Coluna

Em defesa da Constituição

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Ulysses Guimarães na sessão histórica de promulgação da Constituição de 1988
Ulysses Guimarães na sessão histórica de promulgação da Constituição de 1988 - Arquivo/Agência Brasil
A democracia exige saúde, escola, moradia, cultura, terra e trabalho

Por Jean Keiji Uema*

Estado de Direito é aquele no qual as relações sociais, políticas e econômicas são estabelecidas e executadas conforme uma legislação previamente estatuída por órgãos competentes. No nosso caso, pelo Poder Legislativo da União (Congresso Nacional), dos Estados (Assembleias Legislativas) e dos Municípios (Câmara de Vereadores). Cada uma das Casas legislando sobre questões e assuntos próprios, conforme determina nossa Lei Maior, a Constituição.

A Legislação brasileira, produzida por diversos órgãos em diversos níveis, pode ser qualificada por uma legitimidade específica: a legitimidade democrática. Significa dizer que a Lei produzida no Brasil é conforme a “vontade do Povo”. Sob o aspecto formal constitucional, as eleições para os órgãos legislativos consagram essa “ideia fundante” da legitimidade democrática: a representatividade popular das Casas Legislativas.

Contudo, para a caracterização plena de um regime democrático, é preciso agregar um elemento material: a concretização de direitos fundamentais individuais, sociais, econômicos e políticos.

Significa dizer que a legitimidade democrática realiza-se em um governo (no sentido amplo dos poderes instituídos) e em uma sociedade que viabilizam um patamar de satisfação de exigências constitucionais, sejam elas formais (eleições livres e periódicas, por exemplo) ou materiais (direitos fundamentais), aquém das quais não se pode falar em Estado Democrático de Direito.

Assim, não basta o exercício do direito de voto, a liberdade religiosa, o direito de reunião e manifestação do pensamento. A dimensão material exige também saúde, escola, moradia, cultura, terra e trabalho. Ao mesmo tempo, é fundamental a atuação estatal na preservação do meio ambiente. Esses exemplos e outros direitos, tudo ao mesmo tempo e agora, é a exigência constitucional que nos dá a dimensão democrática e uma perspectiva de futuro para o país. Como diz a música dos Titãs, “A gente não quer só comida/ A gente quer comida, diversão e arte/ A gente não quer só comida/ A gente quer saída para qualquer parte”.

É preciso ter claro, contudo, que essa legitimação democrática se realiza em um processo histórico de uma dada sociedade, não é um dado imediato ou acabado, que se instaura por decreto ou pela promulgação de uma Constituição. O que não se pode admitir, contudo, é uma prática farsesca do ponto de vista jurídico-constitucional, que viola de forma contumaz o processo democrático e represente retrocessos no que já foi conquistado.

Uma das faces mais visíveis e trágicas da negação do Estado Democrático de Direito, tal como caracterizado acima, é o exercício ilegítimo do poder estatal de violência. Com efeito, em um regime constitucional, o Estado exerce “apenas” a violência legitima, dada a necessidade do poder de polícia, de fiscalização, de tributação e do poder de julgar conflitos com poder de coerção, inclusive para condenar e prender.

Tal “poder de violência”, que pela simples necessidade de existir já representa um déficit civilizatório da nossa sociedade, deve ser exercido estritamente nos limites dos regramentos legais, que por sua vez devem atender aos pressupostos constitucionais que garantem o respeito incondicional aos direitos fundamentais. Essa é a fórmula imprescindível consagrada, entre outros, nos princípios constitucionais de que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (art. 5º, LIV); no de que “aos acusados, em geral, são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (art. 5º, LV); ou de que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (art. 5º, LVII).

Porém, de forma assustadora, o que se assiste hoje no Brasil é o discurso e a prática de um aprofundamento da nossa tradição histórica de violência estatal ilegítima na polícia, no Ministério Público e no Poder Judiciário. Como se fossemos incapazes, como nação, de buscar e realizar um verdadeiro Estado Democrático de Direito conforme previsto na Constituição de 1988.

Incentivados por governantes violentos que enviam projetos de lei inconstitucionais (Pacote Moro) para legitimar uma violência que não poderá ser legitimada constitucionalmente, ainda que aprovada no Poder Legislativo, e por governantes incitadores e ordenadores da violência estatal ilegítima (Rio de Janeiro), continuamos a reproduzir a tradição das relações sociais, econômicas e políticas no Brasil: uma história de profundas desigualdades, violências, injustiças, perseguições e arbítrios.

Um Poder Judiciário e Ministério Público que, por sua vez, expõem em seus julgamentos a relação mal dissimulada e perpetuada entre as estruturas jurídicas do Estado e o poder dominante, entre promotores, juízes, desembargadores e ministros de tribunais e os interesses políticos de grupos que compõem o “sistema hegemônico de poder”, cujas estratégias se utilizam do aparato judicial para perseguir, condenar e prender, a qualquer custo, aqueles que ameacem ou ousem subverter, alterar ou modificar a ordem inconstitucional estabelecida em proveito das classes dominantes.

Nesses tempos sombrios, revolucionário é defender a Constituição.

*Jean Keiji Uema. Mestre em Direito Constitucional pela PUC/SP, analista judiciário do Supremo Tribunal Federal, atualmente cedido para o Senado Federal, onde atua como coordenador da assessoria legislativa da Bancada do Partido dos Trabalhadores.

Edição: João Paulo Soares