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Corte em bolsas pode paralisar pesquisas científicas em andamento

Governo Bolsonaro não libera verba suplementar para CNPQ e produção de conhecimento sofre mais um golpe

Brasil de Fato | Brasília (DF) |

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Vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, CNPq mantém, em média, 80 mil bolsas de pesquisa
Vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, CNPq mantém, em média, 80 mil bolsas de pesquisa - Herivelto Batista / ASCOM-MCTIC

A suspensão da contratação de novas bolsas de estudos, anunciada na quinta-feira (15) pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), afetará não apenas a produção científica futura, mas pode paralisar também pesquisas em andamento em todo o país.

O CNPQ precisa de R$ 330 milhões para cumprir seu cronograma de novas bolsas neste segundo semestre. O corte aconteceu na elaboração do Orçamento da União no ano passado, ainda no governo Michel Temer (MDB), e foi mantido pelo governo Jair Bolsonaro (PSL), apesar dos pedidos do Conselho para que o Executivo liberasse crédito suplementar.

A quantia havia foi solicitada em março deste ano e teve aprovação do Congresso em junho, mas o Ministério da Economia, a quem cabe esse tipo de procedimento, manteve-se até aqui irredutível.

Em entrevista ao Brasil de Fato, a presidenta da Associação Nacional de Pós-graduandos (ANPG), Flávia Cale, lamentou a situação.

“Quando um pós-graduando completa a tese, a dissertação, a bolsa dele passa a outro pós-graduando, porque existe a cota. E aí, o que está acontecendo agora é que eles não vão renovar as de hoje. Isso, num laboratório, por exemplo, que tem pesquisas em curso e precisa garantir uma sequência dos trabalhos, os estudos correm o risco de serem paralisados por falta de mão de obra pra operar”, explica.

Ela também falou sobre a importância do investimento público para a produção científica.

“É difícil a situação do CNPq, da ciência como um todo, mas da pós-graduação em especial, porque ela depende muito dos investimentos feitos nas bolsas de estudo. Os pós-graduandos, que são um contingente muito importante, porque são pouco mais de 300 mil, são responsáveis pela produção científica da pós, que responde por 90% da produção nacional”, disse. Os outros 10% do país resultam da produção feita por estatais, pela iniciativa privada etc.

“Hoje o que você tem é um processo de desvalorização das agências de fomento. O CNPq está aí com esse déficit, o governo não se movimenta pra resolver e ninguém faz nada, nada”, critica.

Hoje, o CNPQ possui apenas 12% de todo orçamento previsto para este ano. Apesar de a instituição ter afirmado à imprensa que a suspensão anunciada não afeta as 80 mil bolsas em andamento, os números criam, entre os atores envolvidos na pós-graduação, um cenário de apreensão.

Esse tipo de bolsa é concedida a instituições, que podem ser públicas ou privadas, e a pesquisadores de forma direta por meio de cotas.

O CNPq fornece bolsas que vão desde graduação, chamada de “iniciação científica”, até mestrado, doutorado, e ainda financiamento para pesquisas no exterior e eventos de divulgação da produção nacional, entre outros.

“Ter um corte no CNPq é cortar boa parte do financiamento de pesquisa no Brasil. E por que é tão importante ter financiamento público pra pesquisas? Porque senão a gente não tem pesquisa voltada pro interesse público”, argumenta a professora Glícia Pontes, da Universidade Federal do Ceará (UFC).

“Um dos objetivos do governo é fazer parceiras com a iniciativa privada, que é a proposta do ‘Future-se’, pra que ela passe a financiar pesquisas. No momento em que passamos a ter isso, a gente tem a iniciativa privada conseguindo, inclusive com pouco dinheiro, mais inovação pro interesse comercial dela)”, compara a pesquisadora.

Glícia Pontes destaca que o freio na liberação de novas bolsas traz ainda problemas de outra ordem.

“Nós, professores, já temos uma carga de trabalho que é, de forma muito hegemônica, voltada pra área do ensino. Nosso desgaste é muito voltado pra dar aulas, corrigir trabalhos etc. Mas o ensino não faz sentido se não for atrelado à pesquisa porque senão não há inovação. Ela é fundamental para alimentar a reflexão, o pensamento, a construção do conhecimento, que é o que faz com que o ensino seja sintonizado com as questões do nosso tempo”, afirma.

Outro exemplo de possíveis consequências do arrocho orçamentário nas bolsas diz respeito aos estudantes e à cadeia movida pelas pesquisas.

“O fato de estudantes estarem sem bolsa, no caso da graduação, por exemplo, faz com que eles não tenham incentivo pra permanecer na pesquisa. Ele acaba, muitas vezes, indo pro mercado de trabalho, pros estágios, muitas vezes nem sendo valorizado, e aí há um esvaziamento dos grupos de pesquisa. Então, a gente perde muito”, finaliza a professora.

O que diz o governo

O Brasil de Fato procurou o Ministério da Economia para tratar da liberação da verba solicitada pelo CNPq. A assessoria de imprensa da pasta informou que a “Secretaria de Orçamento Federal/ME não comenta contingenciamentos internos, já que distribui o limite orçamentário no nível do órgão setorial, a quem, por sua vez, cabe a distribuição interna”.

A reportagem também procurou o Ministério da Ciência e Tecnologia, mas não houve resposta até o fechamento desta matéria.

Edição: João Paulo Soares