Coluna

Quando um ativista assume a culpa sem ter cometido crime

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Imagem meramente ilustrativa
Imagem meramente ilustrativa - Rafael Crisóstomo
Afinal, não teria sido ele clicado com um galão de qualquer coisa na mão?

Por Olímpio Rocha*

Antônio** é engenheiro, simpatizante de movimentos sociais de esquerda e - cidadão de livre pensamento - entende que o impeachment da ex-Presidenta Dilma Rousseff foi um golpe parlamentar. Nesse contexto, durante aquele processo político, resolveu participar da série de manifestações populares que, à época, tiveram lugar em todos os Estados do Brasil. Num dia daquele fatídico 2016, junto a mais ou menos duzentos trabalhadores e trabalhadoras, fez piquetes numa rodovia federal, distribuiu panfletos e gritou palavras de ordem contra o impedimento, que acreditava ser uma injustiça.

O episódio do qual Antônio fez parte redundou na confecção de relatório pela Polícia Rodovia Federal - que acompanhou o ato, sem maiores desdobramentos - e na posterior instauração de inquérito no âmbito da Polícia Federal para apuração de suposto crime de dano, consubstanciado no prejuízo à malha asfáltica causado pela queima de pneus durante o protesto, supostamente por alguns manifestantes, e que foi orçado, em laudo técnico, no total de seiscentos e poucos reais.

Para além de discutir a legalidade e a legitimidade do impeachment ou dos protestos contra ou favor dele, fato é que Antônio foi o único manifestante, entre aqueles quase duzentos, fotografado pela PRF com uma expressão facial raivosa, por assim dizer, com o punho de uma mão levantado e cerrado e com algo parecido com um galão de combustível na outra mão, o que o levou a ser investigado pela autoridade policial como o suspeito com “mais chances” de ter sido um dos culpados reais pelo dano. 

Outros dez militantes também foram ouvidos pela polícia. Estes, porém, apesar de terem sido fotografados com camisas vermelhas e terem tido prints de suas redes sociais colacionados ao inquérito como indícios de que seriam “inegavelmente” pró-Dilma e que, portanto, teriam participado do protesto, podendo ter sido ser responsáveis pela queima dos pneus, não foram tidos como suspeitos robustos.

Ao final, o delegado responsável concluiu pela impossibilidade de indiciamento de quem quer que fosse, haja vista não ter disposto de provas contundentes para apontar qualquer dos investigados como autor do dano à rodovia.

Assim, conforme determina a lei, o inquérito foi remetido ao Ministério Público Federal que, por sua vez, discordou da conclusão da peça inquisitória. O procurador da República achou por bem convocar Antônio para assinar um Termo de Acordo de Não-Persecução Penal (ANPP), posto que, mesmo com a sensata palavra do delegado dando conta de que não poderia apontar um culpado, haja vista principalmente a impossibilidade de individualizar condutas naquela multidão, o membro do Parquet vaticinou que a foto de Antônio em posição de protesto teria o condão inafastável de apontá-lo como responsável pelo dano. 

Pois bem. Aqui, o debate cinge-se ao ANPP. O que fazer diante de uma proposta, a priori, tão vantajosa feita pelo MPF? O procurador disse, em outras palavras, que apesar do respeitável trabalho do delegado, achava que Antônio deveria ser denunciado pela prática do crime de dano qualificado pelo uso de substância inflamável, afinal, não teria sido ele clicado com um galão de qualquer coisa na mão? Ora, prova maior do que essa seria insignificante! 

Mas, mesmo assim, diante da Resolução 181, de 2017, do Conselho Nacional do Ministério Público que regulamenta o tal ANPP, o MPF seria compreensivo com o militante. Se Antônio confessasse o crime, conforme exige o artigo 18 da resolução, pagasse os seiscentos reais a título de reparação do dano mais uma multa de um salário mínimo, estaria livre de sequer ser réu. Não teria de passar por uma instrução no mínimo cansativa que, é verdade, ao final poderia até redundar na sua absolvição. Mas e se ele não fosse absolvido? Condenado seria por ter sido supostamente o responsável pelo fogo nos pneus naquele protesto! Perderia a primariedade, inclusive. Gastaria mais honorários com advogados...    

Não se trata de discutir a culpabilidade de Antônio ou não. Afora a problemática dos aspectos legais e constitucionais cuja discussão não cabe no espaço desta coluna, mas que tem sido feita por respeitabilíssimos juristas como Lênio Streck e Aury Lopes, na prática, pergunta-se: deveria ele assumir a culpa, reembolsar o Estado pelo dano e pagar a multa por algo que, no mínimo, não cometeu sozinho? E os demais militantes? Ninguém riscou um fósforo sequer? Antônio levou os pneus sozinhos? Uma foto em posição de “ataque” é suficiente para que o MPF resolva quem deve ser o culpado, mesmo contra a conclusão policial? Pode haver pena sem processo? E a obrigatoriedade da ação penal como princípio?

Conforme amplamente exposto na mídia, o ANPP é um dos embriões da proposta anticrime do ministro Sérgio Moro, que intenta trazer ao país o instituto dos acordos penais prévios, conforme costumam acontecer no direito norte-americano e, certamente, ainda terá muito caminho a percorrer e debates a vencer antes de ser pacificado como instituto jurídico no Brasil. 

Ah, sim. Antônio assinou o ANPP porque se viu sem saída, logicamente. Não valeria a pena correr o risco de vir a ser condenado, mesmo alertado de que a absolvição, como dito, poderia acontecer. Mas e se não acontecesse? A assunção de culpa, mesmo inexistente, foi inescapável. 

* Olímpio Rocha, advogado popular, professor universitário, membro do Conselho Estadual de Direitos Humanos e Coordenador Geral do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura na Paraíba.

** nome fictício, apesar do caso ser real, no qual oficiei como advogado 

Edição: Daniela Stefano