Pernambuco

POLÍTICA PÚBLICA

Em PE, política de saúde da população negra contribui para o combate ao racismo

Poucos municípios pernambucanos implementam a política atualmente; desmonte do SUS compromete continuidade do programa

Brasil de Fato | Recife (PE) |

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O racismo institucional é um dificultador na assistência à saúde da população negra
O racismo institucional é um dificultador na assistência à saúde da população negra - Agência Brasil

Instituída em 13 de maio de 2009, por meio da portaria nº 992 do Ministério da Saúde, a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra tem o objetivo de promover a saúde dessa população, priorizando a redução das desigualdades étnico-raciais, o combate ao racismo e a discriminação nas instituições e serviços do Sistema Único de Saúde (SUS). Dez anos após sua instituição, a política tem contribuído efetivar o direito à saúde das pessoas negras, mas ainda enfrenta dificuldade para implementação nos municípios.
Em março de 2012, a Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco (SES) criou a Coordenação de Atenção à Saúde da População Negra. Em Pernambuco, aproximadamente 66% da população é negra, segundo censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). De acordo com Miranete Arruda, coordenadora de atenção à saúde da população negra de Pernambuco, no próximo censo populacional, de 2020, esse número tende a estar mais elevado, devido às políticas do governo federal de promoção à igualdade racial a partir dos anos 2000. 
“A partir destas políticas se caminhou para a redução da desigualdade social que, na saúde, se reflete em indicadores com relação ao nascimento, adoecimento e morte dessa população”, defende. Ainda segundo Miranete, em Pernambuco, a implementação destas políticas se dá através de alguns eixos, tais como: a ampliação do conhecimentos e informações sobre saúde da população negra; formação e qualificação dos profissionais da saúde e gestores; a intersetorialidade, trabalhando em consonância com as demais políticas da criança, da mulher e do idoso; e a participação civil e controle social.
De acordo a coordenadora, o estado tem o papel condutor de ser o intermediário entre o Ministério da Saúde e os municípios. “Cabe ao estado apoiar os municípios no ponto de vista da qualificação técnica, material, capacitação, para que as ações sejam desenvolvidas junto à população”, afirma. Para isso, há o estímulo à criação das Coordenações Municipais de Saúde da População Negra.
Já os municípios, ela explica que são os “responsáveis por desenvolver ações de assistência que possam incluir a população no SUS”. As ações da política de saúde da população negra são, por exemplo, a realização do teste do pezinho, feito em crianças até o quinto dia de nascidas e que consegue diagnosticar doenças que são comprometedoras do crescimento e desenvolvimento, dentre elas, a anemia falciforme, doença que tem maior incidência em pessoas negras. Há, ainda, o atendimento a pessoas com doença falciforme em crise aguda nas urgências e emergências 
Atualmente, apenas cinco dos 185 municípios pernambucanos tem implementada a política integral de saúde da população negra. De acordo com Miranete, esse número já foi maior, chegando a cerca de 10 municípios. No entanto, ela explica que a implementação dessa política depende das secretarias municipais e, eventualmente, quando há mudança na gestão, ocorre o interrompimento das ações. 

Racismo e saúde
A lei 992, ao propor uma política integral da população negra, fez com que o Estado reconhecesse que o racismo é um fator determinante da saúde dessa população, porque ele interfere no acesso desse grupo aos serviços de saúde, na qualidade da assistência prestada e é responsável adoecimento psíquico e físico das pessoas negras.
Para Vera Baroni, que pertence à Sociedade das Mulheres Negras de Pernambuco Uiala Mukaj, a Política Estadual de Saúde Integral da População Negra é “essencial e estratégica” porque, historicamente, a política em saúde no Brasil não foi pensada para a população negra, que é a maior do país, correspondendo a 54% da população total. Exemplo disto é que, desde a 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, militantes antirracistas já lutavam pela inclusão da Saúde da População Negra na agenda pública da saúde.
Vera aponta que “o Estado brasileiro nunca se preocupou com as demandas específicas do povo negro”. “No entanto, saúde é qualidade de vida. Se você não tem saúde, educação, terra para sobreviver, se suas condições básicas não são atendidas de maneira geral, você não consegue ter qualidade de vida”, reitera. Por isso, ela defende que essa toma de responsabilidade do Estado através da lei pode ser considerada um avanço. Outro ponto que Vera considera muito importante é que a lei reconhece que os saberes ancestrais do povo negro devem ser reconhecidos na política de saúde.
Contudo, ela entende que são muitos os desafios, porque o racismo institucional está presente nas unidades de saúde. “O exemplo clássico é o das maternidades, em que mulheres negras demoravam mais a ser atendidas que as brancas e sofriam violência obstétrica, porque os médicos diziam que elas eram mais resistentes à dor”, declara. 
Em relação a esse racismo institucional, que é um dificultador na assistência à saúde da população negra, Miranete pontua que ações vêm sendo desenvolvidas no âmbito da gestão pública para enfrentamento desta questão. Ela cita, como exemplo, o decreto estadual nº 45763, de 2018, que introduziu um programa de combate ao racismo institucional, objetivando uma mudança no quadro de desigualdades por dentro das instituições, para que os profissionais de saúde e as normas internas das secretarias possam estabelecer ações de enfrentamento ao racismo nas diversas áreas de trabalho.
Outro decreto estadual mencionado por Miranete é o nº 43777, de novembro de 2016, que define que todas as instâncias estaduais incluam a identidade étnico-racial na caracterização das pessoas pessoas atendidas, seja na saúde, educação ou assistência social.  Esta inclusão se dá através da variável no quesito raça-cor nos sistemas de informação. Desta maneira, a cada perfil epidemiológico da população pernambucana com recorte racial, publicado anualmente, será possível observar se, no decorrer do tempo, as políticas estão tendo impacto para a redução de desigualdades. 

Participação civil
A política de saúde da população negra também reafirma os princípios da participação popular e do controle social do SUS. Segundo Angela Nascimento, professora e representante da UFPE no Comitê Estadual de Saúde da População Negra, o comitê tem a finalidade de desenvolver atividades e avaliar a implementação das políticas, tanto no âmbito estadual quanto nacional. “A atuação do comitê representa, ao meu ver, um avanço diante da inexistência dessa instância em vários estados”, declara.
No entanto, ela opina que a política de saúde da população negra ainda é pouco valorizada em Pernambuco. “Penso que a política não é reconhecida no seu grau de impacto na vida dessa população, que é a que mais morre precocemente e de morte evitável”. Morte evitável é aquela prevenível, total ou parcialmente, por ações efetivas dos serviços de saúde. Ainda de acordo com Angela, seria interessante que a Secretaria Estadual de Saúde adotasse um plano estratégico de saúde da população negra, com objetivos e metas definidas. 
Vera Baroni, que atua através da Sociedade das Mulheres Negras, explica que a saúde tem sido entendida como uma pauta prioritária e que a organização tem desenvolvido atividades junto a gestores e trabalhadores na saúde, contribuindo para que avance o debate a respeito da importância da população da saúde negra. Ela aponta que também há o grande desafio de elevar a cidadania da população negra, porque é importante que todos estejam com a “consciência muito aguçada” a respeito dos direitos que possuem e que estão correndo o risco de serem perdidos.

SUS sob ataque 
Para a professora Ângela Nascimento, o grande desafio do momento atual é fazer com que as políticas de saúde resistam ao desmonte efetuado pelo Estado brasileiro, representado atualmente pelo presidente Jair Bolsonaro, das políticas públicas, dentre elas o SUS. “O SUS é uma das políticas que mais assegura uma visibilidade quanto à responsabilidade do estado”, reforça.
Vera Baroni também considera o cenário político “preocupante”. Ela explica que, a partir do governo do ex-presidente Lula, houve uma intenção de reparar, através de políticas públicas as condições desfavoráveis em que as pessoas negras historicamente viveram no Brasil. No entanto, essa postura tem sido abandonada pelos dois últimos líderes do executivo nacional, sobretudo no atual governo, de Bolsonaro.
“Após a Emenda Constitucional 95, que congelou os recursos para a saúde por 20 anos, temos certeza que o último lugar que vão investir é na saúde da população negra.”, reclama Vera. 
Também a respeito do contexto atual, a coordenadora da política em Pernambuco considera que se vive “uma situação muito grave”. Ela relembra que, em março deste ano, o Ministério da Saúde extinguiu comitês e fóruns que agregavam representações de área técnica e movimentos sociais para contribuir com o Ministério da Saúde na implementação das políticas. “No caso da anemia falciforme, foi extinta a Câmara de Assessoramento Técnico, que era composta por especialistas hematologistas, gestores e representantes dos pacientes.” lamenta.
Ainda na avaliação de Miranete, atualmente se testemunha no país a desativação de um processo de trabalho que havia sido estabelecido há mais de 10 anos no governo federal e que vinha tornando o Brasil referência mundial em saúde pública. No entanto, a coordenadora frisa que, em Pernambuco, a Secretaria de Saúde determinou a manutenção da implementação dessas políticas, com toda a normatização e sistematização que estavam estabelecidas.
Ainda assim, ela entende que o processo de desmonte a partir do governo federal compromete a continuidade do trabalho realizado. “A partir do momento em que o governo federal se ‘desobriga’ de suas funções, fica mais difícil o papel mediador dos estados. Mesmo assim, nosso compromisso é tentar manter o desenvolvimento dessas políticas com a mesma qualidade”, conclui.

Edição: Monyse Ravenna