Resistência

Mobilização popular segue em luta por governo civil no Sudão após queda de Bashir

Militares queriam governo de transição após tirar presidente há 30 anos do poder; mulheres protagonizam levante

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Manifestantes exigem governo civil para comandar transição democrática em protesto no sábado (13) na capital sudanesa, Cartum
Manifestantes exigem governo civil para comandar transição democrática em protesto no sábado (13) na capital sudanesa, Cartum - Foto: Mohammed Hemmeaida/AFP

Depois de quatro meses de protestos intensos que culminaram na queda do presidente Omar Al-Bashir, o Sudão enfrenta agora incerteza sobre quais forças políticas irão prevalecer na disputa pelo poder no país. De um lado, os militares que garantiram a deposição de Bashir; de outro, a população que se mantém mobilizada para exigir a instauração de um governo civil para construir uma transição democrática depois de 30 anos sob o mesmo regime.

Os protestos no Sudão começaram a ganhar força em dezembro, a princípio contra o aumento do preço do pão e do custo de vida em algumas regiões. Rapidamente, a mobilização começou a questionar os abusos contra os direitos humanos, o desemprego e a desigualdade.

O jornalista Ahmed Kaballo explicou ao Peoples Dispatch que, enquanto os protestos anteriores no Sudão começavam em geral pela capital Cartum, esta mobilização começou pela cidade do nordeste Atbara e tomou 15 dos 18 estados do país. "Logo ficou claro para o povo sudanês de que este é um momento histórico em que todos os setores da sociedade sudanesa estavam participando, e que o regime não conseguiria reprimir o povo e fazer com que ele parasse de ir às ruas", apontou. "Foi uma mensagem de que eles não conseguiriam matar todos nós."

O modelo econômico neoliberal do regime de Bashir teve um impacto imenso na classe trabalhadora, o que contribuiu para a adesão massiva às manifestações. "Os trabalhadores aderiram aos protestos, desde operários de fábricas que não conseguiam mais comprar pão, porque o preço triplicou de um dia para o outro, até médicos", explica Kaballo. "Não é uma crise só de uma ditadura, mas também uma crise do neoliberalismo."

"O regime sudanês encampou uma guerra no Sudão do Sul e em Darfur, mas também encampou uma guerra contra metade da população: as mulheres", destaca Kaballo na entrevista. "Por isso elas representaram dois terços dos manifestantes, porque não aguentavam mais."

A legislação do Sudão controlava todos os aspectos da vida das mulheres, desde permitir casamento de crianças até limitar a roupa que usavam. Os agentes do Estado tinham permissão de espancá-las e prendê-las se considerassem que estivessem vestidas de maneira inadequada.

O protagonismo das mulheres ficou eternizado em 8 de abril, poucos dias antes da queda de Bashir, na foto emblemática da estudante Alaa Salah discursando em cima de um carro para uma multidão que gritava “revolução!”

Golpe e revolução

Mas o que está acontecendo no país “é um golpe e uma revolução ao mesmo tempo”, afirmou ao The Real News o professor de ciência política do Departamento de Estudos Africanos da Universidade de Toronto Khalid Ahmed. O acadêmico explica que, inicialmente, o golpe foi planejado pelo Partido do Congresso Nacional (NCP), do próprio Bashir, como uma estratégia de “aparentar uma mudança, na esperança de satisfazer os manifestantes e acabar com o protesto”.

A intenção, segundo Ahmed, era garantir a saída do presidente e, ao mesmo tempo, evitar sua extradição para ser julgado no Tribunal Penal Internacional, em Haia, por crimes de guerra e contra a humanidade.

Foi o próprio ministro da Defesa e vice-presidente de Bashir, Awad Ibn Auf, que anunciou, na quinta-feira (11) a queda de Bashir, mas, como aponta Ahmed, ele também “precisa ser responsabilizado pelo que fez em Darfur”, em que também é apontado por crime de genocídio. Diante da força dos protestos populares, Ibn Auf acabou renunciando também.

No domingo (14), a organização dos protestos apresentou uma lista de demandas para os militares. Além da criação de um governo de transição comandado por civis, a chamada Aliança por Liberdade e Mudança pede a reestruturação do serviço de segurança e inteligência do país - cujo chefe, Salah Abdallah Gosh, renunciou após a queda de Bashir.

O Partido Comunista do Sudão diz que a proposta dos militares de comandarem um regime de transição é uma tentativa de roubar a revolução do povo. Sindicatos e movimentos estão convocando a população a se manter mobilizada para continuar a luta popular por um governo civil de transição.

Nesse sentido, explica o cientista político, as manifestações continuam fortes mesmo após a derrubada e prisão de Bashir. “É uma revolução no sentido de que se está exigindo mais do que foi dado até agora. Não é suficiente ter militares, não é bom para a população ter dois anos de conselho militar pela frente”, analisa. Por conta disso, os manifestantes querem a dissolução do NCP e afirmam que não sairão da frente da sede do Exército enquanto não tiverem a garantia de um governo civil de transição.

O conselho militar que derrubou Bashir anunciou inicialmente um plano de ficar no poder durante dois anos, mas voltou atrás depois da repercussão popular negativa. O mesmo conselho também se nega a extraditar o presidente deposto.

*Com informações de Peoples Dispatch, The Real News, Al Jazeera, Washington Post e The Guardian

Edição: Pedro Ribeiro Nogueira