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Aumento de negros no Festival de Curitiba expõe racismo no teatro

Comemorado pelos artistas, o crescimento de negros e negras no Festival também serviu para revelar o racismo estrutural

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"Falar estilhaça a máscara do silêncio", diz Larissa Luz no musical "Elza".
"Falar estilhaça a máscara do silêncio", diz Larissa Luz no musical "Elza". - Annelize Tozetto – Divulgação Festival de Curitiba.

O 28º Festival de Curitiba entra para a história como a edição com maior representatividade negra em seus palcos. Com mais de 400 espetáculos em 13 dias, chegou ao fim neste domingo (7) como o maior evento das artes cênicas na América Latina com o slogan "O Festival para todos".

Comemorado pelos artistas, o crescimento de negros e negras no Festival também serviu para revelar o racismo estrutural ainda presente tanto no teatro brasileiro como na sociedade como um todo.

Tantos negros e negras nos palcos é fruto, sobretudo, das mudanças recentes no teatro brasileiro, com número cada vez maior de atores e de companhias negros e também com a ebulição da temática negra e do combate ao racismo nos palcos, sempre com forte procura do público por este tipo de peça.

Prova disso foram as filas e os ingressos esgotados nos musicais "Elza" e "O Frenético Dancin'Days" e também nos espetáculos "Isto É um Negro?", "Navalha na Carne Negra", "Quando Quebra Queima", "Por Que Não Tem Paquita Preta?" e "Negro Não Nego", todos com forte presença negra em seus elencos – diante da alta procura, este último precisou fazer sessão extra no Fringe, a mostra independente do Festival de Curitiba.

Tensões raciais eclodem em Curitiba

A presença de artistas e profissionais negros em grande escala no Festival de Curitiba não só foi aplaudida, mas também fez eclodir tensões raciais antes camufladas. Afinal, até bem pouco tempo atrás, ver artistas negros nos elencos, sobretudo da Mostra Oficial, era raridade. O comum era um teatro feito majoritariamente por uma elite branca e de classe média e alta, até então não acostumada a sequer pensar sobre representatividade étnica nos palcos, tampouco em ser questionada sobre isso.

"Falar estilhaça a máscara do silêncio"

"Falar estilhaça a máscara do silêncio. Não é preciso portar armas, é preciso portar a voz". Esta fala do musical "Elza", aplaudida em cena aberta pelas mais de 2.000 pessoas que lotaram o Teatro Guaírão ao ser dita na potente voz da atriz e cantora Larissa Luz, é uma espécie de síntese do que ocorreu em Curitiba nesta edição, seja no palco ou nos bastidores.

A última sessão de "Elza" foi emblemática e dedicada à bailarina Priscilla Pontes, que durante a sessão sofreu uma atitude racista de uma pessoa branca na plateia do Guairão, que verbalizou seu incômodo com o cabelo afro trançado da artista. A equipe do Festival de Curitiba deu apoio à bailarina ofendida. Ao saberem do episódio, ainda durante o andamento do espetáculo, Larissa e as outras colegas que interpretam Elza Soares na superprodução resolveram dedicar a sessão deste sábado (6) para Priscilla e pedir respeito aos cabelos afro.

"A gente quer mais respeito, que as pessoas respeitem os nossos cabelos, as nossas coroas, os nossos turbantes. Queria dedicar essa peça hoje para Priscilla Pontes, uma mulher negra de Curitiba. Foi um prazer ter você aqui conosco, muito obrigada", disse Larissa Luz, sendo fartamente aplaudida.

Ao seu lado, suas colegas de elenco estavam fortemente emocionadas, como Késia Estácio, que desabou em choro diante da situação e levantou o punho cerrado no palco como gesto de resistência, assim como suas colegas, gesto este repetido por muitas pessoas na plateia de um arrepiado e impactado Guairão.

"Vai se fuder, negão!", ouviu o ator Érico Brás em Curitiba

O ator Érico Brás, astro da Globo e do musical "O Frenético Dancin'Days", no qual seu personagem, o DJ Dom Pepe, faz importantes falas sobre o racismo, também sofreu preconceito durante sua passagem por Curitiba. "Passeando pelas ruas de Curitiba um mendigo me pediu dinheiro e eu não quis dar. Ele de imediato disse: "…vai se fuder, negão. Volta pra tua terra, fudido", conta em seu relato.

"Me pus a pensar naquilo tudo e vi que o racismo é de fato um fenômeno destruidor que faz parte do consciente, nunca inconsciente, brasileiro. Os mendigos eram brancos e me pareciam curitibanos. Se não eram originalmente daquela cidade, no mínimo já eram o reflexo da vida social dali e seus costumes. E se não fossem mendigos seriam racistas do mesmo jeito", fala o ator. "Fiquei pensando o que eles já tinham dito para a quantidade de gays negros, mulheres negras, artistas negros que eram uma novidade na cidade por conta da atitude inédita do Festival de colocar tanto preto no evento, desfilando pelas ruas da cidade!?", lembra.

"Qualquer pessoa como um mendigo, cidadão numa condição social de abandono, pode ser um racista e ponto", afirma.

Ausência de negros é questionada em debate

E esta não foi uma situação isolada de enfrentamento do racismo estrutural durante os 13 dias do Festival de Curitiba. Em um debate sobre o teatro curitibano, realizado pela Mostra Stavis Damaceno 15 anos, uma artista negra na plateia chamou a atenção para o fato de a mesa ser composta apenas por artistas brancos. E lembrou que o teatro curitibano sempre negou espaço aos artistas negros. Os artistas brancos presentes na mesa demonstraram ficar constrangidos.

Ator negro confundido com 'vendedor de flores' e 'sabe com quem está falando?'

A Cia. de Teatro Os Satyros, de São Paulo, que celebrou seus 30 anos de existência no Festival de Curitiba, também passou por duas situações desagradáveis e racistas. Um ator negro do grupo entrou no restaurante onde comem os artistas do Festival, após encenar a peça "Mississipi", carregando um buquê de flores que havia ganhado na estreia.

Ao vê-lo entrar no recinto de bermuda e chinelo, como tantos outros artistas brancos fizeram no festival, uma artista de outra companhia participante, branca, proferiu a seguinte frase para seus pares, testemunhada pelo Blog do Arcanjo no UOL: "Nossa, deixaram o vendedor de flores entrar aqui no restaurante".

Outra situação foi quando um técnico do Satyros, também negro, segundo relato do ator Ivam Cabral, foi impedido de entrar na festa de abertura pela segurança do Guairão, que alegou estar com lotação esgotada. Contudo, logo em seguida chegou ao local uma atriz branca e que faz novelas na Globo e musicais. E a entrada dela foi permitida, após o clássico "você sabe com quem está falando?".

Espectadora ofendida interrompe peça

Também houve momento de tensão na estreia da peça "A Mulher Monstro", sucesso de público no Fringe, nas Ruínas de São Francisco. Uma mulher negra que estava na plateia ficou ofendida com uma frase do texto, no qual a personagem do monólogo profere xingamentos racistas aos cabelos crespos. O ator José Neto Barbosa parou a peça e se colocou à disposição da espectadora para conversar ao fim do espetáculo, e reforçou que a visão racista apresentada na peça não era sua, mas a da personagem que é alvo de crítica na montagem, segundo ele, feita justamente para criticar pessoas preconceituosas. A espectadora rebateu e disse que cenas daquele tipo só reforçavam o racismo, mesmo quando pretendiam combatê-lo.

O clima seguiu pesado e tenso até o fim. Em entrevista exclusiva, o ator comenta o episódio: "A senhora que se alterou estava acompanhando a peça em pé na lateral da tenda montada, tinha muita gente na rua. Ela se negou ao diálogo. A mesma não viu todo o contexto do espetáculo e nem assistiu até o final da obra, onde tudo se justifica. Recebemos um apoio gigantesco dos negros e negras, que emocionados nos escrevem e nos abraçam incentivando. Também gostaria de lembrar que não sou branco, além de ser gay, nordestino, drag, ou melhor, artista".

Na segunda sessão de "Isto É um Negro", uma espectadora branca resolveu interromper a peça, que ainda não havia acabado, para fazer uma extensa fala, na qual elogiou a montagem e disse que era preciso aquele tipo de discurso contra o racismo. Apesar de fazer uma fala elogiosa, a espectadora acabou por tomar a palavra em um contexto em que a mesma não havia sido oferecida a ela, gerando uma forte tensão no ar.  

 

Enviado especial a Curitiba, no Paraná, o colunista Miguel Arcanjo Prado viajou a convite do 28º Festival de Curitiba.

Miguel Arcanjo Prado é jornalista, mestre em Artes Cênicas pela UNESP, pós-graduado em Mídia, Informação e Cultura pela USP e bacharel em Comunicação Social pela UFMG. É crítico da APCA (Associação Paulista de Críticos de Artes), da qual foi vice-presidente. Mineiro de Belo Horizonte, vive em São Paulo desde 2007. Passou por O Pasquim 21, TV UFMG, Rádio UFMG Educativa, TV Globo Minas, Curso Abril de Jornalismo, Superinteressante, Contigo!, Folha de S.Paulo, Agora, Uma, R7, Record, Record News, Rede TV!, Claudia e Band. Foi eleito duas vezes um dos dez melhores jornalistas de Cultura em Mídia Eletrônica do Brasil pelo Prêmio Comunique-se.

Edição: Laís Melo