Entrevista

Ana Esther Ceceña: "Amazônia é fundamental para hegemonia dos EUA na América Latina"

Coordenadora do Observatório Latinoamericano de Geopolítica falou sobre riscos à soberania dos países latinos

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Ceceña também é pesquisadora da Universidade Nacional Autônoma do México
Ceceña também é pesquisadora da Universidade Nacional Autônoma do México - Divulgação

Após um período de melhora nos indicadores sociais a partir de governos progressistas, a América Latina passa por uma nova fase, marcada pelo avanço neoliberal. Ao mesmo tempo, intensificam-se os ataques à soberania dos países do continente, protagonizados pelos Estados Unidos, como a busca por espaço na Amazônia e a empreitada estadunidense contra a Venezuela para acessar o petróleo. 

Esses foram os principais temas da entrevista com Ana Esther Ceceña, pesquisadora do Instituto de Investigações Econômicas e Pós-graduação de Estudos Latino-americanos da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM) e coordenadora do Observatório Latinoamericano de Geopolítica. Também participaram da conversa, mediada pelo Brasil de Fato, os pesquisadores Pedro Freitas, doutorando em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo (USP), e Olívia Carolino, integrante do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, que promoveu o debate.

Ana Esther Ceceña aponta que a expansão territorial é fundamental para o avanço das multinacionais e a continuidade do projeto de acumulação do capitalismo. Para os EUA, o desejo de alcançar espaço acontece também para intensificar o controle militar no continente. 

A base de Alcântara (MA), por exemplo, é ansiada pelos EUA há anos, como mostram documentos oficiais das Forças Armadas americanas. Essa cobiça foi acatada em março, através de um acordo assinado pelos ministros Ernesto Araújo (Relações Exteriores) e Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia).

Além do controle militar, Ceceña discute a chamada “guerra de quarta geração”, presente no Brasil, mas também em âmbito mundial, e disseminada através da guerra cultural, da cyberguerra e de espaços que fogem do alcance do conjunto da população. 

“Através do controle digital do funcionamento geral das atividades é que você pode determinar o que vai acontecer. É um âmbito atmosférico, porque trabalha com sinais, comunicação de alto nível, e isso têm a ver com a necessidade de controlar as mentes e as reações.”

Confira abaixo os melhores momentos da entrevista de Ana Esther Ceceña ao Brasil de Fato

Brasil de Fato: Qual a sua avaliação sobre a situação atual da América Latina em relação ao avanço neoliberal sobre os recursos estratégicos?

Ana Esther: Neste momento eu diria que a voracidade territorial é muito grande, porque têm a ver com a disputa hegemônica, e a capacidade de cada grupo capitalista de ter acesso aos recursos valiosos e estratégicos. Tem uma espécie de carreira por ocupar os territórios, que é muito importante neste momento, e que explica o porquê de tanta guerra, pois responde às necessidades de ter maiores ganâncias, maior acumulação. As guerras são disciplinares em função do que o capital precisa para sobreviver cada vez melhor, acumulando.

Na América Latina, tem um velho projeto de reordenamento do território, que vem desde o México, até a ponta do continente, e que se combina com diversos projetos, como a iniciativa para a Integração da Infra-estrutura Regional Sul-Americana (IIRSA) no sul e o Plan Puebla no Panamá, centro-norte do continente. 

Esses projetos vão mudando de nome, mas a ideia se mantém. São projetos de redefinição de rotas, de penetração de territórios que não têm conexão com o mercado mundial previamente, ou têm má conexão. Os níveis de extração de recursos têm aumentado também, então é necessário ter infraestruturas mais fortes e com mais capacidade para extrair todos os recursos que são necessários para essa reprodução material.

A história desses projetos tem sido muito muito variada nos diferentes lugares, mas em termos gerais acho que é um projeto que avança por partes, por seções, porque tem mais oposição em alguns lugares que em outros. Com isso avança da mão das grandes construtoras. No caso da IIRSA, a Odebrecht tem sido muito importante para isso. Os negócios da Oderbrecht estão vinculados totalmente à IIRSA. Mas, também, mineradoras que de repente tem crescido muito, como a Vale. Ela já era grande e importante, mas, quando coloca a possibilidade de ter acionistas do exterior, tem crescido de modo impressionante, e acompanhada com a possibilidade de construção de estradas, que permitem penetrar a Amazônia. 

Tem uma espécie de carreira por ocupar os territórios, que é muito importante neste momento, e que explica o porquê de tanta guerra, pois responde às necessidades de ter maiores ganâncias, maior acumulação.

No México temos o mesmo problema, porque no sul do México existe a conexão com a Amazônia, com a selva tropical do norte, e tem o mesmo complexo de biodiversidade, junto com a Amazônia. Tudo isso está sendo motivo de bioprospecção e construção de diferentes mecanismos de penetração para a extração de recursos desse tipo, mas mexe também com o vínculo direto com os Estados Unidos. Tem as rotas que vão diretamente para fronteiras com os Estados Unidos. Se você pensar rotas que vão por mar, de dois pontos amazônicos no Atlântico e Pacífico, ao norte, mas também por  terra, tem toda a rota que pode ir acumulando coisas. Da ponta sul até a fronteira norte através do México.

São projetos importantes, que têm passado por momentos muito complicados, porque foram começados nos anos 2000, em uma época de mudanças na América Latina, com muita atividade de recuperação de soberania em vários países, muita integração para os povos, e não somente para o capital. Isso foi um obstáculo, mesmo que muitos desses governos progressistas compartilhassem parte da ideia de desenvolvimento, mas de outra maneira. Disputando espaços com o capital internacional. 

Isso trouxe um obstáculo para um projeto que parecia imediato de desenvolvimento rápido, de dois anos construindo infraestrutura, não foi possível, mas não foi abandonado. Segue sendo vigente, mesmo com outros nomes em outros lugares, mas segue sendo apoiado pelos governos atuais. É um só projeto, mesmo que se tenha coisas regionais distintas, mas é um só projeto de reordenamento territorial, impulsionado pelo centro hegemônico do continente, que é os Estados Unidos.

Qual o papel da Amazônia e da base de Alcântara na estratégia hegemônica mundial dos Estados Unidos?

A Amazônia é muito importante para o acervo material de recursos dos Estados Unidos. Lá se encontra muita biodiversidade, água, energéticos. A Venezuela está aí com uma reserva gigantesca de petróleo. Tem muito minério importante, estratégico. A Amazônia é a entrada ao sul do continente, e é muito curioso ver o mapa, porque tem o ponto transversal mais longo do continente, mas também o menor no Panamá. 

O canal do Panamá, que parte é da Amazônia, e depois é toda a região que passa pelo Brasil, Colômbia, Equador, e que IIRSA pretende construir um canal gigantesco, passando 70 km que tem o canal do Panamá para ser atravessado, para 2000 km que tem a Amazônia. Tudo isso é Amazônia, mas como tem o canal do Panamá ali, também é uma conexão com o norte do continente, com a zona caribenha, que é uma zona com muito petróleo também, mas é a entrada ao continente vindo da Europa. É uma região que é historicamente muito importante, e isso se mantém.Tem um número de recursos inestimáveis e únicos no mundo. 

As selvas nunca são iguais nas diferentes partes do mundo, e essa é uma selva única. É uma região única em biodiversidade, diversidade cultural e social muito grande. Têm culturas milenares, grupos isolados, tudo isso é importante pelo conhecimento que esses grupos sociais possuem da utilização das plantas, dos animais, da criação e de formas de vida distintas, que permitem acrescentar às selvas ao invés de reduzi-las. É uma região fundamental para a hegemonia dos Estados Unidos no continente. Justo por isso, eles não querem a presença de outras possíveis potências no continente. América é para os americanos.

O governo do Brasil está fazendo uma escolha que é muito atrevida, porque não é só a base de Alcântara, é o território brasileiro, envolvendo o controle militar do continente.

Até agora o Brasil tem sido muito cuidadoso com o seu território, mesmo os militares diziam que o Brasil podia cuidar dele, e não queriam a presença de outros no território. Agora, simbolicamente, é um golpe mesmo para os militares brasileiros. A base de Alcântara é muito importante para rodear a área amazônica, e a base que vai completar a teia de aranha que tem um tecido sobre a Amazônia e o Caribe, faltava somente a posição de Alcântara, do Atlântico. Faltava fazer triangulações que são importantes para os movimentos militares. Tem muito tempo que queriam isso, e a base de Alcântara está contemplado nos documentos oficiais das Forças Armadas dos Estados Unidos há muito tempo. 

Tinha sido uma disputa, que eu mesma participei, quando [o ex-presidente Fernando Henrique] Cardoso queria entregar a base para os Estados Unidos. Tinha uma luta importante contra isso, e se ganhou que Alcântara ficasse com o Brasil. Mas, agora que as tensões militares sobre a área amazônica, contemplando a Venezuela, são tão intensas que entregar a base de Alcântara é tomar posição pela colonização americana do continente inteiro. 

O governo do Brasil está fazendo uma escolha que é muito atrevida, porque não é só a base de Alcântara, é o território brasileiro, envolvendo o controle militar do continente. A militarização tem um dos pontos mais importantes na posição de Alcântara, então é justificativa da militarização da política.

A militarização na América Latina tem aumentado?

Sim, tem aumentado, eu diria muito, mas de maneiras diferentes. Existem mais bases militares agora do que no ano 2000. Colômbia está cheia de bases militares. Têm várias figuras de bases militares que são distintas. Agora, tem uma coisa que eles chamam de Centros Operativos de Treinamento Regional, que são uma espécie de base militar com funções de treinamento das tropas locais, e que têm especializações distintas. Tem uma em Concón, no Chile, que se fez quando as revoltas estudantis eram muito fortes no Chile. Eles a colocam lá para darem treinamento em conflitos urbanos. 

Outras são em conflitos na selva, por recursos naturais, de diferentes tipos, mas existem muitos no continente, no Peru, no Chile, em vários lugares. Você tem que agregar as bases militares propriamente ditas a esse tipo de bases militares e, quando as condições de instalar bases militares não são tão boas, instalam bases policiais com as mesmas características e funções. O continente está muito mais militarizado que no ano 2000.

Como a guerra de quarta geração tem se manifestado?

No Brasil, e no mundo em geral, acho que a chamada guerra de quarta geração é quase universal. Tem uma batalha cultural muito grande no mundo agora, e a indústria midiática e culturais são privilegiadas dentro da concepção da guerra nestes tempos. O terreno de guerra que hoje é considerado como estratégico é o terreno da ciberguerra. Controlar os metadados, porque através do controle digital do funcionamento geral das atividades é que você pode determinar o que vai acontecer. É um âmbito atmosférico, porque trabalha com sinais, comunicação de alto nível, e isso tem a ver com a necessidade de controlar as mentes e as reações. 

As religiões, seitas, a maçonaria cumprem muitas vezes a função de espaços de socialização, porque o trabalho também não é tão integrado como antes, é mais disperso. Os espaços de socialização têm se modificado, e é nesses espaços que se trabalha a guerra da quarta geração, não somente na televisão. Não tem que pensar somente nos grandes meios, mas também nos pequenos espaços. Nos dois campos a ideia de medo como motivo de decisão nas eleições é muito importante. 

No México, por exemplo, tinha uma campanha de dizer que López Obrador era amigo do Chávez, e Chávez é um monstro para o conjunto da população. Então, diziam que se votassem nele ia ter mais violência, que não ia ter emprego. Essa campanha se faz em todos os lugares do planeta, cada uma com suas características. Lula era algo como um monstro durante a campanha, e isso repercute nas decisões de voto.

O que significa uma possível guerra na Venezuela para o continente americano?

[Já] tem guerra na Venezuela. Guerra econômica, financeira, midiática, de fornecimento, e militar, porque entram mercenários, faz-se golpe de Estado, tudo junto. É uma guerra de espectro completo, mas dessas guerras que não se declara completamente. Acho que a militarização do continente tem sido muito mais importante fora da Venezuela do que dentro. 

Os convênios militares entre Estados Unidos e Equador, de dois anos para cá, são muito importantes. A presença dos militares dos EUA no Equador, na Colômbia, no Brasil, e mesmo em países mais longes como Uruguai, é permanente, sistemática e muito intensa de uns anos para cá. Quero dizer: a guerra da Venezuela é a militarização do continente, para ser possível a guerra na Venezuela. Então, é muito perigosa. 

Além disso, há presença dos mercenários por todos os lados. Tem mercenários na Colômbia, muitos paramilitares ocupando a fronteira com a Venezuela, mas circulando e explorando a região. A fronteira brasileira com a Venezuela está cheia de mercenários, além das forças institucionais. É um risco para as populações da fronteira, ocupadas por forças ilegais de todo tipo. Construir a democracia nessas condições não é fácil.
 

*Colaborou Bruna Caetano

Edição: Aline Carrijo