PUNITIVISMO

"Mídia do medo" estimula a redução da maioridade penal, diz jurista

Lucia Helena Barbosa, da ABJD, argumenta que mudança na lei não resolve o problema e seria inconstitucional

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Trancafiar menores infratores impede que se desenvolvam como seres humano plenos, afirma promoyora
Trancafiar menores infratores impede que se desenvolvam como seres humano plenos, afirma promoyora - Observatório do Terceiro Setor

O apoio de parte da população brasileira às propostas de redução da maioridade penal se deve à manipulação midiática em torno do assunto, segundo avalia a promotora de Justiça Lucia Helena Barbosa, do Ministério Público do Distrito Federal e integrante da Associação Brasileira dos Juristas pela Democracia (ABJD).

“Há uma enorme manipulação da mídia do medo, que faz com que as pessoas apoiem essa medida, na crença de que, se você prende mais, você diminui a criminalidade e fica mais seguro”, afirmou a promotora, em entrevista ao Brasil de Fato.

Em tramitação no Congresso desde 1993, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que reduz a maioridade penal de 18 para 16 anos em casos de crimes considerados hediondos, homicídio doloso e lesão seguida de morte, voltou a tramitar no final do ano passado, depois da vitória eleitoral de Jair Bolsonaro, e está na fase de audiências na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado.

Aprovada como PEC 171/93 na Câmara dos Deputados em agosto de 2015, com o apoio do então presidente da casa, Eduardo Cunha (MDB-RJ), a proposta foi rebatizada de PEC 115/15 no Senado e aguarda parecer do senador Marcelo Castro (MDB-PI) na CCJ, onde foram realizadas três audiências públicas nos últimos meses.

Lucia Helena participou de uma dessas audiências no dia 27 de junho. Ela questiona não só o teor da matéria, mas também sua constitucionalidade. Para a promotora, a maioridade a partir dos 18 anos (prevista no artigo 228 da Carta) se enquadra nas cláusulas pétreas da Constituição, aquelas que não podem ser modificadas.

Entre as cláusulas pétreas, segundo o artigo 60 da Constituição, estão todas aquelas relativas aos “direitos e garantias individuais”.

Leia abaixo a entrevista:

BRASIL DE FATO: Na sua opinião enquanto especialista, a redução da maioridade penal é constitucional?

Lúcia Helena Barbosa: Não é, porque eu defendo o caráter absoluto do direito humano que protege a dignidade das pessoas. A Constituição exigiu como cláusula pétrea o sistema da proteção integral à crianças e adolescentes. Submeter um jovem de 16 anos, seja lá o que ele tenha feito, à pena de mais de vinte anos, acho extremamente problemático.

Muitas pessoas argumentam a favor da maioridade penal mostrando a aprovação que ela goza entre a população brasileira. Esse fator deveria ser levado em conta?

Para um movimento desse tamanho, a gente precisava de um poder constituinte originário. A gente teria que votar uma Assembleia Constituinte de novo. É uma ousadia e uma falácia dizer que a maioria da população aceita isso [a redução]. Há uma enorme manipulação da mídia do medo, que faz com que as pessoas apoiem essa medida, na crença de que, se você prende mais, você diminui a criminalidade e fica mais seguro.

Sempre que a gente aumenta a punitividade a gente diminui a proteção. A Constituição tem como programa estabelecer uma sociedade solidária, estabelecer um estado de proteção máxima e punição mínima. Mas a gente tem a mídia insuflando o medo, o que faz com que aparentemente haja o apoio a um maior punitivismo com diminuição de proteção.

E a gente vê isso em outros setores: menos dinheiro para a educação, menos dinheiro para a saúde, o projeto anticrime do Moro, baseado em uma política absolutamente punitiva e repressiva.

A redução da maioridade penal pode reduzir o número de delitos cometidos por jovens infratores?

Não. Eu tenho trinta anos pensando atos infracionais. Sempre que estou na frente de um menino que cometeu um ato infracional, vejo um pedido de socorro. Ele tá esperando proteção, e é esse o direito dele.

Quando prendo e coloco esse menino em contato com adultos, o que eu faço é formar esse menino na escola do crime. O amadurecimento do lobo frontal, segundo a neurociência, só acontece aos vinte e seis anos. É o lobo frontal que determina atitudes impulsivas, e a grande maioria dos crimes é de atitudes impulsivas. Os crimes planejados são de um outro espectro da criminalidade, eles não tem capacidade de organização para formar quadrilhas ou planejar um ato criminoso.

Quando o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) foi discutido, em 88 e 89, eu participei e via que o ECA se transformaria em um instrumento de punição, e é isso que nós temos hoje. Por incrível que pareça, os meninos ficam mais presos que os adultos por pequenos tráficos e por pequenos delitos contra o patrimônio, com base na defesa da ordem pública. O que a gente precisa fazer é uma desconstrução disso para mostrar que a aplicação do ECA pelo poder judiciário e pelo ministério público já é extremamente rigorosa.

Quais medidas seriam mais eficientes?

Eu sou favorável a estender a inimputabilidade. O ideal para mim era 26 anos, pelo menos 21. Até 21 anos, tratar essas pessoas de forma diferenciada, acreditando em socioeducação.

A gente precisa educar os sistemas de controle social, como a polícia, o ministério público e o poder judiciário. Reestruturação completa das unidades de internação para transformá-las em comunidades socioeducativas, sem grades, em que os meninos possam conviver uns com os outros e aprender a conviver melhor.

Não é trancados como bichos que eles vão se desenvolver como seres humanos plenos. Hoje, quase 70% das ações socioeducativas são de segregação e privação da liberdade, o que significa a seguinte resposta: "Eu não quero ver você. Vou colocar você dentro de uma grade porque não gosto de você".

Em alguns países desenvolvidos, a maioridade penal é menor do que 18 anos. Esse argumento não deveria pesar a favor da redução?

Nesses lugares, o Estado é extremamente punitivo. Por exemplo, nos Estados Unidos, é zero. A partir de zero anos, dependendo do fato, o menino pode ser preso. E [os EUA] é o maior encarcerador do mundo, tem uma grande taxa de punição e baixa taxa de proteção: as leis trabalhistas são flexibilizadas, direitos sociais quase inexistentes.

Os Estados Unidos não são exemplo de um Estado que a gente erigiu na Constituição de 88: um Estado protetor para formar uma sociedade solidária. Estados que são chamados totalitários, como Cuba, tem um Estado altamente protetor e menos punitivo.

Edição: João Paulo Soares