Perfil

Após 23 anos preso, Francisco aprendeu a ler aos 54 e agora escreve seu próprio livro

Filho de uma família simples e com mais oito irmãos, ele viveu na rua durante décadas e foi transformado pela leitura

Brasil de Fato | Brasília (DF) |

Ouça o áudio:

"Hoje, em vez de drogas, eu sou viciado na leitura. Tudo que pego eu leio", conta o vendedor Francisco Carlos da Silva Bezerra
"Hoje, em vez de drogas, eu sou viciado na leitura. Tudo que pego eu leio", conta o vendedor Francisco Carlos da Silva Bezerra - Cristiane Sampaio

A trajetória do vendedor Francisco Carlos da Silva Bezerra, de 57 anos, não é apenas mais uma entre as tantas que se veem em Brasília. É a história de alguém que consegue, ao mesmo tempo, ser simples e extraordinário, sensível e forte, numa rara conjugação de virtudes.

Filho de uma família simples e com mais oito irmãos, Francisco chegou à capital federal aos 7 anos de idade e, desde então, passou por tudo na vida: trabalhou como engraxate e contínuo, dormiu na rua durante décadas, foi preso, sofreu toda sorte de preconceito, violência e abuso do mundo do crime.

No final de 2016, quando saiu da cadeia, depois de 23 anos de reclusão, a regeneração era algo que lhe parecia um horizonte distante, mas, numa das esquinas da vida, ele descobriu a possibilidade de mudar o rumo dos ventos.

Convidado para participar de um projeto brasiliense chamado revista “Traços”, que oferece trabalho para pessoas em situação de rua, Francisco resolveu embarcar na ideia para viver o que considera “uma experiência diferente”. E lá se vão dois anos e meio de uma nova vida.

Ao vender exemplares da revista, cada um pelo preço de R$ 10, Francisco fica com 70% do valor arrecadado. Com as cerca de 400 unidades que saem a cada mês, ele obtém uma renda que varia entre R$ 2.100 e R$ 2.800, a depender do humor da clientela. O vendedor conta que o trabalho lhe trouxe outra perspectiva, ressignificando a vida, que andava sem esperança na época da cadeia.

“Se não fosse a Traços, acho que eu já estava morto, porque eu iria me degradar mais ainda. Mas, se tiver uma pessoa pra dar apoio, nós somos seres humanos iguais a qualquer outro. Nós só somos mal interpretados, mas a gente se regenera, sim. Se tiver chance, a gente se regenera porque nós não somos animais”, afirma o vendedor, que hoje atua também como voluntário na Pastoral Carcerária, onde ajuda a mover uma corrente solidária de apoio a outras pessoas.

O trabalho na revista veio junto com a retomada dos estudos – uma exigência do projeto, que cobra dos vendedores participação periódica nas aulas. Para o ex-detento, que não estudava desde a infância e praticamente não havia conseguido se alfabetizar, a nova ocupação descortinou um mundo de encantamento.

“Eu aprendi a ser uma pessoa diferenciada. Aprendi o amor às letras e elas foram me envolvendo. O saber, a leitura, a educação é fundamental. A melhor coisa que tem é trocar a arma por um livro. Eu usava arma, eu matava. Com livro, eu salvo, eu faço o contrário, dou vida e aprendo a ser gente. É isso que a educação me traz”, conta, com a voz embargada.

E eis que aquele que ainda não sabia ler nem escrever até os 54 anos de idade hoje tem a literatura no centro da vida. Mais que estudar e vender revistas, seu Francisco agora espera ampliar a relação com o mundo das letras publicando um livro. Decidiu que vai contar a própria história, na tentativa de falar sobre a importância de combater a cultura de maus-tratos.

“Espero que minha vida seja um motivo pra muitas pessoas, jovens e crianças que apanham calados saberem que isso é contravenção. É abuso. Meu pensamento é trazer ao ser humano a consciência de que, se ele maltrata uma criança, ele é um criminoso. Espero ajudar a evitar esse tipo de coisa, evitar que pais sejam agressores com seus filhos”.

Ainda no forno, a obra deverá ser publicada em breve, no final do ano. Até lá, Francisco segue se embriagando com o universo da literatura e apreciando as levezas da vida, pelas quais ele tanto esperou.

“Sem as letras, eu via o mundo preto e branco. Com as letras, agora vejo colorido, entendo a maioria do que leio, e é muito gostoso quando você entende. Hoje, em vez de drogas, eu sou viciado na leitura. Sou viciado de verdade, porque tudo que pego eu leio”, comemora.  

 

 

Edição: Michele Carvalho