Rio de Janeiro

UNIVERSIDADES PÚBLICAS

"Cotas foram a revolução silenciosa no Brasil", afirma deputada e estudante cotista

Dani Monteiro se opõe ao projeto de lei que tem por objetivo acabar com a reserva de vagas nas universidades do Rio

Brasil de Fato| Rio de Janeiro (RJ) |
Para a parlamentar, a aprovação das cotas na Uerj, em 2003, foi um marco histórico no processo de democratizar o acesso à universidade
Para a parlamentar, a aprovação das cotas na Uerj, em 2003, foi um marco histórico no processo de democratizar o acesso à universidade - Ascom Alerj

As cotas raciais implementadas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) completaram 15 anos em 2019. A política afirmativa é apontada por especialistas como um importante instrumento para reduzir a desigualdade social no Brasil. Contudo, após mais de uma década, a medida segue sendo alvo de preconceito sob o argumento de ser uma iniciativa "segregacionista" e "discriminatória".

O deputado estadual Rodrigo Amorim (PSL) é um dos parlamentares que é contrário as cotas. No início do mês,  ele protocolou um projeto de lei a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) com o objetivo de por fim a reserva de vagas para negros, pardos e indígenas em universidades públicas estaduais do estado.

O Brasil de Fato conversou com a deputada estadual Dani Monteiro (Psol) sobre o impacto da política afirmativa na Uerj. Para a parlamentar, que ingressou na universidade pelo sistema de cotas raciais, a medida democratizou o acesso ao ensino superior e mostrou que os estudantes cotistas são os que têm mais assiduidade e menos evasão.

Confira a entrevista completa:

Brasil de Fato: No início deste mês, o deputado estadual Rodrigo Amorim (PSL) apresentou um projeto de lei na Alerj em que defende o fim da reserva de vagas para negros, pardos e indígenas em universidades estaduais. Como negra, estudante cotista da Uerj e deputada estadual, como você recebeu a notícia deste projeto de lei?

Dani Monteiro: Este PL é uma  afronta à democracia. Estamos falando de um país no qual são 519 anos de Brasil e mais de 350 anos de escravidão. Uma estrutura de Estado que era econômica e política de modo que é preciso construir caminhos para a reparação história dessa população que ficou marginalizada por tanto tempo. O Brasil, como cossignatário da Conferência que aconteceu em Durban, na África do Sul, em relação ao combate ao racismo e a xenofobia, assina a responsabilidade de construir políticas públicas que retirem a desigualdade social que tem entre pessoas brancas e negras no país. Esses índices são mais comprovados no acesso à direitos sociais como educação e educação do ensino superior.

A aprovação das cotas na Uerj, em 2003, foi um marco histórico no processo de democratizar o acesso à universidade. Afinal, a população negra é mais da metade da população brasileira, mas antes da lei de cotas era cerca de 3% do corpo universitário e, antes de qualquer uma das políticas de ações afirmativas, apenas 2% da população negra tinha diploma de nível superior. Cerca de 10, 15 anos depois, há um salto onde quase 20% dos estudantes do ensino superior são negros. Então, entendemos o impacto desta política pública quando relacionamos esses dados.

A Uerj foi uma das primeiras universidades a adotar o sistema de cotas e as avaliações são as melhores possíveis e segue em todos os rankings de pesquisa e produção científica como uma das universidades mais citadas no Brasil e no mundo. Essa construção de conhecimento vem de uma base de estudantes cotistas, tanto de escolas públicas, quanto das cotas raciais. Ao comparar o rendimento desses estudantes, percebemos  que a Uerj foi pioneira para desconstruir esses argumentos de que estudantes cotistas diminuiriam o nível da universidade pública.Todos os relatórios da Uerj sobre a avaliação do sistema de cotas é que os estudantes cotistas têm mais assiduidade e menos evasão do que os não cotistas e, inclusive, têm notas mais altas.

Há um desconhecimento sobre as cotas raciais e sociais. Na Uerj há ainda a reserva de vagas para filhos de agentes de segurança do estado que foram mortos ou incapacitados em serviço. Você poderia explicar o funcionamento dessas cotas e o seu diferencial?

Todas as cotas da Uerj, tanto de raça, quanto para estudantes de escola pública, têm um recorte socioeconômico. Qualquer estudante precisa comprovar a sua hipossuficiência financeira e de sua família para acessar o sistema de cotas. Então, já se percebe que esse é um corte fundamental para ir diretamente nos estudantes mais precarizados. Esse estudante que entra por cota racial, por exemplo, não só é negro, mas ele precisa ser negro, oriundo de escola pública e ter a renda inferior ao que seria o teto para ter acesso ao sistema de cotas.

E como presidente da Comissão Especial da Juventude da Assembleia Legislativa do Estado do Rio (Alerj), o que vocês têm feito com relação a este projeto de lei do deputado Rodrigo Amorim (PSL)?

Pretendemos fazer uma arguição com as próprias universidades estaduais. A gente tem, a partir da Comissão Especial de Juventude, mas também em parceria com a Comissão de Ciência e Tecnologia e a Comissão de Educação, tentado dialogar com a comunidade universitária para conseguirmos construir essa resposta que não pode ser só uma resposta toma lá, dá cá. Ela precisa ser uma resposta coletiva, da sociedade. Vivemos em uma sociedade que nega o racismo. Temos figuras como o presidente Jair Bolsonaro (PSL) que fala que racismo são casos esporádicos ou, até anteriormente, governadores como o Sérgio Cabral que falou que útero de mulher negra é fábrica de marginal.

É toda uma resposta social que precisa ser dada. É difícil para alguém que nunca pisou na universidade, falo por conhecimento, sou a primeira geração da minha família que pisa na universidade. Então, eu sei o que é para a minha mãe olhar para a universidade e eu sei que é difícil ter este entendimento de qual é o serviço efetivo da universidade. Pelos sucessivos ataques que a universidade passa, essas mentiras vão ganhando corpo na sociedade, mas ontem [manifestações da educação] foi uma boa resposta para mostrar o quanto a universidade está à serviço da sociedade.

O seu ingresso na Uerj foi a partir da cota racial e você é a primeira pessoa da sua família a entrar numa universidade. O que mudou na sua vida desde então?

Teve um papel fundamental na minha vida que me construiu como uma cidadã participativa, tendo uma participação política efetiva dentro da sociedade e se fazendo presente. Uma das maiores lições que eu desenvolvi na universidade foi a visão crítica que me aproxima da sociedade. Até porque, pessoas como eu, que ocupam espaços como esse que eu ocupo hoje de deputada estadual são fundamentais para desmentir essa onda de "fake news" e inverdades, informações inverídicas sobre o que é o sistema de cotas e o sucesso que ele é para democratizar o acesso e a permanência ao ensino superior.

Eu acho que a existência de pessoas como eu em diversas áreas e não só aqui na política, mas ocupando espaços até no jornalismo, na acadêmia, nas artes é fundamental para esse reconhecimento de que as cotas foram a revolução silenciosa no Brasil e seguem em curso.

Edição: Mariana Pitasse