Samba da minha terra

“A reforma agrária teria acabado com a desigualdade no Brasil”, diz neto de Caymmi

Gabriel contesta declarações da tia Nana Caymmi e faz duras críticas ao governo Bolsonaro

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Dorival Caymmi cantou a Bahia e o Brasil fazendo críticas sociais
Dorival Caymmi cantou a Bahia e o Brasil fazendo críticas sociais - Arquivo pessoal

O sobrenome Caymmi está intimamente ligado ao conceito de brasilidade e cultura popular. Também traz um legado de luta contra a desigualdade e direitos sociais. No entanto, num período de polarização de disputa de ideias e narrativas, entre os Caymmis existem polêmicas e divergências.

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O artista gráfico Gabriel Caymmi, 41 anos, neto do compositor e pintor Dorival Caymmi, cresceu em um ambiente politizado e faz uma oposição dura e bem-humorada ao governo de Jair Bolsonaro (PSL). Uma visão diferente da tia Nana Caymmi, que declarou apoio ao presidente do PSL.

Filho do cantor Danilo Caymmi e da compositora Ana Terra, Gabriel defende que Lula foi um dos maiores presidentes do Brasil, pois teve a coragem de levar adiante programas sociais que reduziram a desigualdade e levaram gerações de jovens pobres para a universidade.

O artista gráfico exalta a importância da obra do avô e relembra que, antes do golpe militar de 1964, o Brasil estava próximo de uma reforma agrária que poderia ter mudado a história do país, acabando com a fome e a miséria.

Confira a entrevista para o Brasil de Fato.

Brasil de Fato: Como você vê a eleição do Bolsonaro?

Gabriel Caymmi: Creio que a eleição do Bolsonaro seja algo temporário. Aconteceu para atender a uma parte da sociedade como foi com o Trump nos EUA, fruto de muita desinformação e ignorância. Cinco famílias controlam os veículos de maior audiência no Brasil e isso é muito sério. Quando existe o controle da comunicação por um grupo de pessoas que a gente não sabe quais são as intenções por trás dessa movimentação política. Felizmente, a mídia alternativa e a internet permitem o acesso a outros tipos de informações.  Mas, na mesma esteira, as fakenews e as redes sociais ajudaram a eleger o Bolsonaro, as pessoas foram muito afetada e isso foi fundamental para decidir a eleição.

O PT também tem culpa, por conta do desgaste da legenda com os casos de corrupção e o mensalão. Eles aproveitaram essa brecha e construíram o antipetismo, e deu certo. Ele [Bolsonaro] é o porta-voz do politicamente incorreto, isso é perigoso, porque ele faz elogios a um assassino e torturador como o coronel Ustra. Um grupo dos eleitores dele votaram porque concordam com o discurso racista, homofóbico, excludente e repleto de ódio, que vai alimentando cada vez mais ódio nas pessoas.

A democracia está em risco?

Não acredito, apesar que algumas das atitudes do governo em relação à cultura sejam preocupantes como os projetos que estão parados por questões ideológicas. Para esse grupo que está no poder, a cultura não é algo relevante, é coisa de vagabundo, como já foi dito algumas vezes. O autoritarismo é a marca deste governo e isso acaba atingindo muito setores. Como um presidente não pode governar sozinho, ele vai esbarrar na legalidade, na estrutura administrativa e na Constituição. O estrago não pode ser tão grande e não teremos um novo 64.

Gabriel, ao lado da estátua do avô Dorival Caymmi, em Salvador (BA) (Foto: arquivo pessoal)

Na campanha eleitoral teve uma polarização muito forte no país e um sentimento acentuado de antipetismo. Como você avalia aquele período?

A polarização foi um campo muito fértil para esse governo que está aí. Eles souberam usar isso bem. Os conservadores do Brasil, que estão crescendo cada vez mais, estimularam o medo nas pessoas, o comunismo dos comedores de criancinhas. Usam slogan do tipo “cidadãos de bem”, “Brasil novo sem corrupção, cristão e imaculado sem o câncer do PT”. Isso é tentador [para os conservadores] quando a história tenta relativizar algumas coisas, alguns códigos éticos básicos. Isso é enganoso, a sociedade não pode voltar para a Idade Média, tem que avançar nos processos civilizatórios. O ódio e a intolerância não podem vingar.

As suas camisetas, na época da campanha, tinha um tom de humor, mas com a intenção de provocar e desmascarar essa tendência de extrema direita e fascismo. Agora, você está criando umas estampas que provocam muito o eleitor desse governo. Como você vê essa relação de “criador e criatura” em relação aos “eleitores e eleito”?

A história das minhas camisetas começou nas manifestações "fora Dilma" quanto muita gente ia com as camisetas da seleção. Inspirado nesse momento, eu fiz uma camiseta em homenagem ao Carlos Marighella, que eu sempre admirei muito. Baiano, filho de imigrante italiano como o meu avô Dorival. Quando eu li o livro do Mario Magalhães ["O guerrilheiro que incendiou o mundo"], descobri que ele gostava de cantar as músicas do meu avô. Ele cantava muito “Eu não tenho onde morar”, porque ele vivia muito na clandestinidade. Fiz essa camiseta imitando a camisa da seleção, mas com o rosto dele, como uma oposição ao traje do coxinha padrão, que é o termo que a gente usa para definir essa galera. Deu uma repercussão muito boa. Fiz para mim, sem a intenção de vender e saía com ela na rua para ver a reação das pessoas na rua, como se fosse um laboratório.

Serviu muito como termômetro porque eu ia nas manifestações com ela. Foi uma forma que eu encontrei para provocar, instigar e até uma forma de conscientização e protesto. Outra que eu fiz e que deu muita repercussão foi “Lula ladrão roubou meu coração”, não é uma frase minha, eu peguei na internet e fiz uma arte. Essa provocava mais porque o Lula era o alvo principal do ódio. Eu sempre brinquei com essa parte dúbia. A pessoa vê a estampa e não sabe se estou a favor ou contra. Essa do Lula cria esse entranhamento e esse choque. Gosto de fazer isso na minha arte. Eu gosto de fazer isso com as pessoas para surpreender. É uma forma minha de luta também. Uma arte que liberta.

Quais as lembranças que você tem da ditadura e como esse assunto era tratado dentro da sua família?

Eu não vivi essa época mais pesada. A minha mãe Ana Terra, compositora, sempre foi de esquerda, brizolista e Lula, meu padrasto, Sérgio Santeiro (cineasta), é super de esquerda e em casa as conversas na mesa sempre foram sobre política. Eu tive muito respaldo em casa sobre conscientização política e social. Por isso, a minha visão sobre a ditadura é algo de violência, terror, tortura... com muitos artistas expulsos do Brasil. Foram para fora para não serem mortos. Foi um período muito restrito para as artes. Me inspirei muito nessa coisa da ditadura para as minhas camisetas, na forma como me expressar na linha da linguagem que eles tinham nessa época. Me interesso muito pelo tipo de arte que o Chico Buarque faz, com muita sutileza. Fazer a crítica na arte, na música, na entrelinha ali.

O Dorival Caymmi foi muito amigo do Jorge Amado, que foi deputado federal pelo PCB e era comunista. Os dois também têm obras que denunciam muito a desigualdade social e os problemas brasileiros. Você acha que esse legado dos dois na luta para expor a opressão e a desigualdade social perdura até hoje?

Meu avô tinha uma relação muito boa com o Jorge Amado, era um dos melhores amigos dele junto com o Carybé. Eram as amizades da Bahia. Apesar do meu avô não ser comunista, não ter ligação direta com o comunismo, ele compôs o hino do partido comunista. Ele circulava entre os intelectuais de esquerda. A obra dele, apesar de não ser política, dialoga muito com a realidade brasileira, do povo oprimido, do negro, do baiano. Da exaltação da raça negra, do negro doutor (que aparece na música São Salvador). A obra dele está acima da política a ponto de criar polêmicas. Ele passou por fora da ditadura, não foi alvo de represálias, mas passou muito bem essa mensagem de um Brasil melhor e mais justo. É aquela frase dele “Pobre de quem acredita que precisa da glória e do dinheiro para ser feliz”. É uma frase com viés socialista e progressista. Ele vivia o que cantava.

O governo atual diz, repetidamente, que acabou com um projeto de transformar o Brasil em um país comunista. Você acha que nos 20 anos, deste último período democrático, o Brasil esteve no caminho para virar comunista?

Esse terror que fizeram do Brasil poder virar Cuba, poder virar comunista [não faz sentido]. Nos últimos 20 anos, o Brasil não chegou nem perto de virar comunista. Esse terror do vermelho é usado para controlar o progresso social das classes mais baixas. Talvez porque isso revolucionasse as classes mais baixas, os negros, as classes mais sensíveis. Eles tinham medo dessa ascensão. Medo que ela trouxesse questionamentos sobre a hierarquia posta no Brasil. Dessa herança escravocrata que até hoje existe.  Foi muito usado esse terror comunista para manter esse controle.

Na época do Jango, em 1964, tinha inclinações de esquerda, de fazer uma reforma agrária que poderia ter mudado a história do Brasil. Podia ter mudado completamente esse país que a gente vê hoje cheio de pobreza. Ela teria resolvido o problema da desigualdade social, porque tudo mundo iria ter a sua terra. Não houve um projeto para o Brasil depois da escravidão. Os descendentes das pessoas escravizadas, os índios e pobres foram deixados à margem. E continuaram escravizados.

Gabriel Caymmi jogando futebol com Chico Buarque, amigo pessoal do artista gráfico (Foto: arquivo pessoal)

No seu trabalho é evidente o engajamento político. A vontade de discutir política e pensar num Brasil melhor. Você acha que outras manifestações artísticas, como o teatro, o cinema e a música, deveriam se manifestar mais sobre política, sobre desigualdade e sobre a perda de direitos?

A arte tem o poder de transformar mentes e abrir consciências. Cada vez mais é necessário que o setor artístico ocupe os espaços. Apesar que, neste governo, está cada vez mais difícil produzir arte. Mas o artista tem que enfrentar e questionar o governo. Qualquer governo. A arte é livre, independente de direita ou esquerda, a arte precisa circular. Eu aprendi a ler e a gostar de estudar através da arte. Eu era uma criança muito agitada e o que me colocou nos trilhos foi essa linguagem da arte.

A sua tia Nana deu uma entrevista apoiando o Bolsonaro, dizendo que ele precisa ser apoiado e com críticas duras para todos os lados. Você esperava que ela tivesse uma identificação tão forte assim com esse governo, ainda mais acontecendo tudo o que aconteceu em tão pouco tempo?

Sobre a minha tia Nana e a entrevista dela apoiando o Bolsonaro, na família já era sabido que ela apoiava. Eu conversei com ela essa semana e ela ressaltou que nunca foi de dar opinião política ou tentar convencer alguém na família. Ela sempre foi na dela. Foram críticas duras para todos os lados. Quem conhece ela de perto, principalmente os artistas que ela atacou, conhece o temperamento dela, não levam isso a sério, entendeu. Falei com Chico [Buarque] e ele disse ‘A sua tia é assim mesmo, relaxa’.

Mas é claro quando você dá uma entrevista para um jornal e emite uma opinião política você pode ser atacado. Como toda família, têm esses dois lados: a ala direita e a ala esquerda. Como tem também nos grupos de WhatsApp, os conflitos, as famílias se separando. Minha família não é diferente de nenhuma outra família brasileira com grupos diferente e pensamentos diferentes. Apesar de não concordar com nada que ela falou, eu tenho que respeitar porque ela é minha tia. Ela tá dentro do direito dela de falar. A pessoa fala o que quer e escuta o que não quer, faz parte da democracia.


Gabriel, Juliana (irmã de Gabriel) e Dorival Caymmi (Foto: arquivo pessoal)

Na mesma entrevista, ela também fala da obra do seu avô dizendo que ele só é lembrado nas festas das religiões afro-brasileiras, de uma maneira pejorativa.  Por outro lado, a obra do Caymmi é, certamente, uma forte expressão popular tanto na Bahia, quanto no Brasil. O que você acha dos comentários dela? Na internet, falam muito que é preconceituoso.

Na entrevista, ela trata de forma pejorativa a obra do meu avô. Eu não concordo. Ele é muito respeitado no Brasil, na Bahia. Tem questões pessoais dela com ele, não resolvidas. A entrevista tem um tom meio de entrevista com psicólogo. Tem essas questões misturadas ali dentro. Com certeza a obra do meu avô tem uma forte expressão popular.

Ela não pode falar por ele. Não pode dizer que ele não tinha mais saudade quando foi à Bahia pela última vez, em 2006. Ela não estava lá. Foi a família inteira. Ele recebeu o Prêmio Jorge Amado. Foi a última vez que ele foi à Bahia. Eu acompanhei as saídas dele do hotel. Ele foi na igreja do Senhor do Bonfim. Estava super feliz de rever os lugares da infância dele. Ela foi muito infeliz de ter falado por ele neste ponto. É uma mensagem ruim que afeta a imagem dele com o povo baiano. Um povo que sempre amou ele e ele sempre amou a Bahia.

Tudo o que ele sabe e aprendeu veio da Bahia. Ele cantou a Bahia. A obra dele é toda baseada na época em que ele morou na Bahia, durante a infância, nos fragmentos desse período. Ele veio para o Rio muito cedo porque lá não tinha como desenvolver a obra dele, apesar dele nem saber ainda que ia ser música, mas o Rio era a terra da rádio e do futebol, onde as coisas aconteciam. Em menos de um mês na cidade, ele já estava na rádio. Mas ele nunca esqueceu a Bahia. Ele tinha um respeito muito grande pelas religiões afro-brasileiras. Ele tinha ligação com o candomblé. E sempre teve muito carinho por todos. 

Você votou no Lula? O que acha dos governos dele?

Votei nas duas vezes. Foi o maior presidente que o Brasil já teve. Foi o único que teve coragem de mexer com o que realmente era urgente no Brasil, o básico que era acabar com a fome. Depois investir em educação, no acesso ao ensino, os programas sociais que aumentaram o poder de consumo.  Os quatro primeiros anos foram os melhores. Até mesmo em relação à imagem no exterior. O Lula falava de igual para igual com qualquer chefe-de-estado do mundo. Na época do Lula, todo mundo queria fazer concurso. Teve o boom dos "concurseiros". Isso prova que o país está se desenvolvendo e que as pessoas querem fazer parte deste crescimento. O Lula fez uma revolução nas universidades. O filho e a filha da empregada puderam fazer uma faculdade. Isso mexeu com as elites que não querem perder os seus privilégios.

Edição: Aline Carrijo