Retrocessos

Saídas para a crise, cooperativismo e economia solidária são abandonados pelo governo

Entidades denunciam que Conselho Nacional não se reuniu nenhuma vez desde a posse de Bolsonaro (PSL)

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
A catadora de materiais reciclável Lúcia Fernandes, que participa de uma cooperativa desde 2008
A catadora de materiais reciclável Lúcia Fernandes, que participa de uma cooperativa desde 2008 - Unicopas

As políticas públicas que incentivam o cooperativismo e a economia solidária enfrentam dificuldades no governo de Jair Bolsonaro (PSL), denunciam entidades ligadas ao setor. O Conselho Nacional de Economia Solidária, por exemplo, ainda não se reuniu em 2019.

O dia 6 de julho marca a data Dia Internacional do Cooperativismo — um tipo de organização do trabalho centrada na autogestão dos trabalhadores. Nesse sistema, todos os cooperados são os proprietários da entidade e dividem os lucros do negócio.

Nos últimos oito anos, o número de cooperativas no país cresceu 2,6%, segundo o Anuário do Cooperativismo Brasileiro de 2019. Em 2010, eram cerca de 6.652 cooperativas. Hoje, são 6.828 entidades no país que geraram, juntas, mais de R$ 260 bilhões.

Segundo o relatório, a quantidade de empregos gerados pelo modelo aumentou 43%. Já o número de cooperados teve um salto mais expressivo: em 9 milhões de pessoas, em 2010; oito anos depois, este número cresceu 62%, o que equivale a 12,6 milhões de pessoas.

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Quando baseado nas premissas da economia solidária, o cooperativismo pode ser uma estratégia no contexto dos altos índices de desemprego no Brasil, explica a economista Eliane Rosandiski.

Professora da Pontifícia Universidade Católica de Campinas e responsável pelo Observatório do Trabalho e Renda, Rosandiski avalia que, dessa maneira, a organização dos trabalhadores é uma forma de aumento de renda para o trabalhador.

A economista pontua que o sistema aparece como alternativas em momentos de crise econômica porque é comum em atividades que demandam muita mão de obra, como a agricultura e a reciclagem. 

“Quando você consegue estruturar essas atividades, é possível que você comece a fazer pequenas atividades de geração de trabalho e renda, o que permite uma solução para o problema do desemprego”, diz.

O trimestre encerrado no mês de maio terminou com a taxa de desemprego em 12,3%, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O número de desempregados reduziu em 0,5% em comparação aos três meses anteriores. Mas a melhoria dos índices é puxada, especialmente, pelos empregos informais.

Em seu segundo mandato como presidente da Cooperativa de Material Reciclável da Cidade Estrutural, a catadora Lúcia Fernandes do Nascimento conta que trabalha com materiais recicláveis há 18 anos. Sem trabalho nem moradia, ela optou por trabalhar no antigo lixão Estrutural, em Brasília. O depósito era, até o ano passado, o maior da América Latina e foi desativado por apresentar “risco à população”. 

Ela relata que decidiu trabalhar como catadora em 2008, quando os trabalhadores do lixão decidiram formar uma cooperativa. Hoje, a entidade tem 51 cooperados, todos com carteira assinada em uma atividade marcada pela informalidade.“Faz um ano e sete meses que, agora, a gente trabalha em um galpão, com a cooperativa pagando INSS de todos seus catadores”, conta Lúcia, orgulhosa. “Para gente, foi uma melhoria bastante grande.”

“Eu acho que a cooperativa é uma grande oportunidade para quem não está tendo oportunidade no mercado de trabalho”, defende a trabalhadora.

A cooperativa tem dois contratos, de coleta e de triagem, com o governo distrital: a entidade recebe R$ 304 por cada tonelada de material reciclável recolhida. E é dessa renda que a cooperativa paga as despesas da entidade, contribui com o INSS dos cooperados e até mesmo permitiu que os trabalhadores tenham benefícios, como licença-saúde. “E o que sobra, a gente divide no rateio com os cooperados”, explica. 

Sem apoio do poder público

Mas, em âmbito federal, políticas públicas que amparam e firmam os contratos que a cooperativa de Lúcia têm estão cada vez mais escassas. O que, para a economista, é o grande X da questão. 

“Quando se tem uma quantidade enorme de pessoas à margem do mercado de trabalho, o grande drama disso é que a gente passa a ter aí uma necessidade de suporte para que essas atividades sejam organizadas. E hoje acho que esse está sendo o grande drama da nossa economia porque todas as iniciativas que poderiam dar suporte a esse tipo de empreendimento estão sem nenhuma força política.”

Com a extinção do Ministério do Trabalho durante a reforma institucional de Bolsonaro, a antiga Secretaria Nacional de Economia Solidária foi diluída no Ministério da Cidadania como o nome de Secretaria de Inclusão Produtiva Urbana. Outra medida do governo Bolsonaro foi a extinção do Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico, o que também dava respaldo para o setor.

O sociólogo Leonardo Pinho, da Unisol (Central de Cooperativas e Empreendimentos Solidários), uma das centrais que integram a União Nacional das Cooperativas (Unicopas), afirma que o período é marcado por descontinuidade das políticas. “Nenhuma iniciativa foi tomada no atual governo para impulsionar as cooperativas da economia solidária”, denuncia. 

“A posição oficial sendo incentivada no Brasil, por vários governadores, afinados com o discurso do presidente da República, é de uma liberalização da economia, na verdade, é uma proposta de ter uma economia sem regulamentação no mundo do trabalho”, continua Pinho,  para quem o cooperativismo poderia surgir como uma saída à crise e à informalidade.

O Brasil de Fato entrou em contato com o Ministério da Cidadania, mas a pasta não respondeu até o fechamento desta reportagem.

Economia solidária versus economia compartilhada

A economista Rosandiski explica que uma legislação ampla define as cooperativas. É o que faz com que de pequenas entidades a grandes organizações como a Unimed, uma cooperativa de médicos, e a Aurora, do setor agropecuário, se encaixem no conceito -- o que não significa que elas sigam, necessariamente, princípios da economia solidária.

A economia solidária, ensina Rosandiski, é regida pela autogestão, respeito ao meio ambiente e respeito às decisões democráticas. “Ou seja, organizar o empreendimento de modo que todos tenham direito a voto, rotatividade de dirigentes, um conjunto de regras”, pontua.

“Essas cooperativas favoráveis ao agronegócio, por exemplo, podem estar no sistema cooperado, mas elas usam a brecha na lei para ter vantagens fiscais para se negociar entre cooperativas", afirma.

Sem uma definição mais específica sobre o que são cooperativas e sem órgãos de economia solidária, a economista teme o avanço de cooperativas de trabalho que são utilizadas, por exemplos, em setores de serviço como limpeza para oferecer mão de obra mais barata para outras empresas. 

“É uma terceirização da pior possível, porque não só você está terceirizando, como está burlando todas as leis trabalhistas. Então, há uma disputa muito grande para que isso não aconteça dentro do sistema do cooperativismo.”

Nesse contexto outra distinção que as entidades cooperativistas fazem questão de fazer é entre as economias solidária e compartilhada, a última representada pela disseminação de aplicativos como a Uber e o Airbnb.

“Não somos contra a utilização da tecnologia, por exemplo, dos aplicativos. Ao contrário, a gente tem muitas iniciativas de aplicativos. Mas elas não podem estar a serviço de uma economia da informalidade e da desregulamentação do trabalho”, pontua. 

“Na economia solidária, os meios de produção, as tecnologias, a gestão do negócio têm que estar sob controle dos próprios trabalhadores.”

Mas, com a descontinuidade das políticas para a economia solidária e a aprovação da reforma trabalhista, quem sai beneficiado é a informalidade. “O que a gente está assistindo no Brasil hoje é uma aposta do governo em uma economia com mais desregulamentação do trabalho”, pontua. 

No legislativo

As entidades do cooperativismo tentam pressionar o poder legislativo para avançar em leis no setor. As organizações estiveram presentes em uma audiência pública, em junho, na Comissão de Trabalho da Câmara dos Deputados para reivindicar uma nova lei geral que demarque o cooperativismo no país.  A legislação que rege hoje o setor é da década de 1970.

Nesta semana, o deputado federal Jaques Wagner (PT-BA) apresentou relatório favorável ao projeto de lei que estabelece a Política Nacional de Economia Solidária, integrada às estratégias de desenvolvimento sustentável, que tramita no Congresso Nacional desde 2017. 

A  Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 69/2019 também foi apresentada, em maio, para instituir a economia solidária no ordenamento econômico do país. 

Edição: Pedro Ribeiro Nogueira