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Autor de livro sobre reforma da Previdência alerta: "Só faz ajuste em cima de pobre"

Economista Eduardo Fagnani explica como o desmonte da seguridade social pode aprofundar as desigualdades do país

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Para o professor do Instituto de Economia da Unicamp, Bolsonaro encabeça um projeto de "destruição em massa"
Para o professor do Instituto de Economia da Unicamp, Bolsonaro encabeça um projeto de "destruição em massa" - Foto: Gilmar Felix/Câmara dos Deputados

A reforma da Previdência de Jair Bolsonaro (PSL), com previsão para ser votada no Senado este mês, vem sendo duramente criticada por pesquisadores, parlamentares de oposição e movimentos populares. Na interpretação do professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Eduardo Fagnani, a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 6/2019 representaria o fim da seguridade social -- um conjunto de políticas cuja finalidade é amparar e assistir, constitucionalmente, o cidadão e sua família em situações de envelhecimento, doença e desemprego.

Para Fagnani, o desmonte da seguridade social é o mesmo que “pegar a Constituição e jogar na lata do lixo”. Esse processo, segundo ele, poderia levar à destruição da vida de milhões de brasileiros e impactar negativamente em uma economia que já está em crise.

A análise do professor está detalhada no livro “Previdência: o debate desonesto – subsídios para a ação social e parlamentar: pontos inaceitáveis da reforma de Bolsonaro”, que será lançado no próximo dia 10 pela Editora Contracorrente. Na obra, Fagnani explica os mitos em torno da reforma da Previdência e defende a tese de que ela ameaça a sobrevivência da democracia.

Em entrevista ao Brasil de Fato, Fagnani explica por que a reforma da Previdência aprofunda a crise econômica, as desigualdades sociais e a violência. 

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Confira a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato: A reforma da Previdência passou por várias modificações na Câmara, em relação ao texto original. Qual é o peso dessas mudanças, especialmente para a classe trabalhadora? Quais são as principais conquistas e quais os aspectos mais perversos que se mantiveram? 

Eduardo Fagnani: A proposta original do governo é indecente, do ponto de vista da equidade. O objetivo da reforma da Previdência, na verdade, é destruir o Estado social de 1988. Ela é mais uma peça em um processo em curso de destruição que passa, entre outras medidas, pelo Teto dos Gastos [Emenda Constitucional (EC) 95] e pela reforma trabalhista. Agora, vem a reforma tributária, que também destrói o Estado social.

Em 1988, as [assembleias] constituintes se inspiraram na experiência da social-democracia europeia e criaram a seguridade social, que é um pacto social. O que eles querem fazer agora é transformar a seguridade social em seguro social, que é o regime de capitalização individual, onde você transfere a responsabilidade dos riscos da vida laboral para o indivíduo, e não mais para a sociedade. 

Outra grande mudança seria transformar a seguridade social em um assistencialismo, criando regras muito exigentes que desconsideram a realidade do mercado de trabalho. Com isso, poucas pessoas conseguiriam ter proteção previdenciária, porque exige contribuição, e passariam a ter a proteção assistencial, que não exige contribuição.

Então, já prevendo isso, tem o benefício assistencial, que chama-se Benefício de Prestação Continuada [BPC]. Ele, hoje, é equivalente ao piso do salário mínimo. Eles falaram: "Não, vai ser igual a R$ 400". Então, se a proposta original estivesse sido mantida, a gente teria daqui a 10, 20 ou 30 anos um monte de velhos ganhando R$ 400, sendo que você não tem nem a certeza de como esse valor seria reajustado, qual o indexador e com que periodicidade -- porque isso é definido por lei complementar. 

A partir do momento em que o governo fez a PEC [da reforma da Previdência], você tem dezenas de especialistas, da academia, do movimento sindical, etc., que se debruçaram e apresentaram argumentos técnicos mostrando a insanidade que seria essa reforma. E, em parte, um parecer do relator, depois da Comissão, acolheu várias das demandas dos partidos da oposição.

Por exemplo, no BPC, voltou-se atrás. Na Previdência rural, eles queriam quase que equiparar com a urbana, mas voltaram atrás. Eles não queriam mais reajustar os benefícios pela inflação, mas também voltaram atrás.

Tinha uma regra que a gente chama de gatilho demográfico ou gatilho da idade, que diz que sempre que a expectativa de sobrevida dos idosos com mais de 65 anos aumentar um ponto, a idade também sobe um ponto. Então, a gente poderia chegar em 2030 com 67 anos para homem -- semelhante ao que a Alemanha terá em 2032. Isso também caiu.

Na votação em primeiro turno, teve outro ponto importante: a mulher, em vez de contribuir durante 40 anos para ter a aposentadoria integral, baixou para 35. Em vez de ter 20 anos de contribuição para a parcial, voltou para 15. Eu acho que esse foi o ganho mais importante. No caso do homem, eles baixaram o tempo de contribuição para ter a aposentadoria parcial de 20 para 15 anos, mas para quem já está no sistema. Para quem entrar a partir da aprovação do texto, não. 

A reforma da Previdência foi aprovada em segundo turno na Câmara na madrugada de quarta-feira (7), por 370 votos a favor e 124 contra. Como você analisa o contexto daqui para frente?

O que é importante de se destacar é que o jogo não acabou. O debate qualificado que os especialistas da academia e do movimento sindical fizeram junto aos parlamentares e a ação dos parlamentares da minoria foram exemplares, conseguindo retirar alguns dos pontos mais indecentes da reforma. Mas o núcleo excludente ainda está intacto. Agora, vai para o Senado, onde são dois meses de tramitação. Então, a sociedade tem que lutar para que alterem os pontos que ainda são extremamente excludentes.

Dentre os pontos inaceitáveis da reforma, tem um mecanismo que vai destruir o orçamento da seguridade social. Eles vão incluir no Artigo 195 da Constituição, que fala sobre o orçamento da seguridade social, um negócio chamado "segregação contábil". O que eles querem fazer é dizer que a Previdência é financiada só pelo empregado e pelo empregador. Com isso, se constitucionaliza o déficit, onde não se considera a contribuição do governo. 

Quer dizer, eles não consideram o modelo tripartite de financiamento da proteção social, que foi inventado em meados do século 19 pelo [Otto von] Bismarck na Alemanha, e que o Brasil adota desde 1930. Todos os países minimamente civilizados adotam esse modelo desde a década de 20 do século passado. 

Se você fragiliza as fontes de financiamento, pode pegar a Constituição e jogar na lata do lixo, porque todos os direitos que estão na Constituição são letras mortas. Não se tem dinheiro para bancar os direitos, e é isso que eles querem. 

Então, esses são pontos essenciais que o movimento social deve tentar entender para mostrar que seria o fim da seguridade social, que é uma conquista de mais de 20 anos de luta da sociedade contra a ditadura militar e pela redemocratização do país. Muitas pessoas foram torturadas e morreram, e eles querem apagar isso por lei complementar, lei ordinária ou ato normativo do Ministério da Fazenda. Isso é muito grave.  

A reforma da Previdência pode aprofundar a crise econômica brasileira? 

Essa reforma não leva ao crescimento da economia. Ela retira renda do pobre, e o pobre consome enquanto o rico entesoura. O rico compra título do governo e o dinheiro não circula. Se você dá dinheiro para o pobre, ele vai em farmácia, venda ou açougue, e faz a economia circular. É o que os economistas chamam de maior propensão marginal ao consumo. 

Um dado importante levantado pela Anfip [Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Previdência Social] mostra que em 90% dos municípios brasileiros o orçamento é menor do que as transferências individuais feitas para cada aposentado. Então, se você reduz a renda do aposentado, vai fragilizar a economia regional de quase todos os municípios brasileiros. Pode ter êxodo rural, das regiões mais pobres para as mais ricas... É uma coisa extremamente grave. Sem falar no aumento da desigualdade, porque a seguridade social é o principal instrumento de redução de pobreza. 

Se você somar o número de beneficiários do INSS [Instituto Nacional do Seguro Social] urbano e rural, BPC e seguro-desemprego, são cerca de 40 milhões de benefícios diretos. Se cada beneficiário tiver mais duas pessoas na família, são 120 milhões de pessoas. Cerca de 70% desses benefícios equivalem ao piso do salário mínimo. Então, esse é o maior mecanismo de proteção social do país. No critério do economista francês [Thomas] Piketty, o Brasil é o país mais desigual do mundo, e querem destruir o principal mecanismo de redistribuição de renda. Esse é o quadro dramático que a gente tem pela frente.

Então, a sociedade civil tem que acordar para a reforma. Ela vai para o Senado, onde são 81 senadores, dois por estado. Uma sociedade democrática tem o direito de exigir uma audiência pública com o senador para debater essa questão, porque isso vai afetar duramente a nossa vida e a vida do Estado. Nós temos pouco tempo, mas eu acho que há espaço para se fazer esse tipo de mobilização e pressão. É só assim que isso vai mudar.

Existe um projeto de país por parte do governo Bolsonaro, ao defender uma reforma como essa? 

Vou exemplificar com o caso do México. É um país que fez todas as reformas ultraliberais, liberais ou neoliberais nos anos 90: fez a reforma trabalhista, privatizou a Previdência, abriu a economia e se aliou aos Estados Unidos e ao NAFTA [Tratado Norte-Americano de Livre Comércio]. Hoje, 90% dos empregos são precários e metade da população está abaixo da linha da pobreza. Esse é o projeto.

Então, o México é um “paraíso”. O empregador não paga direitos trabalhistas e não paga imposto. Aí, você tem outra questão que é grave. Quando o Estado não oferece o serviço que o cidadão pretende, o crime organizado oferece. Quer dizer, um pai desempregado há seis meses com o filho doente precisa internar o menino, mas não consegue. Ele vai pedir ajuda para quem for necessário, e vai ser ajudado, mas vai ter que pagar um pedágio. Então, o México hoje é dominado por não sei quantos grupos de narcotraficantes. Eu estou citando o caso do México, mas têm vários países na América Central, especialmente, que são chamados de narcoestados. 

Sinceramente, eu fico estarrecido quando vejo qual projeto a gente tem pela frente, porque é um capitalismo sem consumidor. Você faz uma reforma trabalhista que rebaixa os salários, e agora você tem uma reforma que destrói a seguridade social e rebaixa o valor das transferências previdenciárias e assistenciais. 

Hoje, no Brasil, 82% dos idosos têm como renda ao menos a Previdência e a assistência social. "Ah, um salário mínimo é pouco". É pouco para você e para mim, mas para essas pessoas faz uma diferença enorme. Esse benefício do idoso sustenta a família. O filho e o neto estão desempregados, então fica todo mundo na casa do idoso. Essa Previdência é que paga a conta de luz, de água e faz fiado na feira. 

Que sociedade nós vamos ter se, praticamente, você só têm subemprego, salários ruins e precários, e uma insegurança laboral profunda? E, por outro lado, os idosos também não têm essa renda? Se eu fosse assessor do grande capital, eu diria isso para eles: "vocês são burros". A menos que você queira seguir nossa longa tradição. 

Talvez seja esse o projeto: um neocolonialismo. Nós vamos voltar a ser uma colônia exportadora de produto não manufaturado. Você exporta para fora e sua economia depende da renda externa. "Mas a população não precisa ter renda e eu vou morar em Miami com minha família". Eu, os donos da riqueza. Eles não precisam morar aqui. Talvez seja esse o futuro que está sendo pensado. 

Eu, infelizmente, lamento e acho que estamos caminhando nessa perspectiva. Quer dizer, não é um projeto de país, mas de destruição em massa. É um projeto que aprofunda a desigualdade, que é a pior chaga brasileira e está em toda parte. Nós não conseguimos resolver nem as desigualdades do século 19...

Que medidas poderiam mudar esse cenário?

As alternativas são conhecidas. Primeiro, tem que fazer a economia crescer. Você faz ajuste fiscal de duas formas: cortar despesas sem parar ou aumentar a receita. Para aumentar a receita, a economia tem que crescer. Para isso acontecer, tem que ter ação deliberada, quer dizer, o Estado. Você faz a economia crescer com investimento, crédito e aumento de renda das pessoas para incentivar o mercado interno. Isso se chama políticas anticíclicas -- o [economista britânico John Maynard] Keynes ensinou isso.

Segunda questão: você tem que fazer uma reforma financeira, porque não é possível o que nós pagamos de juros. Os juros reais do Brasil são de cerca de 3% a 4%, sendo que no mundo todo se pratica juros negativos. Cerca de 90% do crescimento da dívida pública brasileira tem a ver com despesas financeiras, juros. Nós gastamos, por ano, cerca de R$ 500 bilhões em juros. Em 10 anos, são R$ 5 trilhões, o que representa cinco anos da reforma da Previdência. 

Outra alternativa para fazer ajuste fiscal é recompor a capacidade de financiamento do Estado, e você faz isso com a maior contribuição das classes de alta renda. Porque todo ajuste fiscal que se faz no Brasil é em cima dos pobres, e nós temos que fazer em cima dos ricos. Por isso a reforma tributária é fundamental. Quer dizer, o sistema tributário brasileiro é uma vergonha. 

Metade da nossa carga tributária é em cima do consumo. A média da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico] é 32%. O imposto sobre consumo quem paga é o pobre, porque, como eu disse, o pobre gasta. Se ele compra um arroz, tem 40% de imposto que é retido da renda dele. Mas o Brasil não taxa lucro e dividendos. Nós temos que taxar patrimônio e renda. 

No Brasil, o imposto de renda é cerca de 21% do total da arrecadação; na OCDE é 34%. A alíquota máxima do Imposto de Renda Pessoa Física no Brasil é de 27,5%; a média da OCDE é 40%. Tem vários países que praticam de 50% a 60%. Na Inglaterra e nos Estados Unidos, até 1980, a alíquota máxima do imposto de renda era 90%. No Brasil, na ditadura militar, a alíquota máxima era 45%. Hoje, quem ganha R$ 400 mil por mês, 1% da população, não pode pagar 27,5% de imposto de renda, tem que pagar mais. É o que ensina a experiência internacional de países capitalistas. 

O sujeito que ganha R$ 360 mil por mês, em parte por conta de lucros e dividendos, paga, em média, uma alíquota efetiva do imposto de renda de 6%, enquanto na Europa a média é 40% e em vários países de 50% a 60%. Aqui se paga 6%, em média, porque tem casos onde a alíquota efetiva é de 1,5%. Então, você tem que exigir a contribuição das camadas de mais alta renda. Não se pode fazer um ajuste só em cima de pobre. Isso é um capitalismo burro. 

A questão fundamental é que esse capitalismo burro ameaça a democracia, porque se tem uma pressão enorme por direitos. Em uma democracia, quando você pega a história das nações, você vê que o gasto social cresce junto com ela. É uma exigência da democracia. Quer dizer, a democracia brasileira já é algo que, como diz o filme [da cineasta Petra Costa, "Democracia em Vertigem"], é uma falsa democracia. O Brasil, em 500 anos de história, teve menos de 50 anos de democracia, em dois períodos. 

Então, estamos vivendo uma política alinhada com nossa perspectiva histórica: é um capitalismo antidemocrático. E, agora, temos uma democracia que está cambaleando. Essa exclusão em massa ameaça a própria sobrevivência da democracia no médio e longo prazo. 

Edição: Daniel Giovanaz