Mineração

Entidades divulgam carta pública contra a Vale: "Vai Continuar?"

Autores da carta exigem "desenvolvimento que não dê privilégios a poucos e sofrimento a grande parte da população"

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Bombeiro trabalha nas buscas, vinte dias após o crime socioambiental da Vale em Córrego do Feijão (MG)
Bombeiro trabalha nas buscas, vinte dias após o crime socioambiental da Vale em Córrego do Feijão (MG) - Douglas Magno | AFP

Quarenta entidades, movimentos populares, parlamentares, organizações de povos tradicionais e pastorais divulgaram nesta quinta-feira (21) a carta pública "Vale de Ganância e Sangue! Vai continuar?".

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No documento, publicado originalmente pelo Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP) as entidades questionam não apenas o papel da mineradora no crime socioambiental em Brumadinho (MG), mas o modelo minerador instaurado no Brasil: "Que tipo de desenvolvimento esse modelo de mineração promove para a população? O que enxergamos são os lucros das empresas: riqueza para a Vale e seus associados, aumento progressivo dos crimes ambientais, alarmantes surtos de doenças infecciosas e psicológicas, muitas vidas soterradas e ainda, a impunidade dos responsáveis".

Os movimentos também apresentam suas demandas: "Exigimos que os complexos minerários em Paracatu, em Riacho dos Machados e em qualquer outra cidade ameaçada sejam, minuciosamente, avaliados quanto ao risco e os atuais impactos que hoje causam. Os territórios das populações tradicionais devem ser livres de mineradoras. Que seja repensado um novo modelo de desenvolvimento para o Brasil, que leve em conta a natureza e a vida do povo pobre. Um modelo que não dê privilégios a poucos e sofrimento a grande parte da população".

A carta cita a encíclica Laudato si', escrita pelo papa Francisco em 2015, que propõe uma abordagem integral para resolver a crise socioambiental. 

Leia a carta na íntegra:

O país mais uma vez é abalado pela repetição de um crime/tragédia no estado de Minas Gerais. Há pouco mais de três anos, em Mariana, a Samarco, a Vale e a BHP Billiton destruíram a bacia do Rio Doce. O crime causou danos gigantescos a todo um ecossistema e também aniquilou muitos sonhos, além de ceifar a vida de muitas pessoas. Será que vamos permitir que a Vale, movida pela ganância, e todas as outras mineradoras continuem manchando de lama, o território brasileiro?

Novamente a Vale mostra a forma irresponsável como trata o meio ambiente e as pessoas. Revela que seu compromisso é com o lucro. Assim, explora indiscriminadamente os bens naturais, privatiza a riqueza e gera enormes sofrimentos para a população. Nesse sentido, ao abordar o cuidado com a casa comum, na Encíclica Laudato Si’, o Santo Padre, Francisco, evocando o canto de São Francisco de Assis, ressalta que a nossa casa comum, pode ser comparada, ora a uma irmã, com quem partilhamos a existência, ora a uma boa mãe, que nos acolhe em seus braços. No documento, o Santo Padre alerta sobre a força ameaçadora da destruição em nosso planeta, conforme trecho, abaixo, transcrito na íntegra.

Esta irmã clama contra o mal que lhe provocamos por causa do uso irresponsável e do abuso dos bens que Deus nela colocou. Crescemos a pensar que éramos seus proprietários e dominadores, autorizados a saqueá-la. A violência, que está no coração humano ferido pelo pecado, vislumbra- se nos sintomas de doença que notamos no solo, na água, no ar e nos seres vivos. Por isso, entre os pobres mais abandonados e maltratados, conta-se a nossa terra oprimida e devastada, que «geme e sofre as dores do parto» (Rm 8, 22). Esquecemo-nos de que nós mesmos somos terra (cf. Gn 2, 7). O nosso corpo é constituído pelos elementos do planeta; o seu ar permite-nos respirar, e a sua água vivifica-nos e restaura-nos (Carta Encíclica Laudato si’, do Santo Padre Francisco, sobre o cuidado da casa comum).

Face à gigantesca tragédia ambiental, que recaiu sobre Minas, de impactos profundos à casa comum, as palavras do nosso Papa se fazem tão oportunas e necessárias para refletirmos sobre nossa realidade. Se a casa é comum, por que permitimos que a natureza, dom de Deus, seja tratada de forma tão agressiva, sobretudo, pelas mãos de quem gera pobreza, marginalização e exploração dos nossos irmãos trabalhadores das minas?

O discurso veiculado pela mídia e pelos governos, bancado pelas grandes empresas de mineração, diz que estes empreendimentos geram progresso, empregos, desenvolvimento e riqueza para a região. Sendo assim, perguntamos: que riqueza é essa? Que tipo de desenvolvimento esse modelo de mineração promove para a população? O que enxergamos são os lucros das empresas: riqueza para a Vale e seus associados, aumento progressivo dos crimes ambientais, alarmantes surtos de doenças infecciosas e psicológicas, muitas vidas soterradas e ainda, a impunidade dos responsáveis.

As tragédias/crimes em Mariana e Brumadinho mostram a falência do sistema vigente quanto ao processo de “regulação” do setor minerário. O licenciamento ambiental apenas promove a legalidade das empresas, autorizando formas de exploração que são verdadeiras catástrofes.

Todo o sistema deve ser repensado. A lei e a ação do Estado, de forma urgente, devem ser reestruturadas para garantir à população uma relação equilibrada com a natureza.

O rio Paraopeba, agora morto, é responsável por 40% das águas do reservatório de Três Marias. Ele é um dos principais afluentes do rio São Francisco, que há muito tempo vem sendo castigado pela poluição, além da superexploração de suas águas, que mesmo degradadas, continuam gerando vida ao povo ribeirinho. Como nos mostra a Cartilha Ecológica do Rio São Francisco da CNBB, a vocação do Velho Chico, para o consumo humano e dessedentação animal, vem sendo sistematicamente substituída pela obtenção do lucro, para atender os interesses do governo e das empresas. Agora o rio São Francisco, rio da integração nacional, vê-se ameaçado pela lama tóxica e criminosa da Vale, que, ora escorre sobre seu leito, o rejeito da mineração, podendo tornar suas águas impróprias, não somente para o consumo humano e animal, mas que podem causar enormes danos às populações que vivem da pesca e da agricultura de vazantes.

Desse modo, a indignação se faz ainda maior, tendo em vista que, após o crime em Mariana, cometido pelas mineradoras BHP/VALE/Samarco, nenhuma providência efetiva foi tomada para a segurança dessas barragens. Ao contrário disso, as explorações foram facilitadas, os lucros garantidos e o mais inaceitável, o Estado além de conivente, é promotor deste modelo de exploração. Ao construir o padrão de barragens a montante, as empresas optam pelo modelo mais barato e menos seguro que existe, colocando vidas em risco, podendo a qualquer instante eliminar do mapa, cidades e ecossistemas inteiros.

O momento é de ação! De muita luta e de conclamação para um limiar de novos tempos, para que o direito do povo, dos animais e da natureza não seja completamente suplantado em detrimento da acumulação desenfreada do lucro. Exigimos que informações, acerca da qualidade das águas do rio Paraopeba, sejam levantadas por uma entidade autônoma e divulgadas, assim como as soluções sejam apresentadas e executadas, a fim de que a contaminação não chegue ao nosso querido Velho Chico, que não suportará mais tanta agressão. Exigimos um projeto efetivo de revitalização da bacia do rio São Francisco, envolvendo comunidades, municípios e estados que são parte da “casa comum”.

Exigimos, ainda, que os atingidos pelos crimes de rompimento das barragens de rejeitos de mineração tenham a devida reparação e que os povos ribeirinhos também sejam considerados atingidos para fins de reparação, na proporção do dano que porventura vier a ocorrer. Que as empresas e o Estado tomem todas as medidas necessárias para assegurar a o direito à VIDA. Exigimos que os complexos minerários em Paracatu, em Riacho dos Machados e em qualquer outra cidade ameaçada sejam, minuciosamente, avaliados quanto ao risco e os atuais impactos que hoje causam. Os territórios das populações tradicionais devem ser livres de mineradoras. Que seja repensado um novo modelo de desenvolvimento para o Brasil, que leve em conta a natureza e a vida do povo pobre. Um modelo que não dê privilégios a poucos e sofrimento a grande parte da população.

Como nos mostra a Laudato si', todas as formas de vida, todos os minerais e processos orgânicos e físicos estão conectados em múltiplas relações interdependentes. Nada na criação divina é supérfluo. Toda ocorrência aos olhos de Deus é dotada de um significado. A produção dos crimes ambientais, de rompimento de barragens serão continuadas se nos mantivermos passivos ou alheios à realidade.

Não aceitamos respostas prontas. Não aceitamos que o crime seja tratado como acidente! Foi mais um crime! Não permitiremos a reprodução continuada do crime e dos danos! Exigimos também que a revitalização do rio Paraopeba seja uma prioridade. Não admitimos que novas barragens se rompam! Que novas licenças ambientais sejam concedidas sem análises criteriosas e debatidas com a população, a qual deve definir sobre o futuro de suas regiões e localidades. Não admitimos, sobremaneira, que o lucro seja privatizado e os prejuízos socializados! Pelos trabalhadores e trabalhadoras de Brumadinho e por todas as vítimas dessa brutal tragédia criminosa! Por suas famílias em sofrimento!

Por todos os animais e plantas que morreram ou que agonizam nessa perturbação ambiental!

Pelo direito ao funcionamento pleno do ecossistema dos nossos rios e mares!

Proclamamos pelo direito de viver como integrantes da mãe natureza, que nos irmana no nosso grande território coletivo, nossa Casa Comum!

Ao levante dos povos em defesa do Opará, rio mar, Velho Chico! Avante!!!

Januária, 20 de fevereiro de 2019. 

Assinam:

1.    MPP – Movimento dos Pescadores e Pescadoras do Brasil

2.    CPP – Conselho Pastoral dos Pescadores

3.    CPT – Comissão Pastoral da Terra

4.    CIMI – Conselho Indigenista Missionário

5.    Cáritas Diocesana de Januária/MG

6.    Cáritas Brasileira Regional Minas Gerais

7.    Cáritas Arquidiocesana de Montes Claros

8.    Pastoral Familiar de Januária

9.    CNLB - Conselho Nacional do Laicato Leste 2

10.    Pastorais Sociais da Arquidiocese de Montes Claros

11.    Franciscanas e Franciscanos

12.    Irmãs da Divina Providência

13.    Associação dos Produtores Rurais da Ilha da Marambaia Pirapora

14.    Associação Quilombola, Pesqueira e Vazanteira de Croatá - Januária MG

15.    Associação Quilombola, Pesqueira e Vazanteira de Cabaceira - Itacarambi MG

16.    Associação Quilombola, Pesqueira e Vazanteira Família Ligia Batista - Pedras de M.da Cruz 

17.    Comunidade Vazanteira Pesqueira da Venda

18.    Comunidades do Território Tradicional Geraizeiro do Vale das Cancelas

19.    Comunidade Vazanteira Barrinha

20.    Colônia de Pescadores de Ibiaí – MG

21.    Diocese de Januária

22.    Dom José Moreira - Bispo Diocesano 

23.    Colônia de Pescadores Z-36 de Manga - MG

24.    Associação Quilombola, Pesqueira e Vazanteira de Caraíbas - Pedras de M. da Cruz MG

25.    Ponto de Cultura: Centro de Artesanato de Januária MG

26.    Sub regional da Conferência dos Religiosos do Brasil do Norte de Minas

27.    Povo Indígena Xacriabá

28.    EFAT – Escola Família Agrícola Tabocal de São Francisco

29.    Prefeitura Municipal de São Francisco

30.    Câmara de Vereadores de São Francisco

31.    Agência de Desenvolvimento Municipal de São Francisco

32.    Deputada Estadual Leninha Alves de Souza

33.    Deputado Federal Pe. João Carlos Siqueira

34.    CRDH Norte de Minas – Centro de Referência em Direitos Humanos Norte de Minas

35.    Articulação Semiárido Mineiro – ASA Minas

36.    Núcleo do Pequi e outros frutos do cerrado

37.    Articulação Rosalino Gomes de Povos e Comunidades Tradicionais

38.    Associação dos  Vazanteiros do Município de Itacarambi

39.    Articulação Vazanteiros em Movimento

40.    Deputado Estadual de Minas Gerais Zé Rei

Edição: Mauro Ramos