Crônica

Colômbia: sua natureza e a tentativa de aniquilação de um povo

Assassinatos, trabalho escravo, degradação e saque da natureza compõem o cenário do departamento de Chocó

Brasil de Fato | Chocó (Colômbia) |
Uma das comunidades visitadas no departamento do Ocidente colombiano
Uma das comunidades visitadas no departamento do Ocidente colombiano - Foto: Caravana Humanitária Chocó

O rio corre caudaloso, despenteia a mata à sua margem, desce num colorado bonito, alvejado pelos raios solares, esbarra nas indígenas e negras que quaram suas roupas numa manhã de agosto, e banha uns pares de homens e mulheres que se ensaboam sincronizados. Bate cuidadosamente nas madeiras das casas erguidas em palafitas, faz um barulho suave e desencadeia em movimentos que entram e saem de sua corrente, fazendo a alegria das crianças, que espantam o calor de mais de 35 graus, saltando das casas para ele.

As dezenas de barcos e canoas às margens do curso de água, amarradas nas cordas enroscadas nos tocos firmes no solo, sacolejam com a brisa quente e o agito do rio, como se quisessem ir e voltar ao mesmo tempo.

Enquanto isso, embarcações descem e sobem o rio num vaivém habitual, carregando alimentos, pessoas e mercadorias, além de cargas das mais variadas especificidades legais e ilegais observadas por centenas de homens do exército colombiano.

Turvo, porém limpo, o rio é a rua, o banheiro, o lavador de roupas, a brincadeira cotidiana das crianças, a principal via de comunicação entre comunidades. O rio Atrato é a vida para uma massa de negros e indígenas, que vivem na cidade de Riosucio, no departamento de Chocó, no noroeste colombiano.

A cidade é o grande ponto de encontro da região, que liga por terra o acesso a várias cidades e zonas mais centrais, como Medelín -- segunda maior cidade da Colômbia e a capital do departamento de Antioquia --, distante cerca de 800 km dali.

É desse cenário que na manhã do último dia 5 de agosto, mais de dez barcos ganharam a dimensão do rio Atrato levando advogados, jornalistas, médicos, assistentes sociais, sociólogos, antropólogos, artistas colombianos e internacionais vindos dos Estados Unidos, França, Canadá, Suíça, Alemanha, Espanha, País Basco, Noruega, Brasil e Argentina, contabilizando cerca de 50 pessoas que participavam da Caravana Humanitária pela Vida em Chocó.

O objetivo da missão era adentrar uma das zonas mais conflitivas hoje na Colômbia, orquestrada por uma "parceria" entre o exército colombiano e paramilitares, que levam todo tipo de violência às comunidades que vivem as margens dos cerca de 600 km que circulam o rio Atrato.

Rio Acima 

A viagem de canoa dura cerca de 9 horas até chegar na comunidade indígena de Isleta, da etnia Embera, primeira parada da Caravana, já na divisa com o Panamá.

As canoas são guiadas por indígenas e negros, na figura do “ponteiro”, que tem a tarefa de guiar a embarcação, se posicionando na sua ponta e orientando o manejador do motor na traseira por meio de obstáculos e movimentação do rio, para evitar a virada e o choque com outras canoas que descem pelo mesmo caminho.

Por onde se passa, a vegetação vai ganhando contornos diferenciados, ora uma selva oponente, ora uma plantação de bananais que preenchem as beiras. O rio Atrato vai deixando de ser turvo para ganhar outras cores.

No caminho, os indígenas que compõem a caravana como seguranças e guias vão contanto histórias em suas línguas, riem, fazem as mais variadas expressões e gestos. Por conta de um sol escaldante, param, muitas vezes, as canoas às margens do rio e descem adentrando a selva densa para voltarem minutos depois com cocos e cana, que hidratam as crianças e os mais velhos.

Num clima úmido e quente onde se transpira o tempo todo, o rio Atrato permanece gelado, e conforme a canoa vai avançando, diversas comunidades aparecem em meio a clarões na selva, revelando uma mescla de negros e indígenas marcados pelo colorido de suas vestimentas.

Sendo uma zona de selva historicamente habitada por indígenas, ganhou o componente negro mais massivo estre seus povos com a construção do Canal do Panamá, entre o final do século 19 e início do século 20.

Como é uma região de alta incidência de malária, os negros, tidos como mais resistentes a essa enfermidade, foram trazidos primeiro pelos franceses e depois pelos Estados Unidos para construção do canal, se fixando nessa região. Portanto, os negros e indígenas são a composição majoritária dos 525 mil habitantes do departamento de Chocó.

Comunidade Isleta 

No final da tarde, com o sol mais espetaculoso que calorento, as canoas, depois de um dia de viagem, se abicam na comunidade de Isleta, cravada no meio da selva. Rio, mata, casebres de madeiras emaranhadas e um campo de futebol gigantesco dão o formato da comunidade que abriga mais de 900 indígenas.

A Caravana é recebida por uma dança de adolescentes composta por mulheres da comunidade, que formam um corredor onde passam os integrantes do grupo humanitário, sob os cantos entoados e pés que pisam firme ao chão, ritmados pelas maracas indígenas.

Nessa comunidade só existe a presença de médicos duas vezes por ano, o que demanda da equipe de medicina da Caravana o atendimento de mais de 70 pessoas no primeiro dia de trabalho.

Aliás, a presença do Estado colombiano nas comunidades que vivem às margens do rio Atrato e de seus afluentes é praticamente nula. Prova disso é que 70% da população não cursou o ensino primário, segundo o Censo Escolar, já que as comunidades tiveram suas escolas destruídas na guerra do exército contra focos de guerrilhas instalados na selva de Chocó.

Nenhum programa de desenvolvimento agrícola é desempenhado pelo Estado, por isso a região viveu sazonalmente da plantação de coca, maconha e milho, e, agora, do arroz e da banana, dieta que compõe o prato diário indígena.

A justiça em Isleta também é regida conforme a premissa da cultura indígena, onde existe um pequeno cárcere para cumprirem pena aqueles que infringiram as regras da comunidade, que também sofrem castigos, geralmente, amarrados pelos pés num tronco de árvore, podendo ficar horas numa mesma posição expostos publicamente.

Além disso, os moradores organizam sua própria Guarda Indígena, composta por homens jovens armados de um artefato de madeira talhado de figuras de animais e de humanos na ponta -- o bastão de mando. Esses devem proteger a comunidade e guiar as canoas. 

“O trabalho vale a vida”

Na tarde em Isleta, o ponto de encontro é o campo de futebol, onde centenas de jovens correm desordenadamente numa gritaria geral atrás da bola.

Infelizmente, parte desses jovens deixam de frequentar o futebol às tardes porque são assediados e, muitas vezes, recrutados à força pelos paramilitares, que estão acampados há alguns quilômetros da comunidade.

Na divisa com o Panamá, o rio Atrato e seus afluentes são hegemonizados pelo domínio paramilitar, com o apoio do exército colombiano. Pela sua localização privilegiada -- a região tem ligação com o Canal do Panamá, o Mar do Caribe e o Oceano Pacífico -- se constituiu ali uma rota ilegal de madeira, coca, ouro, armas e drogas.

E para manter esse fluxo, os paramilitares necessitam de mão de obra dos indígenas e dos negros. Enquanto o futebol rola, cinco jovens indígenas estão enchendo três canoas de árvores retiradas da selva naquele dia.

Sanir, o mais jovem, com 22 anos e o único com coragem de falar algo sobre o oficio, revela: “O trabalho vale a vida”. Ele explica que se esses jovens recusarem o trabalho análogo à escravidão e forçado pelos paramilitares “correm o risco de serem assassinados”.

Outro trabalho que indígenas e negros -- homens e mulheres -- também são empregados e que são dominados pelos paramilitares é a extração ilegal de ouro.

Nanama, uma mulher indígena que trabalha na exploração aurífera, conta que por causa da Caravana Humanitária, as dragas clandestinas foram tiradas do rio. “Nesse trabalho tem ganho, se paga em ouro, pouco, mas paga”.

A indígena conta que se paga cerca de US$ 14 por três gramas de ouro, que geralmente são repartidos entre duas ou três pessoas que trabalham conjuntamente.

Entretanto, só com combustível para se chegar às partes dos rios que são mineradas, ela conta que se gasta cerca de US$ 10, paras o uso nos motores das canoas. “Ganhamos muito pouco, porque o abastecimento das canoas é por nossa conta, mas é uma forma de renda”, diz.

O Ministério de Minas e Energia do país estima que 82% da exploração de ouro na Colômbia é realizada por grupos armados e paramilitares, além de muita utilização de mercúrio. Segundo dados do Ministério da Saúde, nos últimos anos, cerca de 40 mil quilos de mercúrio foram despejados nos rios colombianos para o processamento inicial do ouro retirado ilegalmente.

Chocó está infestado territorialmente de mineração ilegal. Conforme informações do último Censo Minero, do Ministério de Minas e Energia, realizado há oito anos, 99% das unidades de produção mineira de ouro no departamento não contam com títulos de autorização para lavra, nem licenças ambientais.

As comunidades indígenas e negras seriam presa fácil para executar os piores tipos de trabalho pelo nível de miséria que acomete a região. Dados da Defensoria Pública indicam que em Chocó 87% das pessoas vivem na extrema pobreza.

Planos de destruição

Depois de três dias em Isleta, a Caravana Humanitária começa a descer o rio em direção à comunidade de San Juan, banhada pelo rio, que leva o mesmo nome. É um conglomerado de comunidades negras, que ficam próximas umas das outras e são acessadas pelo rio entre recortes na selva. Nota-se que existem resquícios de casas destruídas por bombardeios, barracos emendados de concreto, madeira e lona.

Uma chuva torrencial, comum na região, apazigua o calor na chegada da Caravana à comunidade, que com música e sarapatel dão as boas-vindas.

Nas primeiras conversas, os moradores explicam que as casas foram bombardeadas pelo exército colombiano em 1997, na execução da Operação Rensi, que buscava aniquilar as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) na região.

A ideia era limpar a área para a entrada de transnacionais canadenses, estadunidenses, suíças e inglesas, que atuam em projetos de petróleo, mineração, madeira, construção de portos, hidrelétrica, estradas e indústria farmacêutica internacional, interessadas nas propriedades medicinais contidas na biodiversidade da floresta.

Todos os projetos vindos na esteira dos chamados planos econômicos que se inauguraram na região do Pacifico na década de 1970, sob orientação e supervisão norte-americana, tinham a mesma premissa espoliativa em relação aos bens naturais.

O mais conhecido é o Plano Colômbia, assinado em 1999 entre os governos colombiano e estadunidense, e, nos anos 2000, a chamada Agenda Pacífico - Século XXI.

Para José Cuerva, da organização colombiana Processo de Comunidades Negras (PCN), os planos evidentemente tornaram a região numa zona de guerra, e com o pretexto de combate às guerrilhas, paramilitares e o exército colombiano empregaram um grau de violência exorbitante contra as comunidades.

“80% da população indígena e negra saiu dos seus territórios em Chocó no final dos anos 1980 até hoje pela violência física e psicológica, como estupros, espancamento, assassinatos, mutilação, decapitação e ameaças de morte”, revela Cuerva.

Entre 2003 e 2008, em meio à debandada da população indígena e negra paras a cidade de Riosucio, a capital Quibdó e as periferias de Medelín e Bogotá, motivada pelo medo da violência e péssimas condições de vida, o Estado colombiano entregava 21 concessões mineiras às transnacionais, que abarcavam 23% do território de Chocó.

As mineradoras transnacionais presenteadas pelo governo colombiano para minerar no departamento foram a inglesa AlgloGold Aschanti, a canadense Continental Gold Limited e a Explorações Chocó-Colombia, uma Join Venture entre AlgloGold Ashanti e a mineradora suíça Glencore.

Paramilitares 

Depois de três dias acampados na comunidade de San Juan, a Caravana desce rio abaixo. Tanto em Isleta como em San Juan, o sentimento dos moradores é de uma certa desesperança e de apego ao território, ao mesmo tempo.

É como se quisessem não acreditar que a selva de Chocó se transformou em pura violência com a implantação dos paramilitares, e que infelizmente norteiam a vida dessas comunidades imbricadas na guerra.

O silêncio sobre esse assunto é presente e não só uma prece, mas a preservação da vida que se encontra em risco permanente.

“É claro que os paramilitares foram motivados a tomar essa região, como um dispositivo informal do exército colombiano e do interesse dos Estados Unidos para efetuar, sob ordem de ambos, as mais variadas formas de violência possíveis contra os direitos humanos desses moradores que não querem entregar seu território para ninguém”, lamenta o historiador colombiano Juan Díaz.

O historiador diz que, em Chocó, até a década de 1970 não existia essa violência, embora o Estado colombiano soubesse da presença das FARC somente como zona de descanso e não de operação.

“Porém, com a pressão para os grandes projetos e na esteira da tentativa de implantação dos planos de saque para a região, se inaugurou, nos anos 1990, a aliança paramilitares-força pública militar para controle da região e, também, a expulsão de negros e indígenas para a implantação dos projetos”, revela Díaz.

Os paramilitares surgiram na Colômbia como grupos armados da extrema direita contra as guerrilhas de esquerda das FARC e do Exército de Libertação Nacional (ELN), na década de 1960. Juan Díaz chama a atenção para a trama entre Estados Unidos e do governo colombiano para acirrar a violência dos paramilitares não só contra as guerrilhas, mas contra lideranças sociais nos territórios.

“Esses grupos foram treinados pelos exércitos israelense e norte-americano, que fizeram se multiplicar em diversos grupos em grande parte do território colombiano, para fazer o serviço sujo, pois eles não atacam apenas simpatizantes da guerrilha, mas também operários, sindicalistas e camponeses”, explica.

Segundo um documento realizado pela relatoria especial da Organização das Nações Unidas (ONU) apresentado à sua Comissão de Direitos Humanos, em 1990, havia a existência de mais de 140 grupos paramilitares operando em ligação estreita com o exército e a polícia.

Em maio do ano passado, a Procuradoria-Geral da Colômbia revelou ter exumado, entre os anos 2016 e 2018, os corpos de 9 mil vitimas assassinadas por paramilitares.

A promotoria afirmou que os corpos estavam em valas comuns e foram encontrados por meio de relatos de ex-membros do grupo de direita paramilitar Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC).

A maioria dos corpos são de pessoas oriundas da região noroeste da Colômbia, entre os departamentos de Chocó e Antioquia.

A Privatização da guerra

A guerra em Chocó também revela que da miséria alheia é possível espremer lucros, e que a violência aniquiladora empregada milhares, enche o bolso de um conglomerado de empresas privadas de segurança.

É o caso da estadunidense DynCorp, indicada por Washington ao governo colombiano, que passou a atuar no país em 1993. Todavia, ela não está sozinha. “Estima-se que a DynCorp atue junto com mais 20 empresas de segurança privada na Colômbia, contra a guerra de guerrilhas e contra os movimentos sociais”, alerta Juan Díaz.

A Colômbia teria recebido dos EUA, somente em meados dos anos 2000, cerca de US$ 1,3 bilhão para financiar o Plano Colômbia. “Desse montante, US$ 1,13 bilhão foram gastos em pagamentos de serviços a essas empresas militares estadunidenses e nas compras de equipamentos militares, como aviões e armas, sem nenhuma ingerência do governo colombiano. Tudo executado diretamente por Washington com as empresas militares privadas”, conta o historiador.

De volta a Riosucio, no fim de Caravana, com um sol brilhoso de um fim de tarde que desenhou a chegada dos barcos, se mantinham as lavadeiras, os meninos saltando das casas pro rio, numa vida cotidiana indiferente à guerra, ainda que sob ataque diário.

Para as comunidades negras e indígenas de Chocó, símbolo da resistência dos embates seculares na América Latina, perseverantes na busca por uma vida digna, sobra força e criatividade para reverter uma condição tão adversa de vida, onde a morte gera lucro pelo fuzil e a natureza como dádiva, em disputa, se torna uma tragédia.

Edição: Vivian Fernandes