Pernambuco

LUTA

Centro de Formação Paulo Freire: "Aqui é o coração de gente"

Sem Terra de todo o estado se juntam aos moradores de Normandia para defender Centro de Formação

Brasil de Fato | Caruaru (PE) |
Normandia foi regularizada em 1998, com o poder público indenizando o antigo proprietário e passando as terras para 41 famílias
Normandia foi regularizada em 1998, com o poder público indenizando o antigo proprietário e passando as terras para 41 famílias - Vinícius Sobreira

Há cerca de uma semana centenas de agricultores das diversas regiões de Pernambuco chegaram ao assentamento Normandia, em Caruaru, para se somarem ao "Acampamento da Resistência" em defesa do Centro de Formação Paulo Freire, ameaçado pelo pedido de despejo efetuado pela Advocacia Geral da União (AGU) e pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Ocupada em 1993, Normandia foi regularizada em 1998, com o poder público indenizando o antigo proprietário e passando os mais de 500 hectares de terras para 41 famílias de trabalhadores rurais. Essas famílias transferiram uma parcela de 14 hectares para a Associação Comunitária gerir em benefício coletivo. Mas o Incra não concordou com essa concessão, o que deu origem a um processo que correu por 10 anos na Justiça, que acabou por decidir contra Associação Comunitária do Centro de Formação Paulo Freire (ACCFPF) em 2018.
João Manoel Brás, de 60 anos, foi dos primeiros a chegar para o acampamento, minutos após o amanhecer. Saiu de sua casa no assentamento Virgulino, em Serra Talhada, no meio da madrugada. "Eu queria participar do acampamento. Esse centro [Paulo Freire] é bom para os assentados do estado inteiro. Aqui ensina tudo, aprendi um bocado de coisas", resume. Diante do ataque encabeçado pelo Incra, João Manoel reage. "Derrubar? Não pode. Nós não deixamos eles tomarem de jeito nenhum. Eles querem, mas nós não queremos", simplifica.
Antônio Martins, 71, chegou de Águas Belas, na zona da mata sul, onde vive com sua família no assentamento Cordeiro Velho. Ao chegar ao ponto de encontro onde pegaria o ônibus com outros trabalhadores, não viu ninguém. Ele era o primeiro, mas achou que havia sido o último. Não teve dúvidas, pegou uma condução para Garanhuns e outra para Caruaru. Chegou antes de todos. "O que não podia era não estar aqui", avaliou.
Ele conta que já foi ao Centro Paulo Freire "um bocado de vezes", para pedir apoio e também, como agora, para apoiar os companheiros. "Não podemos deixar isso aqui vir abaixo. Deus nos defenda. Essa escola é muito importante. Quem não tem conhecimento das coisas, quando vem para cá, sai sabendo muito mais", informa Martins. "Aqui eu aprendi a dialogar com os companheiros e as normas de boa convivência dos assentamentos, para vivermos melhor", recorda.
Para ele, o Centro Paulo Freire é vital para os assentados. "Aqui é o coração da gente, que abrange as informações, as decisões, a defesa e também o carinho", diz Antônio Martins. "Isso aqui é o pai e a mãe abraçando nossos companheiros", resume. Para ele, o MST é importante para todos os camponeses. "Ele tira o povo da rua da cidade, que muitas vezes vivem de braços cruzados, e nos leva para produzir no sítio, plantar uma palma, cuidar da terra, criar um bichinho, produzir. O movimento muda o nosso plano de sobrevivência", avalia Martins.
Por isso, o agricultor pede que os órgãos federais os deixe em paz. "É um espaço tão pequeno, mas de tanta importância para o nosso povo pernambucano. Tanta área boa para o Incra, por que eles vêm aqui para essa cabeça de morro?", pergunta, sempre desconfiado de Bolsonaro, alguém que o assentado considera "sem conhecimento da humanidade". "Ele que vá procurar outras áreas e nos deixe para lá, nos deixe aqui onde fazemos nossos encontros. Eles se afastem, vão lá para fora. Por Deus nosso Senhor Jesus Cristo, eles vão se afastar".


“Ocupar, resistir e produzir”
As terras em litígio englobam, além do Centro Paulo Freire, mas também uma creche, uma praça do programa Academia da Cidade e a agroindústria dos assentados, que gera empregos diretos e indiretos para os moradores e ainda beneficia alimentos como macaxeira, batata doce, inhame, pães, bolos e carnes produzidos pela agricultura familiar de todo o estado de Pernambuco. Após o beneficiamento, esses alimentos são comercializados junto a mais de 10 prefeituras, para se tornarem merendas escolares de crianças de Caruaru e região e também das escolas municipais do Recife.
Mauricéa Matias está à frente da agroindústria. Ela conta que o espaço escoa a produção de agricultores de Petrolina, Cabrobó, Serra Talhada e Santa Maria da Boa Vista, no Sertão; além de Gravatá, Amaraji, Água Preta, Bonito e, claro, a própria produção de Normandia e assentamentos vizinhos em Caruaru. "É como uma indústria, só que no campo. E que pertence aos trabalhadores", conta. Apesar de terem começado com a carne, hoje o carro-chefe são as raízes, em especial a macaxeira.
Após superar desafios de técnica e falta de recursos e tecnologia, os agricultores precisam transformar a produção em retorno financeiro. "Para o trabalhador do campo sempre foi muito difícil a etapa da comercialização, independente de ser do MST ou não. Nas feiras livres às vezes não conseguimos apurar nem o dinheiro que gastamos no frete", afirma.
Nos anos de governo Lula houve uma massificação de políticas públicas de incentivo à agricultura familiar, como o PAA e o programa de alimentação escolar (PNAE), o que melhorou a condição para os camponeses. "Em 2015 a prefeitura de Caruaru chegou a ter 65% de sua merenda escolar fornecida pela agricultura familiar", recorda. Hoje a agroindústria consegue beneficiar até duas toneladas de raízes por dia, tudo com fiscalização da vigilância sanitária. As escolas de Caruaru pedem de 2,5 a 3 toneladas de raízes por semana. As do Recife pedem seis toneladas semanalmente.
Atualmente trabalham na agroindústria mais de 50 pessoas. Mauricéa acredita que a produção ainda viabiliza centenas de empregos indiretos, desde a extração do alimento até a entrega. "Gera emprego, renda, damos retorno em impostos. E nós, agricultores, conseguimos produzir mais e também vamos comprar mais. Melhora a vida para todo mundo", avalia Mauricéa.
Tudo teria sido mais difícil sem o apoio do Centro Paulo Freire, que desde o cedeu espaço para as atividades de beneficiamento. Além disso, as atividades que o centro de ensino abriga, acaba por comprarem mais alimentos e em maior variedade, movimentando não só a agroindústria, mas a produção e aves e alimentos dos agricultores de Normandia.

Edição: Monyse Ravenna