Rio Grande do Sul

ENTREVISTA

O amor como instrumento político revolucionário

O pastor Henrique Vieira esteve em Porto Alegre, na terça-feira (18), lançando seu livro O Amor Como Revolução

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Além de pastor, Henrique é professor, cientista social, historiador, teólogo e ator
Além de pastor, Henrique é professor, cientista social, historiador, teólogo e ator - Fotos: Fabiana Reinholz

“Que todas as crenças religiosas sejam respeitadas e até mesmo a não crença religiosa. Que possamos comungar na crença da humanidade, da diversidade, do bem comum. Que seja declarada justa toda forma de amor (...)”. Assim começa a oração proferida no dia 4 de dezembro de 2018, no programa Amor e Sexo, da Globo. A oração feita pelo pastor batista Henrique Vieira gerou na ocasião um frisson nas redes sociais por tratar de temas não muito explorados pelo canal global, como feminismo, machismo, racismo, transfobia e outras pautas ligadas a questões de identidade, gênero ou sexualidade.

Nessa terça-feira (18), em um evento com a ex-deputada estadual e federal Manuela D'Ávila (PCdoB) nas escadarias da Borges, em frente ao bar Justo, ponto turístico de Porto Alegre, Henrique Vieira não declamou sua prece, mas falou de amor. Não do amor romântico de novelas, filmes ou romances, mas do amor como dispositivo político, do amor enquanto consciência política, o amor enquanto aquilo que nos liga à humanidade no sentido mais profundo e concreto, o amor que quebra barreiras de preconceito, o amor que se rebela contra sistemas injustos. O amor para vencer os discursos de ódio.

Lançamento do livro contou com debate no centro de Porto Alegre com a participação de Manuela D'Ávila 

Para além do amor, falou também sobre os inúmeros segmentos que a religião evangélica tem, do seu caráter mais humanitário, social, frente ao fundamentalismo religioso praticado por um determinado nicho que se vê em canais de televisão. “O campo evangélico é um campo heterogêneo, é um campo multiforme, plural. Quando as pessoas ficam tristes e desesperadas porque Malafaia é evangélico, eu lembro que Martin Luther King também era, para acalmar o coração e mostrar que esse campo tem uma variedade enorme”.

O livro “O Amor Como Revolução” do também professor, cientista social, historiador, teólogo, pastor e ator, pode ser encontrado nas livrarias do país. Henrique pretende fazer um circuito popular, com rodas de conversa nas periferias e movimentos culturais pelo país. “Meu objetivo é que o livro seja instrumento das nossas causas, para incidir na conjuntura, falar ao coração das pessoas, combater o fundamentalismo religioso e cultural e ser um apontamento de um país socialmente justo e livre das amarras da opressão, quero fazer trabalho de base com o livro”.

“Enquanto uns apostam em armas, nós apostamos em livros, livros que mudam pessoas, pessoas que mudam o mundo, eles tem rede de TV, falam para milhões de pessoas, mas eu prefiro estar junto ao povo, em um lugar público”. E foi desse lugar público que Henrique conversou com o Brasil de Fato RS.

Confira abaixo a entrevista completa:

Brasil de Fato: Tu viestes lançar teu livro aqui em Porto Alegre, Amor Como Revolução, gostaria que tu nos falasse um pouco desse livro, proposta, quais as questões que tu traz?

Henrique Vieira: A ideia do livro é fazer um contraponto a essa narrativa de ódio, de violência, de intolerância que cresce no mundo e no nosso país. Então o livro identifica alguns dispositivos estruturais e estruturantes de ódio na história do Brasil como racismo estrutural, o fundamentalismo religioso e a própria violência do Estado contra os mais pobres. E dai, a partir a leitura dessas violências estruturantes como o amor aparece aqui como atitude política revolucionária. Ou seja, o amor aqui não tem nada a ver com romance, não tem nada a ver com afeição momentânea e sentimental entre duas pessoas, não é isso, o amor aqui é uma profunda consciência política, de empatia, de solidariedade, de uma alternativa civilizatória.

O amor enquanto atitude política que enfrenta preconceitos, que desmonta dispositivos de ódio, que amplia a consciência política e que nos vincula à luta mais geral, por justiça social, por direitos humanos em sua amplitude e pela plena liberdade dos corpos. Eu tento tirar o amor de um universo romântico apenas, e caracterizá-lo como uma atitude política, só que eu faço isso não apenas através de conceitos e teorias, eu vou contando histórias, eu vou tratando de memórias da minha própria vida, da minha própria infância, da militância. Ou seja, acho que estamos num tempo de um certo esgotamento, de um panfletarismo que não toca o coração das pessoas, então fui por um outro caminho, mais afetivo, mais narrativo, de memórias pessoais, de histórias da vida, para a partir disso furar a bolha e conversar com o conjunto da população.

BdF: Nesse sentido, tu és um pastor, e como é ser um pastor com essa visão de mundo, de esquerda, pastor evangélico, hoje, nesse momento que a gente vive essa questão da religião tão próxima do preconceito e do ódio?

Henrique : É um desafio porque de fato existe um fundamentalismo religioso predominante que alimenta essas atitudes de violência, que fortalece essa agenda capitalista global, mas eu não me sinto sozinho. É desafiador, mas não é um voo solo. Eu sempre falo isso, eu faço parte de uma tradição cristã, progressista. Então estou nas fileiras de Martin Luther King, Don Helder Câmara, da irmã Doroty, da teologia da libertação, das comunidades eclesiais de base, de um setor evangélico progressista que existe no Brasil, existe movimento negro evangélico, existe movimento feminista evangélico, existe mulheres negras evangélicas discutindo pauta de gênero, raça, existe evangélicos na luta por moradia, na luta pela reforma agrária, na pauta ecológica, anticapitalista. Então é desafiador porque a conjuntura é muito hostil, mas eu sempre gosto de dar visibilidade a tradição cristã progressista da qual eu faço parte e ao campo evangélico progressista no qual eu me insiro, eu não estou sozinho, eu sou parte de uma agenda cristã popular, que com muita humildade, coragem, tenta resgatar o sentido mais profundo do evangelho de Jesus.

BdF: Poderia falar um pouco dessas diferenças que existem dentro da religião dos evangélicos, e um pouco dessa questão do fundamentalismo, e dessa ala, por exemplo, pastores como Edir Macedo, que tem uma certa visão de dominação inclusive.

Henrique: Existe um segmento evangélico com muito poder econômico, midiático e político. Esse segmento tem um projeto de poder, que é totalitário, que é avesso a democracia, que não celebra a diversidade e que é insensível socialmente. São empreendedores, empresários e coronéis da fé, dentre eles, por exemplo, Edir Macedo. Nessas lideranças eu não identifico nenhum traço de compromisso com o evangelho, de vínculo genuíno à bíblia, ao projeto de Deus, que é o Deus dos oprimidos, que é o Deus do povo. Então tem esse segmento que hoje tem muito poder, muita influência, muito dinheiro e que é hostil à democracia, que na minha humilde, corajosa compreensão explora o povo a partir da fé.

Agora, o segmento evangélico não é um segmento, ele é muito plural, muito heterogêneo desde a sua origem. Então você tem muitas igrejas, muitas denominações e toda generalização incorre em erro e preconceito. Não existe projeto popular para o Brasil hoje sem considerar o segmento evangélico, ele é majoritariamente popular, negro, favelado e periférico. Não dá para achar que todo evangélico é um Edir Macedo, tem muitas pessoas hoje nas igrejas vivendo humildemente a sua fé em Jesus, encontrando na igreja um espaço de acolhimento, e são pessoas trabalhadoras, que acordam cedo, voltam tarde para casa, são precarizadas, exploradas por esse modelo. Então achar que o campo evangélico como um todo é único, uniforme, inimigo da democracia, é não entender a pluralidade do campo evangélico, é não entender que boa parte, ou a maioria dos evangélicos, é composta por trabalhadores e trabalhadoras, têm muitas mulheres nessas igrejas. Então, é preciso por um lado, identificar o discurso fundamentalista, denunciar os coronéis da fé, mas abrir diálogo respeitoso com o povo evangélico que está na base, lutando para sobreviver, sem um projeto colonizador, sem achar que vai chegar levando a verdade para as pessoas, mas sentar com o povo e conversar porque a maior parte do povo evangélico é composta por gente pobre, gente do povo, gente trabalhadora.

Em visita à capital gaúcha, Pastor Henrique Vieira concedeu entrevista ao Brasil de Fato 

BdF: Algumas pessoas dizem que as igrejas evangélicas cresceram, e elas estão ai em tudo que é periferia, dentro de assentamentos, dentro de ocupações, por exemplo, do Movimento Sem Terra (MST), dos movimentos urbanos, em um vazio deixado também pela igreja católica e pelo papel que cumpria as comunidades eclesiais de base, por exemplo, na ditadura militar, e pelo próprio movimento social de esquerda, que de alguma forma também se ausentou muito do debate nas periferias, nas comunidades. Como tu vês isso?

Henrique: Sim, acho que as igrejas crescem muito em função dessa lacuna, desse vazio, mas também acho importante ter um certo cuidado da gente não achar que as igrejas só existem por causa dessa lacuna e desse vazio, é uma avaliação de meio termo que estou propondo porque estamos falando de um campo de espiritualidade, um campo de experiência de fé, de experiência com o evangelho. Então dizer que o crescimento da igreja evangélica depende exclusivamente dessa lacuna, eu acho que é desconsiderar a especificidade, a singularidade da experiência de fé que escapa a esse contorno. Por outro lado, é inegável que em um mundo cada vez mais individualista de vazio de encontro, de esvaziamento de um sentido comunitário público da vida, as igrejas cumpram um papel importante, porque é um local onde ainda as pessoas se encontram, que as pessoas conversam, que você chega lá com um problema, as pessoas te ouvem, visitam sua família, oram por você, que muitas pessoas que não tem voz nem vez na sociedade, quando entram naquela comunidade de fé se tornam liderança, falam e as pessoas ouvem, ganham importância, ganham visibilidade.

Então eu costumo dizer que as igrejas evangélicas muitas vezes resgatam individualidades massacradas numa sociedade elitista, desigual e racista. Dai aquela pessoa pobre e negra, por exemplo, entra naquela igreja e se torna uma liderança e os conflitos de sua vida são atendidos ou ouvidos, e as questões da sua família ganham importância, isso é um milagre sociológico, no mínimo, caso não seja espiritual. Então tem algo ai de comunitário, de coletivo que as igrejas alimentam, mesmo que isso não seja elaborado com um projeto de sociedade, mas tem uma vivência comunitária ali que no mínimo faz diferença na vida de muita gente.

BdF: E tem esse lidar com a subjetividade, com a espiritualidade que de certa forma movimentos sociais, movimentos sindicais não fazem. Isso que tu estavas falando lá no início, que tu trabalha no teu livro que esse discurso panfletário não alcança mais o coração e a mente das pessoas, tu acha que isso de certa forma explicaria esse momento, digamos, surreal que estamos vivendo, em que as pessoas ao mesmo tempo te mandam uma mensagem de bom dia, jesus te ama, te mandam uma outra mensagem cheia de ódio?

Henrique: Surreal mesmo. Eu acho que sim, a esquerda precisa resgatar a potência política do afeto. O título do meu livro não foi à toa, eu sei que, para determinados setores da própria esquerda esse título pode soar careta, despolitizado e alienante; “ah Henrique, o amor como revolução, o amor? Vamos falar de política, vamos falar de economia, vamos falar de conjuntura”. Mas é isso que a esquerda, na minha compreensão, precisa entender, porque se a gente não fala mais em amor, amor é um conceito alienante, burguês, que não serve para nós, se a gente não fala mais em família, porque família é um núcleo burguês que atende um modelo de preservação da propriedade privada, se a gente não fala mais de vida, porque vida remonta a uma pauta, bem eu não falo em amor, eu não falo em vida, eu não falo em família e quero conversar com o povo?, eu vou abrir mão de conceitos do cotidiano? Ou eu vou disputar o significado desses conceitos, ou eu vou dizer que o amor é fundamental, que família é fundamental e que existem várias formas de família, e que família é um espaço de afeto, de vínculo, que família tem a ver com direito à terra, direito à moradia, renda para comprar comida para a própria família, que vida é um conceito amplo e tem a ver com dignidade humana, não posso abrir mão, senão eu fico com uma linguagem panfletária, uma gramática política que só serve para mim, para alimentar o meu ego, meu intelecto e que não toca no coração das pessoas, sem mística, não estou falando religiosidade, mas sem mística não transformaremos o mundo, especialmente a América Latina, sem essa dimensão subjetiva, sensível, afetiva, íntima, que não precisa ser despolitizada, não precisa ser alienante, temos que perder o medo de falar a linguagem da vida, a linguagem corrente, e disputar o significado, mais emancipador desses conceitos, amor vida, família, afeto, não podemos entregar isso para uma narrativa da direita. Eles são os caras da família e a gente não? Não, nós também somos, por isso combatemos o racismo, a lgbtfobia, queremos terra, casa, comida para todo mundo, porque queremos que as famílias tenham dignidade e possam viver bem, nós somos defensores da família.

BdF: O próprio Che Guevara dizia que o amor é revolucionário...

Henrique: Acredito que sim, isso não é novo, mas tem que ser resgatado, como algo pedagógico e sincero, não só propagandístico. Acredito que a mudança do mundo passa por transformações econômicas, políticas estruturais e passa também pelo nosso próprio coração, por um coração cada vez mais altruísta, mais generoso, mais sensível para a gente não ficar só preso as estruturas e depois repetir mecanismos de dominação e poder, eu acredito que tem que ser uma mudança conjunta estrutural, sistêmica, ao mesmo tempo que nosso coração vai se transformando na caminhada da vida, da luta, da militância, para produzir uma humanidade mais generosa, mais propensa a felicidade para todo mundo.

Oração da Felicidade (pastor Henrique Vieira no programa Amor e Sexo)

Que todas as crenças religiosas sejam respeitadas e até mesmo a não crença religiosa

que possamos comungar na crença da humanidade, da diversidade, do bem comum

que seja declarada justa toda forma de amor

que nenhuma mulher seja alvo do machismo estrutural

que a juventude negra não seja alvo do extermínio

que marias eduardas não sejam assassinadas dentro da escola

que marquinhos da maré não sejam assassinados indo pra escola

que Marielles possam chegar em segurança em suas casas

que todo agricultor tenha uma terra para plantar

que todo sem teto tenha uma casa pra morar

que os indígenas sejam respeitados nas suas crenças

que as fronteiras acabem e as armas caiam no chão

que a felicidade venha sobre nós, respeitando toda dor e consolando toda lágrima

felicidade de verdade só é possível sob a benção da comunhão.

Amém, axé e o que de mais universal existe: amor

Edição: Marcelo Ferreira