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CRÔNICA

Heitor, o anti-herói da Copa de 1994

Heitor não comentou conosco o gol de Bebeto cujo embalo para o filho recém-nascido tentou alimentar o imaginário

Brasil de Fato I Curitiba |

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A primeira final de uma Copa, coisa que meus pais tinham vivido 24 anos antes. O último pênalti de Baggio da Itália voou por cima
A primeira final de uma Copa, coisa que meus pais tinham vivido 24 anos antes. O último pênalti de Baggio da Itália voou por cima - Carlos Bassan / Foto Públicas

Quando os 25 anos da conquista do tetracampeonato mundial de futebol foram comemorados, percebi que eu conhecia um personagem brasileiro único que sobreviveu ao episódio, mas nunca trouxe ao mundo a sua história.

Alguém que passou despercebido e que escapou a toda a imprensa, alguém capaz de fazer algo impensável, até mesmo passível de crítica ou ironia, durante aquela conquista que movimentou todo o país. Mas alguém que não sairia da minha memória e dos amigos do bairro.

A conquista de 1994 marcou o imaginário de quem era, como eu, adolescente na época, cheio de aspirações em meio aos tais anos noventa, vazios de projetos e de sonhos. O nome dele era Heitor, dos primeiros amigos que tive em Curitiba. Mas o passar do tempo e o nosso sonho de nos tornarmos jogadores de futebol fizeram com que a vida do Heitor não se encaixasse bem com a nossa. Heitor era um inadaptado em nosso bairro.

Heitor não praticava esportes, não ia às nossas festas americanas levando refrigerante, como bom menino. O que ele gostava era de se embrenhar no mato do vizinho da chácara ao lado, fazer expedições, aplicar experiências nos animais silvestres que encontrava. Mesmo sem certamente conhecer o personagem de Guimarães Rosa, aquele da terceira margem do rio, era por lá que vivia e se posicionava no mundo.

Heitor não comentou conosco o gol de Bebeto cujo embalo para o filho recém-nascido tentou alimentar o imaginário de um país que encobria seus próprios medos, passada a eleição de 89 e o Fora Collor logo depois. Uma das publicidades na TV explorava, me lembro bem, cada brasileiro parando na rua e fazendo o mesmo gesto daquele gol incrível de Bebeto.

Tampouco Heitor importou-se com o gol de um redimido Branco que chutou a bola raspando nas costas de Romário, naquela imagem que nos causa arrepio até hoje. Ele certamente não viu a genialidade do malandro Romário, ensinando para a gente que a confiança vale muito nessa vida, bem antes da onda de livros vazios de auto-ajuda comuns desde aquele tempo. Romário pediu para bater o pênalti em plena final da Copa do Mundo!

A primeira final de uma Copa, coisa que meus pais tinham vivido 24 anos antes. O último pênalti de Baggio da Itália voou por cima do travessão, quando nós saímos correndo, junto com os jogadores, para abraçar Taffarel, mas nós corremos na direção das ruas do bairro. E logo nos deparamos com Heitor que já estava sentado no terreno baldio, diante de uma fogueira que ele havia feito.

Terá ele sido realista de forma precoce? Visionário da falta de magia que o futebol recairia? Um jovem consciente numa época de individualismo e sonhos que levavam a lugar nenhum? Com a nossa presença no terreno, Heitor mantinha aquele ânimo de sempre. E ele simplesmente dividiu tarefas e pediu para trazermos mais lenha para a fogueira. Heitor, o único, o único brasileiro que ficou nas ruas durante a final do tetra. Sorriso no rosto, com seu jeito irônico, ele comemorava aquela chatice que finalmente acabava. E nem imaginava tudo o que nosso país viveria depois.

Edição: Redação Paraná