Rio Grande do Sul

Direito à Cidade

Mulheres debatem a construção de uma economia popular solidária

Projeto Conversações Afirmativas debateu o direito à cidade sob a perspectiva de uma outra economia contra hegemônica

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
“Direito à cidade: economia e trabalho em rede” foi promovido pelo Departamento de Educação e Desenvolvimento Social da UFRGS
“Direito à cidade: economia e trabalho em rede” foi promovido pelo Departamento de Educação e Desenvolvimento Social da UFRGS - Foto: Fabiana Reinhoz

“Se nosso mundo urbano foi imaginado e feito, então ele pode ser reimaginado e refeito”. Sob a perspectiva do geógrafo britânico David Harvey, realizou-se, na sexta-feira (19), uma roda de conversa composta de mulheres para refletir sobre direito à cidade e formas alternativas de economia. Com o título “Direito à cidade: economia e trabalho em rede”, o projeto do Departamento de Educação e Desenvolvimento Social (DEDS) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) debateu aspectos como trabalho, economia, empreendedorismo, ocupação de espaços públicos por trabalhadores.

Conforme apresentado, o tema “Direito à Cidade” engloba questões atuais de reivindicações populares, como direito à moradia, à segurança, à mobilidade urbana, aos espaços coletivos de arte e cultura, à regularização fundiária, ao trabalho, ao acesso adequado a bens e serviços, entre tantas outras questões que, apesar de se constituírem como direitos, ainda não estão disponíveis a todos em nossa sociedade.

“Discutir o direito à cidade, para nós, passa por entender que a gente está sob constante disputa entre a cidade que a gente quer, a cidade que a gente realmente faz e aquela cidade que se tenta impor a nós”, aponta Zadi Zaro, do Coletivo de Trabalho Vivá Moara. De acordo com Zara, a cidade imposta é apresentada com uma relação entre centro e periferia. Nela, o aparente centro é o local onde as decisões são tomadas e onde poder está concentrado, um poder político, econômico, mas também o poder da reprodução da cultura hegemônica; e a periferia é onde, na sua opinião, a cidade de fato acontece e onde normalmente está vinculada a falta de acesso a essa centralidade de poder.

Ainda, segundo Zara, diante da situação atual, dentro da perspectiva do governo vigente, a discussão do direito à cidade fica comprometida. “É possível pensar isso em um momento de um projeto como o Future-se, ele nos permite a pensar em direito à cidade? A Emenda 95, que e congela os dos gastos por 20 anos, nos permite pensar? A privatização branda que está acontecendo disfarçada do SUS, o fechamento de parques, e agora, nesse momento, com a ameaça da Mina Guaíba, projeto de megamineração para o Estado, aqui entre Eldorado do Sul e Charqueadas que afeta mais de cinco mil hectares, com uma vala de 90 metros de profundidade, que vai cortar o lençol freático, que vai jogar os dejetos no Jacuí, nos permite pensar?”, indaga. Para ela, é difícil falar da economia solidaria, da resistência cotidiana, sem situar em que cidade se está falando.

Cultura

Ao falar de economia criativa e do trabalho realizado na Vila Flores, uma comunidade de práticas colaborativas formada em 2012, composta por artistas, empreendedores criativos e sociais e produtores culturais, Antônia Wallig, gestora cultural da Vila Flores, destaca a importância do trabalho em rede. “Temos hoje mais de 45 iniciativas, que tem espaço de trabalho dentro feito com pessoas de diversas áreas de conhecimentos. Procuramos entender, a cada dia, como nos organizar em rede e buscar novas formas de girar essa economia com essas pessoas que estão lá dentro”, aponta.

A Vila Flores está localizada em um complexo arquitetônico de valor histórico em Porto Alegre. Faz parte do 4º Distrito, região que hoje, de acordo com Antônia, é um território de disputa na cidade, com planos de urbanização e economia. “São planos que fazem parte de toda essa discussão do direito à cidade. Contudo de uma organização excludente, que poucas vezes leva em conta o que já existe no local, de que economia é essa que já acontece, quem são as pessoas que estão lá, suas necessidades, habilidades”, aponta.

Antônia observa que a economia criativa teve um momento especial nos anos de 2011 a 2014, quando o Ministério da Cultura implantou a Secretaria de Economia Criativa e lançou um plano nacional sobre o assunto. “Ali se começou a pensar mais profundamente essa economia do intangível, de como se valoriza esses bens intangíveis. A cultura e a arte ainda vivem fortemente essa necessidade de entender o seu valor, e de criar um consenso de que essa cadeia produtiva da arte e cultura gira fortemente essa economia do país”, ressalta a gestora. A importância do plano, avalia Antônia, foi mostrar que essa inteligência criativa tem valor, que gera um ativo econômico forte e não envolve só a pessoa que desenvolveu ou produziu algo, mas toda a cadeia produtiva que gira em torno. “Infelizmente, a secretaria não existe mais, e fica muito mais difícil pensar sobre isso nesse contexto. Por isso esses coletivos, muitas vezes chamados de não formais ou economia informal, são cada vez mais necessários”, conclui.

Empreendedorismo e autogestão na economia solidária e participativa

Mulheres debateram temas como trabalho, economia, empreendedorismo, ocupação de espaços públicos por trabalhadores 

“Somos mais de 50 % da população e sempre vivemos turbulência, sempre enfrentamos o racismo no mercado de trabalho. Em termos econômicos, somos uma das populações que mais consome no Brasil, e a que menos tem acesso a recursos. Nesse contexto, sempre foi turbulento para nós, de uma forma ou de outra”, frisa Dina Prates, mestranda em Sociologia na UFRGS, que abordou o empreendedorismo negro e o contexto no qual ele está inserido.

Ao fazer o resgate histórico, Dina ressalta que a veia empreendedora do povo negro sempre foi uma constante. Ela também pontua a diferença da economia feita pela comunidade em relação ao mercado formal. “Nosso negócio sustenta uma família inteira, uma comunidade. Trabalhamos na perspectiva coletiva, então é dessa perspectiva que a gente tá falando. Muitas vezes o direito à cidade nos foi negado, e fomos travando esse direito na unha. Quando acessamos a um pouco de recurso estamos pensando que esse recurso não vai ser construído em uma base individualista e sim construído em uma perspectiva comunitária. Por isso que falando em empreendedorismo preto e na importância das nossas redes”, destaca.

Nesse contexto, Dina ressalta a importância de se investir no empreendedorismo negro, de fazer a economia girar na comunidade e fomentar a juventude negra e a geração de emprego e renda. “Estamos há séculos fomentando a economia, e travando várias outras estratégias de resistência e sobrevivência em um mercado que tenta nos negar e nos tolher qualquer condição de acesso. O genocídio está ai matando muitas pessoas pretas, e como a gente lida com isso? É se colocando em rede, se colocando em comunidade e pensando os nossos problemas para além das nossas individualidades”, assegura.

Por sua vez, Cybelle da Rocha, da Casa de Economia Solidária, destacou suas experiências e o formato de autogestão. “Somos mulheres que, ao encampar esse espaço, começamos a trabalhar autogestão e não depender em nada do poder público. Apesar de toda a crise, com estabelecimentos fechando, as pessoas chegam em nós e perguntam, como fazemos para sobreviver? E é justamente dentro da economia solidaria, trabalho coletivo, da autogestão”, aponta.

Cybelle ressalva que apesar de se discutir um processo de economia solidaria participativa, ainda há presente um forte individualismo. “Nos preocupamos com o coletivo mas a ação é individual, isso me preocupa. Todas essas economias que estão surgindo são uma resposta para esse modelo que não serve mais, mas é preciso haver outra forma das pessoas se conectarem”, conclui.

Gilciane Neves, ou como prefere ser chamada, Gil, do Centro de Assessoria Multiprofissional (CAMP) - Escola de Cidadania, diz que é preciso que as mulheres se enxerguem como sujeitas que estão construindo uma história de resistência, e que essa resistência passa pelas economias apresentadas no evento. “Economias que são protagonizadas por mulheres, e passam pelo empoderamento das mulheres, não só pela sobrevivência. Temos um desafio imenso de repensar o processo do trabalho. A economia só existe porque consumimos e precisamos repensar de quem se consome, com quem nos relacionamos”, observa.

Gil acentua que a economia criativa, o empreendedorismo negro, a economia popular e solidaria são economias que aqui dialogam entre si e que, diante do retrocesso que estamos vivendo, onde vale a exploração, precisamos indagar o que estamos fazendo enquanto trabalhadores que quer viver uma vida digna. “A proposta, que não é minha, que não é nova, é de criarmos de fato a nossa rede de economia. Pensar uma estratégia de resistência, de uma outra economia popular e solidária, para que então possamos, a partir de todas as ferramentas que temos, construir um outro modo de caminhar”, finaliza.

Após o debate, houve a apresentação do estudante de direito e ativista, Ariele Rodrigues, que declamou um poema slam sobre a consciência negra, e o público participou com observações.

Edição: Marcelo Ferreira