Cultura

Cordão carnavalesco da zona Leste de São Paulo exalta a parteira Dona Micaela

Grupo da Penha de França não termina na festa de carnaval, mas se insere em diversos espaços de promoção de saúde

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Atriz, doula e fisioterapeuta, Edi Cardoso empresta seu corpo para encenar Micaela Vieira
Atriz, doula e fisioterapeuta, Edi Cardoso empresta seu corpo para encenar Micaela Vieira - Foto: Douglas de Campos

Vida que nasce e pulsa no ritmo do tambor e do samba é a reflexão do cordão carnavalesco da Penha de França, bairro da zona Leste de São Paulo. O bloco homenageia Micaela Vieira, mulher negra que foi parteira e benzedeira no bairro entre o final do século 19 e início do século 20. A saída do Cordão da Dona Micaela, no carnaval de rua da capital paulista, acontece no próximo dia 24 com a celebração de um ano de existência.

Saber feminino

"Quando a gente colocava nas redes sociais a questão da parteira, várias manifestações vinham das pessoas falando: 'minha mãe nasceu de parteira', 'minha vó era parteira', 'minha tia era parteira e benzedeira'. Então as referências acionam um conhecimento da importância da mulher, desses conhecimentos do partejar, do acompanhamento da gestante, do cuidado às crianças enfermas ou não enfermas", conta Patrícia Freire de Almeida, produtora cultural e integrante do Movimento Cultural Penha, que junto à Comunidade do Rosário dos Homens Pretos da Penha conceberam o Cordão da Dona Micaela.

O bloco, apesar de recente, é fruto de uma ideia antiga que, no ano passado, foi patrocinada pelo Programa Fomento à Cultura da Periferia da Secretaria Municipal de Cultura. 

Com músicas, batidas e performances autorais, o bloco celebra os saberes ancestrais e a cultura local e afro-brasileira em um bairro que congrega fé, sincretismo religioso e negritude. Na Penha, Micaela nomeia a praça localizada no início da Avenida Amador Bueno da Veiga, uma das mais importantes da região, um dos poucos casos de pessoas negras presentes em nomes de ruas na cidade.

Bloco celebra os saberes ancestrais e a cultura afro-brasileira da Penha, bairro de Micaela Vieira. | Foto: Douglas de Campos

"O que mais motivou as canções é o fato da história dela, de uma mulher negra parteira, ter toda essa sua importância e ser nome de uma praça", relata Renato Gama, maestro que ajudou a compor quatro das seis canções do cordão. Para ele, a originalidade do grupo é resultado da identificação da comunidade como autora de cultura e arte da periferia que, a muitas mãos, confeccionou as roupas e os bonecões do bloco.

Parto na Igreja do Rosário

“Ô Micaela tu venhas ver/Muitas crianças estão pedindo para nascer”, canta o cordão que caminha do Largo do Rosário da Penha até a Praça Dona Micaela Vieira, cuja história é pouco conhecida e registrada. O filho dela, João “da Micaela”, foi violinista e tocava serestas e chorinho, segundo informações do livro Penha de Ontem, Penha de Hoje, de Hedemir Linguitte (acervo do Movimento Cultural Penha, que conta com três livros publicados). 

"A Micaela nasce com o choro de quem nasce agora, que é o choro da criança, mas também com um grito que convoca as pessoas para que olhem, cuidem e dialoguem com a comunidade preta, com as mulheres negras", ressalta Edi Cardoso, atriz de teatro de rua que interpreta a parteira histórica Micaela Vieira. Antes da saída do cordão, Edi faz um parto simbólico dentro da Igreja do Rosário dos Homens Pretos da Penha de França, erguida em 1802 e, atualmente, patrimônio histórico tombado no bairro. 

A atriz de teatro e doula, Edi Cardoso, encena a história de Micaela. | Foto: Douglas de Campos

Edi, que também é doula e fisioterapeuta com especialização em Saúde da Mulher, se sente honrada em emprestar seu corpo para trazer à tona a história de Micaela e de tantas outras mulheres que resistem à tentativas contínuas de silenciamento. 

"Enaltecer a vida de uma mulher que cuidou de tanta gente, que foi parteira e benzedeira, poder reviver isso em meu corpo, relembrar as minhas antepassadas e as mulheres negras que estão aqui, e valorizar esses saberes, para mim, foi de uma alegria tremenda. Porque é disso que se trata também minha pesquisa, minha experiência profissional e minha luta como mulher preta, nesses tempos em que, cada vez mais, nós somos massacradas, passado o rolo compressor sobre nossas resistências".

Em parceria com o curso de Obstetrícia da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da Universidade de São Paulo (USP), localizada na zona Leste, o Cordão da Dona Micaela não nasce e morre na festa de carnaval, mas se insere em diversos espaços de promoção de saúde.

Em meio a cortes de investimentos, sobretudo na rede pública, Edi destaca que a violência obstétrica tem sido cada vez mais recorrente e as mais afetadas, nesse contexto, são as mulheres negras e periféricas

Estudantes do curso de Obstetrícia. | Foto: Facebook/Obstetrícia – EACH USP

Autonomia e protagonismo durante a gestação, parto e planejamento familiar são negligenciados por procedimentos hospitalares desaprovados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) --- como a episiotomia, incisão efetuada na região do períneo (área muscular entre a vagina e o ânus), ou popularmente conhecida como “ponto do marido” ---, altos índices de cesáreas e atendimentos pré-natais inadequados.

Ao lado do Egito e da República Dominicana, o Brasil lidera como um dos países onde mais da metade dos partos são realizados por cirurgias cesarianas. De acordo com o Ministério da Saúde, 55,5% dos 3 milhões de nascimentos ocorridos em 2016 foram feitos por meio dessa técnica, mesmo que a OMS recomende que o aceitável é de 15%.

Para Edi, o saber científico não pode ficar acima da experiência de vida das pessoas, mas, sim, caminhar lado a lado. "É até estranho se falar de humanização, porque isso pressupõe que tem uma medicina que não é humanizada, quando deveria ser".

 

SERVIÇO

24/02 - domingo

14h às 17h

Concentração: Largo do Rosário da Penha

Trajeto: Sai do Largo do Rosário, passa pelas ruas Dr. Almeida Nogueira, Betari, Matusalém Matoso, Antônio Lôbo, Dr. João Ribeiro e termina na Praça Dona Micaela Vieira.

Atividade gratuita e livre para todos os públicos.

Edição: Cecília Figueiredo