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Artigo | Chico Buarque, intérprete do Brasil

Ganhador do Prêmio Camões de Literatura, artista mostra olhar crítico sobre situação do país em produções mais recentes

Brasil de Fato | São Paulo |

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Chico Buarque em Barcelona, na Espanha, durante o lançamento do seu terceiro livro, "Budapeste"
Chico Buarque em Barcelona, na Espanha, durante o lançamento do seu terceiro livro, "Budapeste" - Luis Gente | AFP

No último dia 21 de Maio, Chico Buarque se tornou o mais novo ganhador do Prêmio Camões de Literatura – um dos mais importantes troféus da língua portuguesa. Como é de praxe em nossos dias, enquanto a maioria celebrava, alguns comentários virulentos pulularam pela internet, acusando um suposto caráter “político” da homenagem.

Seria uma brutal ofensa à estatura de Chico mergulhar nessas pantanosas águas cibernéticas, dando às sempre raivosas milícias virtuais mais atenção do que elas merecem. Por outro lado, não seria de todo desinteressante relembrar uma recente passagem da obra do autor tendo em mente as mesmas pessoas que hoje esbravejam pelas redes sociais. Em seu cancioneiro, afinal, Chico parece ter entrevisto algo do processo histórico que conduziu a essa bestialidade. Vejamos:

No imaginário brasileiro, é muito viva a lembrança do Chico Buarque que escrevia canções de protesto na segunda metade dos anos 1960. Não seria necessário relembrar aqui as magistrais melodias de temas diversos, nas quais o compositor censurado cifrou a experiência de viver sob a batuta dos quarteis.

O Chico de fins da década de 1970 em diante, porém, não é menos brilhante em notar as questões sensíveis ao país, como a profunda desigualdade social que relega milhares de brasileiros às “mutretas pra cavar o ganha-pão”. Na canção “Pivete”, por exemplo, o músico cantou a vida de um menino de rua que “vende chiclete”, “capricha na flanela”, “descola uma mutuca” e, eventualmente, “aponta um canivete”. Vista pelo ângulo de uma mãe pobre, a trajetória dramaticamente triste do jovem assaltante (nesse caso, morto pela polícia) foi também tema de “O meu guri”.

Mais tarde, em “Brejo da Cruz”, Chico falou de migrantes que se tornavam jardineiros, guardas noturnos e babás, enquanto a criançada da terra natal “se alimentava de luz” e ficava “eletrizada”. Um Brasil em que “uns vendem fumo” e outros “caminham nus”: o que se via era uma nação socialmente cindida, cuja pobreza condenava multidões à precariedade, ao crime e à letalidade policial – problemas que seriam tratados, por exemplo, pelo RAP e outras formas da cultura que despontariam em finais do século.

Ao mesmo tempo, Chico não deixou de perceber o ódio com que os habitantes desse Brasil eram enxergados por outros setores da sociedade. Já em 2004, em entrevista à Folha de S. Paulo, notou um comportamento particular de alguns em relação aos menos favorecidos. Disse o artista: “Assim como já houve um esquerdismo de salão, há hoje um pensamento cada vez mais reacionário. O medo da violência se transformou não só em repúdio ao chamado marginal, mas aos pobres em geral, ao motoboy, ao sujeito que tem carro velho, ao sujeito que anda malvestido”.

É essa percepção que Chico parece ter traduzido em música na canção “As caravanas”, composta para seu recente álbum homônimo. Nela, o eu-lírico abre com a chegada de moradores da periferia carioca à praia do Jardim de Alá – o que remete às verídicas caravanas dos bairros pobres do Rio à orla da Zona Sul. Rapidamente, então, passa a contar a reação da “gente ordeira e virtuosa” que apela “para a polícia despachar de volta o populacho pra favela, ou pra Benguela ou pra Guiné”. Surge o refrão, na verdade uma espécie de mantra repressivo: “tem que bater! Tem que matar!”. Há menção também a uma “zoeira dentro da prisão” e a “crioulos empilhados no porão”, tudo em um arranjo que cruza violino com batida de funk. Das caravanas para os navios do tráfico negreiro, do morro do Rio de Janeiro para a África, Chico assim estabelece uma linha de continuidade entre a violência escravista e a violência contemporânea do encarceramento em massa e da brutalidade da polícia.

“As caravanas” foi escrita em 2017, antes dos últimos acontecimentos marcantes da vida política brasileira. Mas não deixou de visualizar os ranços coloniais de nosso país, que permanecem incrivelmente vivos, produzindo a sensação de que algo da escravidão se recusa a desaparecer. De fato, em coluna recente, o cientista político André Singer afirmou que, no Brasil, “Chegado certo limite [de avanço democrático], as classes dominantes, com o entusiástico apoio da classe média, repõem o atraso”. Não seria demais acrescentar que esse apoio, agora, vem acompanhado de uma onda de ódio também a sujeitos específicos, historicamente ligados à própria luta pela democratização, como ativistas, professores e artistas. Nesse sentido, uma parte dos atuais belicosos internéticos, com seus variados alvos, não faz mais do que ecoar a palavra de ordem “tem que bater! Tem que matar!”.

Claro que isso está longe de explicar tudo. Mas não deixa de ser interessante perceber como a psicologia de muitos daqueles que hoje praguejam contra o Prêmio Camões já havia sido percebida pela sensibilidade genial de Chico Buarque de Holanda.

*Gabriel Lima é professor de literatura e doutorando em Letras pela Universidade de São Paulo

Edição: Aline Carrijo