MOBILIZAÇÃO

"Estamos nos movimentos mas falta visibilidade", diz 1ª deputada lésbica da Guatemala

Sandra Morán, militante da Marcha Mundial das Mulheres, comenta as eleições em seu país e atuais desafios do feminismo

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Sandra Morán é militante popular e em 2015 foi eleita deputada do Congresso da República da Guatemala representando o movimento feminista
Sandra Morán é militante popular e em 2015 foi eleita deputada do Congresso da República da Guatemala representando o movimento feminista - Foto: Luiza Mançano/Brasil de Fato

A guatemalteca Sandra Morán, embora já fosse conhecida no interior dos movimentos populares e articulações -- sobretudo feminista -- na América Latina, ganhou projeção nos meios de comunicação alternativos por ter se tornado, em 2015, a primeira deputada lésbica do Congresso da República da Guatemala.

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Em passagem pelo Brasil, onde participa do seminário “Resistência e construção de movimento: confrontando o neoliberalismo desde a economia feminista e os comuns", organizado pela Marcha Mundial das Mulheres (MMM), movimento que faz parte, Morán conversou com o Brasil de Fato sobre sua atuação, as eleições presidenciais da Guatemala, que aconteceram no último domingo (16), o atual momento do feminismo e visibilidade lésbica.

Trajetória

Morán tem 56 anos e uma longa trajetória no movimento popular. Sua atuação política começou aos 14 anos, no movimento estudantil. De lá pra cá, sua luta foi ganhando diferentes sentidos, criando uma convergência para que hoje pudesse atuar a partir destes múltiplos lugares e posições.

“Eu fui desenvolvendo minha participação nos movimentos a partir das diversas identidades que tenho. Eu entrei no movimento popular a partir do movimento estudantil quando estava no ensino fundamental ainda, aos 14 anos. Depois fui ao movimento estudantil universitário, à Revolução, depois fui para a música e fui ao feminismo, tudo isso faz parte do meu próprio caminhar como pessoa e militante da luta social e revolucionária”, explica a deputada.

Formada em economia, Sandra dedicou sua vida à luta clandestina na sua juventude. Entre 1960, ano de seu nascimento, e 1996, a Guatemala viveu uma intensa Guerra Civil. Neste contexto, aos 21 anos, partiu para o exílio, vivendo no México, Nicarágua e Canadá, onde atuou nos movimentos de solidariedade.

A militante só regressou ao seu país nos últimos anos do conflito armado e foi parte ativa, como integrante do setor de mulheres, na campanha pelo Acordo de Paz, assinado pelo governo de Álvaro Arzú e pela guerrilha Unidade Revolucionária Nacional Guatemalteca.
Para ela, estes elementos culminaram na sua atuação política como integrante da Marcha Mundial das Mulheres e como deputada a partir de 2015.

“Cada momento da vida se torna uma síntese do acúmulo que os momentos políticos propiciam na vida. Eu me movimentei a partir do movimento feminista e esse movimento me deu a possibilidade de fazer sínteses da luta feminista, dos direitos das mulheres lésbicas, da comunidade LGBT e hoje que sou deputada isso me ajuda muito, porque tenho trabalhado com o tema da diversidade sexual, com as mulheres, com a juventude, com as pessoas portadoras de necessidades especiais, isto é, consegui, a partir da minha experiência de vida, ter esta possibilidade de conhecimento e de luta”, comenta Morán.

Atuação parlamentar

Nas eleições de 2015, Sandra Morán foi eleita deputada pelo partido de esquerda Convergência e passou a conectar sua luta a partir dos movimentos sociais com sua atuação parlamentar, ao lado de Álvaro Velásquez, pesquisador (que faleceu durante seu mandato, em 2017), e Leocadio Juracán, líder camponês, seus companheiros de bancada.

Embora tenha sido eleita como representante dos setores sociais e do movimento feminista, sua entrada no mundo institucional não se deu sem conflito, como comenta:

“Entre eu e Leocadio, por exemplo, existia uma diferença. Ele entrou como uma estratégia de sua organização com o partido político. E todo o trabalho que ele desenvolveu e que desenvolvemos juntos, foi parte de fortalecer esta estratégia camponesa. Então seu mandato se tornou uma nova ferramenta de uma estratégia popular e camponesa. No meu caso não, não foi a estratégia do movimento e inclusive quando entrei para o mandato, minha aliança se separou de mim pela compreensão de que não pode existir uma conexão entre o político e o social. No meu ponto de vista, esta é uma noção equivocada. Eu estou mais próxima da forma como Leocadio trabalha”.

O ônus que acarretou sua entrada no parlamento do país centro-americano levou-a a procurar outros caminhos para honrar os 32 mil votos que recebeu.

“Eu consegui criar grupos de participação política, espaços específicos para discutir e para criar estratégias. Então eu acredito que deve ser parte da discussão política dos movimentos que companheiros e companheiras estejam nesses espaços, como parte de uma estratégia. Nós dizíamos: três dentro, milhares fora. Porque o que fazíamos era amplificar a voz do que estão fora. Porque estar no Congresso é ter poder, assim como estar na rua é ter poder, mas são formas diferentes. No Congresso, são tomadas as decisões que afetam a vida da população”, recorda-se.

Um dos projetos impulsionados por Morán é a iniciativa de lei de Proteção às Meninas, resultado de uma elaboração coletiva do movimento feminista do país, que busca estabelecer uma série de medidas de proteção e políticas públicas voltadas para a população feminina menor de 14 anos. Uma dessas medidas é a autorização da interrupção voluntária da gravidez para meninas vítimas de violência sexual, exploração sexual ou tráfico de mulheres.

Até maio deste ano, foram registrados 1963 casos de gravidez de meninas entre 10 e 14 anos no país, segundo dados do Observatório de Saúde Reprodutiva. Este dado se torna ainda mais preocupante quando se considera o fator de violência sexual. No primeiro trimestre de 2019, 567 casos de violência sexual contra meninas de 10 a 14 anos foram denunciados.

No entanto, a iniciativa de lei que busca resolver este grave problema social não é só considerado secundário pela maioria dos congressistas, como também foi tratado como uma ameaça ao país e utilizado pela direita conservadora para fazer campanha contra a “ideologia de gênero”.
Sandra comenta, que por ser a proponente do projeto, se tornou um dos principais alvos dos setores fundamentalistas no Congresso.

Ela também expressa que o tema do aborto, em projeção nas lutas feministas na América do Sul, sobretudo na Argentina, é um tema ainda mais difícil no país centro-americano.

“Na Guatemala [o aborto] é um tema tabu. Eu apresentei uma lei que não era sobre aborto, mas que tinha um artigo sobre isso, e eu sou conhecida como abortista. Não enchemos nem uma quadra com gente para defender este tema. É uma temática importante, mas que foi sempre tabu na América Latina”, opina.

Sandra Morán no seminário “Resistência e construção de movimento: confrontando o neoliberalismo desde a economia feminista e os comuns", realizado em São Paulo (Foto: Elaine Campos)

Ascensão do feminismo

A líder popular acompanha com atenção as lutas recentes do feminismo na América Latina e também em outros continentes, como ex-integrante do Comitê Internacional da MMM. Ela, que começou sua militância ainda nos anos 1990, quando as mulheres do continente começavam a se articular para resistir contra o neoliberalismo crescente na região, analisa os fatores da massificação das mobilizações feministas no último período.

Um dos elementos apontados por Morán é o protagonismo da juventude que, para ela, “tem uma energia vital importante” para propor novas formas de organização. O outro, que vê com preocupação, é o que chama de “massividade sem estrutura”:

“Isso quer dizer que hoje você pode participar de uma marcha, mas não ser parte de nenhuma organização de modo orgânico. Nós na Guatemala tivemos uma experiência assim em 2015, quando houve grandes manifestações que começaram com 25 mil e terminaram com 150 mil, mas de toda essa ampla mobilização hoje temos apenas coletivos pequenos organizados”, analisa.

Para ela, entre os principais desafios para a organização feminista popular e anticapitalista estão conseguir articular mobilizações massivas mas manter uma estrutura organizativa contínua e enfrentar a mercantilização dos símbolos feministas.

“O capitalismo sempre teve a capacidade de tornar uma mercadoria qualquer ícone, como o Che Guevara, por exemplo, tratado como um ícone sem conteúdo. Também Frida [Kahlo] é um ícone agora que, de repente, está em todos os lugares, na moda, nos sapatos, nas bolsas. E é um ícone que nós podemos reivindicar, mas agora é um ícone da cultura de massas, que pode ser mercantilizada. Isso sempre existiu e é um desafio para nós”, conclui.

Eleições

Em meio à ascensão e popularização do feminismo, as eleições presidenciais da Guatemala no último domingo, 19 de junho, ganharam projeção no cenário internacional por ser uma disputa eleitoral com, inicialmente, quatro pré-candidatas. Entre as quatro presidenciáveis, apenas duas, Sandra Torres, candidata socialdemocrata e ex-primeira-dama do país, e Thelma Cabrera, candidata indígena e camponesa, concorreram no primeiro turno.

Morán ressalta a participação de Thelma Cabrera, que apesar de ter ficado em quarto lugar na disputa, colocou em debate importantes temas, como a proposta de um Estado Plurinacional, com autonomia para os povos indígenas.

"Evidentemente, só uma candidatura é resultado da luta popular, que é a de Thelma Cabrera, que ficou em quarto lugar. Foram quinze candidatos e ela ficou em quarto lugar. Mulher, camponesa, indígena. E ficou em quarto lugar com o voto da população urbana, em um voto que foi chamado de "voto rebelde". Porque além disso, ela está colocando em questão uma nova Constituição para o país, a partir de um outro modelo, do bem viver. Então isso é importante", comenta.

As outras duas pré-candidatas, Thelma Aldana, ex-procuradora da República que se tornou uma das figuras mais reconhecidas no cenário político por estar à frente de importantes investigações sobre corrupção junto com a Comissão Internacional Contra a Impunidade (CICIG), e Zury Ríos, deputada por 16 anos e filha do ex-ditador Efraín Ríos Montt, tiveram suas candidaturas suspensas pela justiça eleitoral por motivos muito diferentes.

Ríos não pode se candidatar por uma decisão da Corte Suprema do país com base em uma interpretação de um artigo da Constituição que proíbe os participantes de um golpe de Estado a se candidatar à presidência, assim como impede a postulação de seus descendentes ao cargo. Já Aldana teve sua candidatura impedida por acusações de desvio de dinheiro público e fraude fiscal, acusações consideradas por ela e por diversos setores como um caso de perseguição judicial, por ter empreendido uma investigação contra o atual presidente do país, Jimmy Morales. Para Morán, a impugnação de Aldana foi uma forma de tirá-la da disputa porque estava em primeiro lugar nas pesquisas de intenção de voto.

"As outras três, entre elas a filha de Efraín Rios Montt, são políticas de longa data. Ela [Ríos] foi deputada e uma pessoa muito preparada, de direita, que quis concorrer. Teve a Thelma Aldana, ex-procuradora, que se tivesse ficado, estaria hoje no segundo turno, e por isso não deixaram ela ser candidata, porque é uma mulher de centro-direita com uma aliança de esquerda", explica.

Sandra Morán e Lolita Chávez, líder indígena feminista, comemoram a condenação (revertida posteriormente) de Efraín Ríos Montt pelo genocídio do povo ixil, em 2013 | Foto: James Rodríguez

Sandra afirma que houve uma maior articulação das feministas para impulsionar candidaturas de mulheres nessa última eleição, mas que a maioria, inclusive a dela, não passaram das listas internas dos partidos.

“Fizemos um grupo para impulsionar candidaturas de mulheres, que impulsionava também a minha campanha. Mas essas candidaturas tinham que ser negociadas porque não temos um partido e, nessa negociação, em alguns casos as mulheres ficaram em segundo lugar, e eu fui não fui escolhida para a reeleição”, expressa.

Apesar das dificuldades, ela também comenta que as feministas começam a pensar em outras estratégias para eleger mais mulheres.

“Não é a primeira vez desse grupo, mas desta vez parece que é muito mais inclusivo e nos permite discutir o que isso significa para as próximas eleições, se tentamos uma aliança com um partido político ou fazemos um partido nosso, que não seja apenas um partido de mulheres, mas que nós tenhamos um papel fundamental no partido. Viemos caminhando da experiência de dar as costas à participação política eleitoral até o momento que estamos agora, de construir um partido próprio”, argumenta.

Das 158 cadeiras do Congresso da República da Guatemala, 132 são ocupadas por homens. Atualmente, Sandra é uma das 26 deputadas do parlamento, isto é, faz parte do 16% de mulheres na Casa, um percentual próximo à do Brasil, que passou de 10 a 15% nas últimas eleições.

Na Guatemala, não há uma lei que estabelece cotas mínimas de participação de mulheres nos partidos políticos.

Visibilidade lésbica

Se a representação feminina igualitária ainda é uma perspectiva distante dos poderes na Guatemala, o panorama se torna ainda mais complicado para mulheres como Sandra Morán, assumidamente lésbica e líder popular.

Também, se em 2015 Sandra passou a ser reconhecida como a primeira congressista lésbica do país, o caminho de sua atuação política a partir deste lugar é duradouro: em 1995, Sandra assumia sua sexualidade e começava a participar da organização do primeiro coletivo de mulheres lésbicas da Guatemala.

Apesar disso, a militante reconhece que as mulheres lésbicas ainda são muito invisibilizadas na política e continuam em uma espécie de “armário” em termos de representação.

“Sempre estive em muitas reuniões em diferentes lugares do mundo, e cada vez mais vejo e não entendo muito bem o fato de que as mulheres lésbicas estejam ausentes da política. Na Guatemala, as mulheres lésbicas são as menos organizadas, inclusive são as que menos me relacionei politicamente, uma contradição”, lamenta.

Ao falar sobre a falta de representação das mulheres lésbicas, Morán comenta também a violência que a população LGBT em geral sofre em seu país. Em outubro de 2018, grupos conservadores apresentaram uma Projeto de Lei para a Proteção da Vida e da Família que apresenta, entre seus artigos, a proibição de casamentos e uniões civis para pessoas do mesmo sexo.

“Uma das coisas que eu disse aos meus companheiros e companheiras sobre essa lei terrível que querem passar em Guatemala, é que o que eles querem é que sejamos invisíveis. E nós temos que ser mais visíveis”, assevera.

Sandra, que termina seu mandato em janeiro de 2020 e não se candidatou à reeleição, considera que uma das estratégias necessárias para combater a invisibilidade lésbica é que os movimentos e organizações populares assumam este tema.

“Estamos nos movimentos, mas falta a visibilidade e a articulação O que não quer dizer que vamos sair dos movimentos que estamos, porque não temos que afastar da luta que estamos, mas sim, colocar a visibilidade na discussão interna das nossas organizações”, encerra.

Edição: Rodrigo Chagas