também depois, com aquele episódio, por exemplo, do alvará de soltura do Lula em julho de 2018: [houve] a intervenção de um juiz de primeiro grau para impedir a saída do Lula, ainda que temporária. Depois, por fim, a negociação do cargo de ministro ainda durante as eleições, com o candidato adversário da corrente política do ex-presidente Lula. Quer dizer, a figura pública do juiz Sérgio Moro, agora ministro, foi ficando marcada por esse personalismo disfuncional. Ele já não fazia mais as funções de uma forma constitucional. Ele já não era um juiz imparcial, isso é evidente, não precisa muito esforço pra entender. Quando ele assume a condição de ministro, isso ficou autoexplicativo. No plano internacional, quando a gente viaja por aí, as pessoas dizem: “ah tá, agora entendi. Não precisa explicar nada do processo, está evidente pelo fato de ele ter assumido”. Não sei se é verdade, mas dizem por aí que a esposa dele já o está lançando candidato em 2022. Quer dizer, se isso for verdade, aí então já não teremos mais adjetivos para isso. Eu tenho a impressão que ele vai ter dificuldades. Porque aqui nós temos um projeto falido do ponto de vista da segurança pública. Não é um projeto de segurança pública, é um projeto de transformar o direito penal em uma persecução permanente aos mais vulneráveis da sociedade. 

Em relação ao caso do ex-presidente Lula, qual a imagem que fica do juiz Moro?

O Lula hoje é considerado por muita gente importante da intelectualidade internacional como o maior preso político do planeta, chegando a ser candidato ao prêmio Nobel, o que torna isso ainda mais visível. Então o Lula é muito mais do que ele mesmo e muito mais do que o partido político que ele representa. Eu tenho a impressão de que a figura, o nome do ex-juiz Sérgio Moro vai ficar marcado de uma maneira muito negativa para a nossa sociedade. Para aqueles que apreciam a democracia, o nome dele já é associado ao que de pior nós estamos produzindo na nossa sociedade brasileira. Ele quis isto, ele atrai para si a responsabilidade do punitivismo, da letalidade, da violência, da matança social, do genocídio, a partir de um projeto que é uma fraude, na minha opinião, e que está traindo as expectativas do povo de que nós teremos paz social. Nós teremos guerra, teremos mortes, não só de bandidos, como ele gosta de dizer, não só de inocentes, mas também de agentes públicos, de modo generalizado, de todos aqueles que estejam na base da pirâmide social brasileira. 

Sérgio Moro chegou a se posicionar contra a liberação do porte de armas e depois voltou atrás e se alinhou a proposta do governo de Jair Bolsonaro. Há uma série de incoerências e contradições com as quais ele vai ter que lidar nesse governo, verdade?

Isso a gente tem debatido muito na Associação Brasileira de Juristas pela Democracia. A própria ideia de ser um juiz imparcial para se transformar em um ministro do governo Bolsonaro. Ele tinha dito há um ano atrás que nunca exerceria um cargo público. Ele disse isso publicamente em uma rede de televisão. Depois ele mudou de ideia.

Eu acho que tem duas vulnerabilidades mais graves do Sérgio Moro, o juiz-ministro. A primeira foi essa: a migração vergonhosa que tornou muito clara a perseguição ao Lula, o status de prisioneiro político. Essa migração ágil e lépida para a condição de "superministro" do governo Bolsonaro. E a segunda é o silêncio diante dos processos evidentes de corrupção, do Queiroz, da [Michelle Bolsonaro] mulher do Bolsonaro, do recebimento de mesada, os escândalos revelados pela investigação do Coaf. Ele tem todo o poder, inclusive mais do que os ministros anteriores tiveram. Como é que ele não fala sobre o assunto, não faz nada a respeito? Então esse silêncio é uma vulnerabilidade incontornável com o tempo. Com o tempo isso vai ser insustentável. Ele gosta muito de citar aquela operação Mãos Limpas, da Itália. Foi justamente assim que os juízes da Mano Pulite também se desmoralizaram, caíram em descrédito público. No momento em que a corrupção apareceu no governo. Aqui nós temos um pouco mais de um mês de governo e a situação do Sérgio Moro como grande combatente contra a corrupção já esbarra no presidente da República, que está adoecido, internado, mas o filho dele está solto, com poder dentro do Senado Federal. Então realmente é uma situação que terá um trágico fim em pouco tempo. 

Ele deixou a carreira de magistrado, uma carreira com todas as garantias dos sonhos de muitas pessoas que ingressam no campo do direito, para se tornar um herói do combate à corrupção. No entanto, agora, já nos primeiros sinais de corrupção da família Bolsonaro, do clã, com ligações com milícias, coisas tenebrosas, ele se cala, ele é silente, ele é omisso. Como ministro, como um experiente ex-magistrado combatente da corrupção sistêmica, ele tem às mãos todos os instrumentos, inclusive a Coaf, para aprofundar e demonstrar que ele é realmente coerente com o que ele diz, com o que ele defende. Então isso demonstra que nós estamos em uma situação de perigo. Porque nós temos um ministro da Justiça que consegue elaborar um projeto anticrime, e no entanto, não está fazendo aquilo que se propõe, diante de uma evidente estrutura de corrupção daquele que o nomeou agora há tão pouco tempo. 

*Com colaboração de Leonardo Fernandes

Edição: Mauro Ramos