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Interesses conflituosos

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"Quando o interesse público deixa de ser um fim e se transforma em um meio para maximizar ganhos privados, há algo muito estranho"
"Quando o interesse público deixa de ser um fim e se transforma em um meio para maximizar ganhos privados, há algo muito estranho" - Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
As revelações trazem a necessidade de reafirmar a natureza do serviço público

Então o juiz do caso combina estratégias com a acusação, indica testemunhas, acerta detalhes para delações premiadas, faz palestras remuneradas por indicação da acusação, interfere na indicação de procuradores, antecipa decisões para a acusação e nada disso é grave? E quando um procurador da República, com um salário tão invejável quanto o do juiz, além de alguns benefícios, como auxílio moradia, por exemplo, que também é pago ao juiz, usa seu conhecimento e expertise, acumulados no serviço público, para lucrar com palestras Brasil afora, participando, inclusive, de evento secreto, onde, talvez, tenha colaborado para orientar negócios bilionários de alguns banqueiros? Isso também é normal? Evidente que essas são condutas muito graves e não são nem um pouco normais. Portanto, não podem ser banalizadas ou naturalizadas, como alguns tentam fazer.

As publicações, do The Intercept, da Folha e da Veja, dos diálogos dos integrantes da Força-Tarefa da Lava Jato escancaram práticas nada republicanas de importantes autoridades do Estado, que, se utilizando desta condição, encontraram formas de contemplar seus interesses pessoais, políticos e financeiros, promovendo, inclusive, um mercado muito lucrativo de palestras e conferências. Tudo dentro da Lei, ou nas brechas das Lei.

O certo é que não é moralmente aceitável que o exercício de atribuições no serviço público funcione como um trampolim para empreendedorismos pessoais de cada um. Isso, no mínimo, fere o Princípio da Impessoalidade da Administração Pública (CF/1988, art. 37, caput), que, segundo Deyvson Humberto1, deve ser entendido como aquele que vem excluir a promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos sobre suas realizações administrativas.

Quanto mais em evidência estiverem seus trabalhos públicos, mais lucrarão em seus trabalhos privados, com palestras, aulas e conferências. Portanto, as divulgações, as pirotecnias das operações realizadas, as prisões cinematográficas, os vazamentos seletivos e as amplas coberturas midiáticas das ações da Lava Jato acabavam operando como um instrumento muito eficiente de marketing pessoal, potencializando produtos a serem vendidos ao mercado. Quanto mais operações, maiores serão ganhos privados aos agentes públicos, a ponto de estarem articulando a constituição de empresa, em nome de laranjas, para gerenciar tais atividades extras.

Talvez não seja assim tão fácil enquadrar estas condutas em algum tipo penal, mas utilizar o poder de Estado que o cargo proporciona para locupletar-se no mundo privado, está longe de ser uma conduta eticamente adequada. Aliás, é da natureza dos cargos de autoridade de Estado serem tentados pelas oportunidades que se apresentam, mas o que define o caráter republicano dos bons servidores públicos é justamente a sua capacidade de resistir a esses atrativos em nome da preservação do interesse público.

A expressão “porta giratória” define um fenômeno, que ocorre quando servidores públicos, que detêm poder de decisão, de criar normas reguladoras, de acusar, de julgar, de fiscalizar, de investigar ou de regular, estão, ora, atuando como servidores públicos, ora, prestando serviços ao setor privado. Há situações em que os servidores utilizam licenças não remuneradas para atuar temporariamente na defesa ou orientação de particulares contra suas próprias decisões enquanto servidores públicos. Estas condutas revelam flagrantes conflitos de interesses, que nem sempre são assim tão evidentes.

Em 2017, após o rumoroso episódio envolvendo o acordo da delação premiada negociado com o empresário Wesley Batista, da JBS, o então procurador da República Marcelo Miller, principal articulador deste acordo, exonerou-se de seu cargo para atuar justamente como assessor dos irmãos Batista e da empresa JBS.

Em 2019, o então juiz Sergio Moro abandonou seu cargo vitalício e estável na magistratura federal para assumir a precária função de Ministro da Justiça e Segurança Pública, com promessa de indicação a uma vaga no STF, como revelou o próprio presidente da República. Nada de mais, não fosse o fato de se tratar de um governo, cuja vitória nas eleições foi determinada, em grande medida, por decisões por ele tomadas ainda na sua condição juiz federal. Independente de terem sido corretas, ou não, suas decisões, a simples hipótese do convite já ensejaria total suspeição sobre os seus atos.

Como poderíamos qualificar os casos em que um procurador da república, um juiz federal ou um ministro do STF, diante de uma condição privilegiada de tomarem decisões importantes e de terem obtido informações e conhecimentos especializados em decorrência de suas funções, passam a atuar como palestrantes, bem remunerados, em temas relacionados com suas áreas de atuação? Locupletar-se de um conhecimento que decorre de sua função pública não parece muito diferente do que utilizar patrimônio público para proveito próprio. Por outro lado, aqueles que os contratam, certamente, o fazem para obtenção de vantagens.

Quando o procurador da República foi convidado para um evento sigiloso com banqueiros, como revelam os diálogos publicados, não era o conhecimento ou a erudição do palestrante o objeto de desejo daqueles contratantes, mas sim, a informação em primeira mão do que aconteceria e, com isso, poder realizar bons negócios. Nem se cogita aqui a possibilidade de que uma reunião deste tipo, sigilosa e com os maiores banqueiros do país, pudesse, de alguma forma, condicionar ou modificar as próprias decisões a serem tomadas pela autoridade travestida momentaneamente de palestrante.

A confusão entre o interesse público e o interesse privado é uma porta aberta para a corrupção e pode estar localizada, tanto no interesse privado do servidor público, como no interesse de terceiros.

As mensagens que estão sendo publicadas pelo jornalista Glenn Greenwald expõem de forma clara uma deformação no entendimento das funções de cada um na sociedade. Se fosse possível retirar daquelas mensagens qual a essência dos agentes envolvidos, talvez a expressão mais adequada fosse o oportunismo, aproveitar o momento para ganhar dinheiro, fama e poder. Quando o interesse público deixa de ser um fim e se transforma em um meio para maximizar ganhos privados, há algo muito estranho. Em algum lugar, isso talvez seja tratado como corrupção.

Estas revelações trazem, por outro lado, a necessidade de reafirmar a natureza do serviço público. A prevalência do interesse público impõe que as autoridades de Estado se mantenham imunes às tentações impostas pelo mercado. É isso que garante a credibilidade do Estado. Os cidadãos precisam confiar que as decisões das autoridades públicas não estão contaminadas por interesses privados dos próprios agentes ou de terceiros, e essa é a principal razão da existência de diversas prerrogativas especiais concedidas aos servidores públicos, como estabilidade, aposentadoria integral, paridade, inamovibilidade e autonomia funcional.

 

1 https://deyvsonhumberto.jusbrasil.com.br/artigos/324050024/o-principio-da-impessoalidade-sobre-a-administracao-publica

Edição: Marcelo Ferreira