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Os muitos milhos do Vale Sagrado dos Incas

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Os terraços, que são cultivados dessa maneira até hoje, formam microclimas, mais úmidos e quentes do que em outras regiões do mesmo local
Os terraços, que são cultivados dessa maneira até hoje, formam microclimas, mais úmidos e quentes do que em outras regiões do mesmo local - Reprodução
Variedade se traduz em muitos sabores e num dos melhores grãos de milho do mundo

Nas encostas que rodeiam as montanhas de Cuzco, no Peru, uma maneira especial de plantar milho se espalhou por todo o Império Inca por volta do ano de 1400. Era o auge de um dos maiores impérios da América e as encostas das montanhas estavam cheias de plantações trabalhadas para receberem as diversas variedades de milhos consumidas pela população local. 

Numa região com condições adversas para o cultivo de alimentos por causa da altitude e das montanhas íngremes, os incas cavaram terraços em curvas, pensados e plantados de maneira a receberem mais sol ou vento ou umidade.  

Os terraços, que são cultivados dessa maneira até hoje, formam microclimas, mais úmidos e quentes do que em outras regiões do mesmo local. Para o armazenamento dos grãos, os agricultores usavam o mesmo conhecimento sobre o sol, os ventos e a umidade da região, que eram utilizados para construírem silos em lugares com mais vento e sol, o que possibilitava um armazenamento mais longo. Ao mesmo tempo, um intrincado sistema de irrigação foi pensado a partir das águas dos lagos gelados e do derretimento do gelo. O resultado foi a expansão agrícola das muitas variedades de milhos que espalharam pelo império, vindos essencialmente do México. 

O milho acabou se tornando um dos alimentos principais da cultura Inca, ao lado das batatas, das pimentas, dos tomates, dos amendoins, da coca e da quinoa. O sucesso da expansão inca se explica tanto pela maneira de plantar, nos platôs irrigados, como na formação de uma complexa rede de estradas e caminhos em que esses alimentos eram distribuídos para a população – carregados por lhamas. 

A chegada dos espanhóis, no século XVI, mudou de maneira profunda a sociedade inca. Mancio Serra de Leguisamo, o último sobrevivente dos primeiros colonizadores espanhóis, escreveu as seguintes palavras em seu diário, em 1589:

Encontramos esses reinos em tal bom estado, e os Incas os governavam de maneira tão sabia, que entre eles não havia um ladrão ou um viciado, não havia uma adúltera ou sequer uma mulher má admitida entre eles, não havia tampouco pessoas imorais. Os homens tinham ocupações honestas e úteis. As terras, florestas, minas, pastos, casas e todos os tipos de produtos eram controlados e distribuídos de tal forma que cada um sabia o que lhe pertencia, sem que outro tomasse ou ocupasse algo alheio, ou fizesse queixas a respeito… o motivo que me obriga a fazer estas declarações é a libertação da minha consciência, visto que me considero culpado. Pois destruímos, com nosso mal exemplo, as pessoas que tinham tal governo como o que era desfrutado por esses nativos. Eram tão livres do cometimento de crimes ou excessos, tanto os homens quanto as mulheres, que o índio que tinha 100 000 pesos em ouro e prata em sua casa a deixava aberta, meramente deixando uma pequena vara contra a porta, como sinal de que seu mestre estava fora. Com isso, de acordo com seus costumes, ninguém poderia entrar ou levar algo que estivesse ali.¹ 


Lhama (Lama glama). Imagem: Robert Cicchetti / Shutterstock.com

Os incas tinham uma sociedade com características muito singulares. Suas técnicas de conquista de adversários, que atingiu seu auge ao longo do século XV, incluíam incorporar os inimigos para que aceitassem pagar impostos. Era um império de muitos povos e múltiplas culturas. 

A agricultura organizava-se num extensa faixa de terras que acompanhava a Cordilheira dos Andes, do Equador ao Chile. Funcionários reais fiscalizavam as colheitas e o recolhimento dos tributos. Cusco, no idioma quíchua Qosqo ou Qusqu, que significa umbigo do mundo, era a capital do império, onde ficavam os imperadores, chamados de O Inca, com poderes divinos traduzidos em roupas especiais.

Mesmo com a chegada dos espanhóis - e do catolicismo - a vida cotidiana e a maneira de plantar permaneceu. A cultura local se transformou muito mas carrega até hoje traços do passado inca. 

Atualmente, é possível visitar as terraças plantadas do Vale Sagrado, que rodeiam Cuzco e Machu Picchu, cidade sagrada dedicada ao Deus Sol. Os diferentes tipos milho estão associados à cultura inca de muitas maneiras. 


Chicha Morada | Reprodução

Durante o Império Inca, em Ayriwa, mês equivalente a abril do nosso calendário, comemorava-se a Dança do Milho Novo. A bebida ritual feita de milho fermentado é chamada de chicha, que significa milho, e pode ser feita a partir de diferentes espécies que crescem na região. A chicha morada, por exemplo, é feita a partir do milho roxo.

A preservação da cultura alimentar da região é um traço característico das populações locais. Os diferentes tipos de milhos possuem grãos nas cores roxo, negro, mesclado, branco, amarelo. Essa variedade se traduz em muitos sabores e num dos melhores grãos de milho do mundo. 

Nem é preciso dizer que o milho transgênico não é plantado e que a população tem o maior cuidado com as sementes de suas criações. O orgulho pelas criações do diferentes tipos de milho do Vale Sagrado se traduz na importância e na variedade da culinária local.

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1 - Mancio Serra de Leguisamo se arrependeu dos feitos como conquistador e escreveu um diário como forma de expiar os pecados dos espanhóis. O diário foi traduzido e publicado dentro dos estudos de Sir Clements Markham, The Incas of Peru (Londres: John Murray, 1912, 2ª edição). Geógrafo e viajante do final do século XIX, Markham acabou por publicar um dos mais contundentes estudos sobre os Incas no início do século XX. 

Edição: Daniela Stefano