Polêmica

Artigo | O Canadá e a mineração em terras indígenas no Brasil, de novo

Não existe “mineração verde”: o que se propõe é a exploração e degradação de uma região mediante compensação financeira

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Almirante Bento Albuquerque, ministro de Minas e Energia desde 1º de janeiro
Almirante Bento Albuquerque, ministro de Minas e Energia desde 1º de janeiro - Agência Brasil

O Almirante Bento Albuquerque, ministro de Minas e Energia do governo Bolsonaro, disse, em evento da Prospectors and Developers Association of Canada no último dia quatro de março, que o governo estuda a abertura das terras indígenas brasileiras para a exploração por empresas estrangeiras para que, segundo ele, “traga benefícios para essas comunidades e também para o país”. Mais uma vez temos na mesma equação: mineração, povos indígenas e o Canadá, tríade sobre a qual escrevi anteriormente no texto Mineração e povos indígenas: Brasil e Canadá estão no mesmo barco, publicado no Brasil de Fato em 2017. Vale a pena voltarmos a refletir, ainda que brevemente, sobre as declarações do ministro, de modo a ampliar as reflexões de nossos leitores sobre este tema tão polêmico.

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Primeiramente, é forçoso relembrar que o governo Bolsonaro advoga políticas antiindígenas desde sua primeira hora. Declarações acerca da interrupção e mesmo da revisão de demarcações de terras indígenas já realizadas são públicas e não chocam mais ninguém. Aliás, Bolsonaro poderia ser considerado um parlamentar antiindígena avant la lettre (a frente de seu tempo, em francês) pois, relembremos, ele foi o único parlamentar que propôs um projeto de decreto legislativo para revogar a recém-demarcada terra indígena Ianomâmi, realizada sob forte pressão internacional após o quase completo genocídio daquela população indígena causado por – pasmem – a abertura da região para a mineração. Portanto, Bolsonaro está cumprindo promessa de campanha ao concretizar uma proposta que, a seus olhos, vem combater – ou reforçar, dependendo da perspectiva – o mito fundador de todo o racismo contra os povos indígenas não apenas no Brasil, mas em todo o continente: a ideia de que índios são sujeitos preguiçosos “sentados” sobre uma imensa reserva mineral que seria melhor aproveitada por empresas e governo.

O debate sobre a mineração em terras indígenas também existe no Canadá e, entra governo e sai governo, com orientações mais liberais ou conservadoras, o panorama continua mais ou menos o mesmo: as empresas mineradoras trabalham fortemente para a obtenção de contratos individuais com povos indígenas para “desenvolverem” os recursos naturais de uma determinada região em troca de royalties e empregos para as comunidades. Há modelos bem-sucedidos de parceria entre mineradoras e povos indígenas por lá – sobretudo naquelas comunidades que conseguiram jogar de igual para igual com as empresas – mas a questão está longe de ser consensual. Lá, como aqui, não existe “mineração verde”. O que se propõe é a exploração de uma determinada região, que será degradada, e a sua compensação financeira. A mineração será mais ou menos destrutiva dependendo da tecnologia empregada e das regulações à atividade em cada país, mas ela será sempre destrutiva. Nós, que vivemos em Minas Gerais, sabemos disso muito bem.  

Não deixa de ser irônico que a declaração do Almirante Bento Albuquerque venha no exato momento em que o primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, esteja enfrentando sua pior crise política desde sua eleição envolvendo, justamente, mineradoras e povos indígenas. Jody Wilson-Raybould, a primeira mulher indígena a assumir o posto de Ministra da Justiça e Procuradora-Geral naquele país, acusou publicamente Trudeau e outros ministros de pressioná-la a não continuar com investigações criminais envolvendo a SNC-Lavalin, uma empresa mineradora de origem na província francófona do Québec. Esse episódio demonstra que as empresas do setor contam com lobbies com alto poder de influência, capazes de acessar os mais altos escalões do governo canadense. Qualquer semelhança com o caso brasileiro não é mera coincidência.

O ministro também ressaltou que as comunidades devem ser ouvidas, mas não terão poder de veto sobre a possibilidade de instalação ou não de um empreendimento minerário. Ora, serão ouvidos para quê, então? Para “cumprir tabela” e realizarem, apenas proforma, as diretrizes internacionais de consulta livre e informada às comunidades indígenas? Lembrei-me de um processo de demarcação de terra indígena por mim investigado em que consta que, durante uma reunião com lideranças indígenas na década de 1970, o registro de que “o cacique fez um longo discurso na língua do grupo e nós não entendemos nada”. Ou seja, ouviram o homem, mas não escutaram suas demandas. É assim que se dará a oitiva das comunidades?  

Não é preciso ser um grande gênio da economia, da ciência política ou da antropologia para saber o que vai acontecer com a autorização da mineração em terras indígenas: desmatamento recrudescido, poluição da água, do solo e do ar, expulsão da fauna nativa, explosão de doenças infectocontagiosas, ocupação desordenada dos centros urbanos próximos ao empreendimento, dentre outros tantos problemas. Em suma, um grande impacto sobre o ecossistema local e sobre os povos indígenas afetados e, potencialmente, uma catástrofe de proporção não trivial.            

Creio que o Brasil vive um momento em que urge uma reflexão aprofundada sobre o modelo minerário nacional, que nos levou às tragédias de Mariana e Brumadinho. Ampliar o escopo da atividade minerária no país sem antes uma profunda revisão do modelo já em curso equivale a estender, irresponsavelmente, seus efeitos catastróficos para territórios ainda pouco atingidos pelo extrativismo predatório que impera em todo o país. Em outras palavras, é hora de parar para refletir e modificar o que já existe, e não ampliar o que não está funcionando, sob pena de voltarmos a vivenciar as trágicas ocorrências com os Cinta-Larga e com os Ianomâmis.

Finalizo esse texto relembrando um episódio da história norte-americana que vem bem a calhar. No início da década de 1870 os EUA passavam pela primeira grande recessão econômica de sua história, após os gastos excessivos com a Guerra Civil. Após a descoberta de ouro nas Black Hills e a autorização para sua exploração pelo então presidente Ulysses S. Grant, as tropas do exército americano enfrentaram a resistência dos povos Sioux, Cheyenne e Lakota liderados por Sitting Bull e Crazy Horse, em batalhas que se arrastaram por uma década.

Que os povos indígenas brasileiros resistirão a mais este ataque aos seus direitos, é certo. Como farão isso, no entanto, só o tempo dirá. 

 

* Leonardo Barros Soares é doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais e desenvolve pesquisa comparativa sobre a política de reconhecimento territorial indígena no Brasil e no Canadá

Edição: Brasil de Fato