Eurásia

Sete mil ativistas fazem greve de fome em prisões turcas, segundo partido curdo

Desde o início da nova onda de protestos, em novembro de 2018, ao menos quatro militantes da causa curda se suicidaram

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Militantes protestam contra condições em que administração do país, liderada por Erdogan, mantém preso Abdullah Ocalan
Militantes protestam contra condições em que administração do país, liderada por Erdogan, mantém preso Abdullah Ocalan - Foto: Koze Ozan/AFP

Desde o fim de 2018, centenas de militantes curdos detidos pelo governo da Turquia iniciaram uma greve de fome para protestar contra as condições em que a administração do país, liderada pelo presidente Recep Tayyip Erdogan, mantém preso Abdullah Ocalan, fundador do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK).

A greve foi iniciada em 8 de novembro pela deputada curda Leyla Guven, do Partido Democrático dos Povos (HDP), e já dura 144 dias. Guven foi condenada a mais de 100 anos sob a acusação de estar ligada ao PKK, considerado um grupo terrorista pela Turquia e perseguido desde sua fundação, em 1978. 

Desde que a greve começou, diversos militantes aderiram ao protesto, entre eles, representantes do HDP. O número de detidos em greve de fome muda de acordo com a fonte. A informação em jornais turcos varia entre 240 e 700 pessoas, enquanto fontes ligadas ao PKK ouvidas pelo Brasil de Fato falam em sete mil. 

De lá para cá, ao menos quatro mortes já foram registradas, a última delas foi da militante Medya Cinar, que se suicidou na última segunda-feira (25).

Já Guven, que ganhou maior notoriedade, foi presa em janeiro de 2018 e solta em janeiro deste ano, um ano depois. Segundo Florencia Guarch, doutoranda em ciências políticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a deputada “foi solta porque de certa forma a Turquia não quer que essas pessoas morram estando sob a tutela do estado”. 

Perseguição a adversários políticos

A nova onda de perseguição política a militantes curdos se acentuou em julho de 2016 após o fracasso de uma tentativa de golpe de estado contra Erdogan, que governa o país desde 2003. A investida, que não teve ligação com o HDP ou grupos pró-curdos, acabou servindo para que o governo turco declarasse estado de emergência, medida que durou dois anos e aumentou enormemente os poderes de Erdogan. 

Segundo Guarch, “em 2016, quando há essa tentativa de golpe, toda a oposição passa a ser sistematicamente perseguida. O governo atual tem uma posição bastante enfática contra as organizações curdas, então qualquer organização que seja voltada aos direitos civis e aos direitos políticos do povo curdo são condenadas, são tidas como separatistas. Há um processo de negação cultural e de genocídio contra essa população. Foi de fato um processo para atacar a organização dos curdos a nível estatal”.

A prisão de membros do HDP -- que inclui a de seu líder, Salahattin Demirtas, além de dezenas de dirigentes -- não ocorreu somente por sua orientação pró-curda. O partido era uma pedra no sapato de Erdogan desde as eleições gerais de julho de 2015, quando conquistou mais de 13% dos votos, atrapalhando os planos do mandatário de transformar o país, então parlamentarista, em um regime presidencialista. 

“Com a vitória do HDP, os planos do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP, de Erdogan) de transformar a Constituição vieram por água abaixo. Em julho de 2015 houve essas eleições, o HDP desponta como o terceiro partido mais votado e isso gera uma mudança na estrutura do Parlamento”, afirma Guarch. 

Após o resultado, explica a pesquisadora, “as eleições de julho são anuladas, novas eleições são chamadas em novembro, e então o AKP, partido atual do governo, consegue a maioria necessária e consegue implementar as mudanças necessárias na Constituição e agora a Turquia é um regime presidencialista”, o que confere a Erdogan ainda mais poder. 

Não foram somente os curdos os afetados pela política de caça aos opositores adotada por Erdogan. Segundo Guarch, o mandatário e a AKP “fizeram uma verdadeira cruzada contra diversos grupos políticos que agem na Turquia. Entre esses presos políticos estão jornalistas, professores e oposição como um todo”. 

Um levantamento feito pela emissora britânica BBC aponta que somente durante o período em que o estado de emergência esteve em vigor -- 20 de julho de 2016 a 19 de julho de 2018 --,  mais de 50 mil pessoas foram presas enquanto ainda aguardavam julgamento. Após o fim do período de exceção, foi implementada no país uma nova lei anti-terrorista, o que conferia ao Estado a possibilidade de seguir adotando medidas semelhantes às tomadas durante os dois anos anteriores. 

“De fato a situação na Turquia é uma situação muito delicada não só para o povo curdo. É uma ditadura, é um processo bastante autoritário, um governo bastante autoritário”, explica a pesquisadora.

Abdullah Ocalan

O principal motivo da greve de fome dos presos é a condição em que a Turquia mantém encarcerado Abdullah Ocalan, considerado o principal líder do movimento de libertação nacional curda e fundador do PKK. Preso em 1999 e condenado à morte, Ocalan teve sua sentença comutada em prisão perpétua em 2002. 

Em 2016, o governo turco decretou que o líder, detido na ilha-prisão de Imrali, nunca mais seria autorizado a receber visitas, incluindo de familiares. Advogados de Ocalan já estavam impedidos de se encontrar com ele desde julho de 2011. 

Segundo Guarch, há denúncias de que a Turquia utilizaria diversos aparatos de tortura contra Ocalan. "Se comenta, por exemplo, que a cela dele infringe todos os tipos de convenções e tratados de direitos humanos, porque é um espaço minúsculo, as luzes nunca são desligadas -- assim ele nunca vai saber se é dia ou noite -- e ele não tem acesso ao rádio, nem à comunicação em geral”. 

Outra denúncia é de que haveria “mais de 700 solicitações de visitas dos advogados ao Ocalan e nenhuma delas foi deferida”, o que gera dúvida sobre “se de fato ele estava vivo ou morto”, afirma a pesquisadora. Segundo ela, “a Turquia constantemente fica dando desculpas, dizendo que o barco que leva à ilha está estragado, que os guias da embarcação não estão trabalhando; que tempestades impedem que o Mar de Mármara seja atravessado etc”.  

Em janeiro, o governo Turco autorizou que um dos irmãos de Ocalan o visitasse. O familiar  “deu o ok de que ele está vivo, mas é uma informação que não se sabe exatamente”, diz Guarch. Para ela, caso fosse confirmado que ele não está vivo, haveria “um processo de instabilidade ainda maior na Turquia em função da importância e da referência que ele é para a causa curda”. 

Edição: Aline Carrijo