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O retorno do cálice

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Numa operação higiênica, o poder de veto do neofascismo passou a ser a obediência a novas regras que disciplinam a ação da área cultural
Numa operação higiênica, o poder de veto do neofascismo passou a ser a obediência a novas regras que disciplinam a ação da área cultural - Foto: Reprodução
A censura voltou de forma estrutural, legalizada, incorporada à máquina pública

A censura está de volta ao Brasil. A onda que se acompanha a cada dia, com a imposição de vetos a espetáculos, interrupção de editais e retirada de patrocínios por razões moralistas e ideológicas, não reflete apenas a defesa de valores tradicionais, a reação de setores conservadores ligados às igrejas evangélicas ou a tentativa de satisfazer ao eleitorado cativo da extrema direita. A censura voltou de forma objetiva, estrutural, legalizada, incorporada à máquina pública.  Não é uma antessala da ditadura que espreita das sombras, é a expressão de sua presença na vida da sociedade

A Constituição de 1988, em seu artigo quinto, afirma: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.

Não se trata apenas da expressão de um dos princípios básicos da democracia, mas de uma reação determinada ao que se vivia no Brasil durante a ditadura militar. Na contramão do grito que ecoava pelo mundo, no país era permitido proibir. A censura é uma das ações mais perversas de anulação das liberdades democráticas. Não molda apenas o sistema de cultura e das artes, mas a forma como a sociedade se concebe, reduzindo a pluralidade à voz única dos donos da voz. É uma forma de violência simbólica que avaliza outras violências bastante reais. Própria dos regimes autoritários, ela age pela proibição, pelo direcionamento de recursos púbicos, pelo dirigismo e pela exclusão da diferença. Corta, desidrata, direciona e nivela.

Os tempos são outros e o retorno da censura ganha novos contornos, possivelmente ainda mais insidiosos. Não existe mais a figura rediviva do censor, que proibia filmes, peças e canções e que habitava as redações dos jornais com suja tesoura ignóbil, como durante a ditadura civil-militar. Numa operação higiênica e administrativa, o poder de veto do neofascismo passou a ser apenas a obediência a novas regras que disciplinam a ação da área cultural, a partir do direcionamento dos recursos públicos. A nova censura não veta, proíbe ou corta: cumpre as determinações do edital.

As agências, autarquias, fundações e empresas públicas do setor já definiram normas que farão de seus funcionários uma espécie híbrida de burocratas da censura e investigadores da vida pessoal dos artistas. Nada mais consonante com a atmosfera de delação e deduragem que tomou conta do país. O proponente cultural não deverá apenas ser de direita, e oferecer um conteúdo de direita, mas parecer de direita. E, mais ainda, ter histórico comprovado de conservadorismo para passar debaixo do sarrafo ideológico dos editais atravessados por filtros.

Em outras palavras, as novas regras que estão sendo apresentadas ao setor em várias instâncias vão fazer com que servidores das áreas ligadas à cultura – tanto de órgãos públicos como de empresas estatais ­–  sejam pagos para analisar obras e projetos a partir de vedações morais e políticas, além de atuarem como fiscalizadores da trajetória de artistas e produtores, inclusive em redes sociais. Serão mais que censores: passarão a fazer parte de uma espécie de polícia secreta com tarefa de esquadrinhar a vida dos agentes culturais.

A gravidade do retorno da censura é que ela se dá sob o amparo das determinações burocráticas, claramente inconstitucionais, que disciplinam a ação das entidades públicas no campo da cultura. Ao criar um cipoal de regras espalhadas pelas várias instituições de forma difusa, mas compondo um forte tecido de repressão à liberdade artística e de pensamento, o governo estabelece padrões de proibição para cada setor, por meio de editais que excluem conteúdos políticos, sexuais, de gênero e religiosos, entre outros considerados ameaçadores.

A proibição explícita, que também tem mostrado suas garras, se tornará até mesmo desnecessária se as regras de financiamento público impedirem, já na raiz, a aprovação de projetos não alinhados com o governo. A autocensura, tão grave como a censura em si, pode se tornar uma presença constante na vida cultural brasileira. O que é revisionismo histórico na educação, se tornará silêncio na cultura. O que é moralismo conservador em costumes, se transformará em barreira ao caráter contestador da arte. Ficaremos mais burros e menos livres.

Já foram anunciadas ações de censura na Funarte, na Ancine e nas principais empresas públicas com histórico de participação na cultura, como a Petrobras, a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil. Em todas essas instâncias, as normas para participação em editais afirmam a exclusão de determinados conteúdos históricos e identitários, impõem a afirmação de posicionamento político conservador, impedem a crítica ao governo e indicam a investigação do passado dos artistas e produtores envolvidos.

Em outro contexto, mas com o mesmo potencial de desagregação histórica da independência e papel do setor cultural, a área de defesa do patrimônio vem sofrendo ataques seguidos, com o afastamento de técnicos comprometidos para entrega do setor a acólitos do poder. Não é apenas uma alternância própria da política, mas uma retirada do potencial de proteção que o patrimônio vem construindo em relação à especulação imobiliária e atividades econômicas potencialmente tóxicas, sobretudo a mineração. O Iphan deixará de ser um órgão de defesa do patrimônio histórico e artístico para ser uma agência de autorização predatória.

Há muitas formas de se defender da ameaça – ou da presença explícita da censura –, o que vem sendo exercido por grupos ligados às artes e ao pensamento. A mais recente delas foi a edição do Guia Prático para a Defesa da Liberdade de Expressão, preparado pelo Fórum pelos Direitos Culturais, entidade que reúne mais de 150 organizações do setor. O Ministério Público, ainda timidamente, também se manifestou no caso da suspensão do edital para obras audiovisuais para as TVs públicas que contêm temas ligados a gênero e sexualidade e em relação ao afastamento de técnicos do Iphan. Mas não há uma ação unificada.

A imprensa hegemônica só despertou para o problema muito recentemente, sobretudo ao se ver também ameaçada no bojo do cerceamento da liberdade de expressão. Ou, no caso das empresas que lidam com o entretenimento, com o risco que a censura pode trazer para seu negócio. Não podem, no entanto, se esconder do fato de que a volta da censura não foi uma surpresa, mas um projeto anunciado aos quatro ventos durante o período eleitoral, tratado com desdém pela mídia sedenta em dar apoio ao projeto de destruição do Estado social. Entregou os anéis e agora vê seus dedos serem decepados.

O que mais espanta, no entanto, é a presença, numa categoria que deveria ser balizada pela criatividade e defesa da liberdade, de pessoas capazes de aceitar a participação em instituições públicas de cultura sob a chancela do governo Bolsonaro. Como o caso de atores que participam de cargos de direção da Funarte, a mesma fundação cujo presidente atacou grosseiramente Fernanda Montenegro e promete entregar casas de espetáculos aos evangélicos. Ou de gestores culturais que levam adiante projetos de dirigismo institucional alinhados ao ideário liberticida e autoritário, como se apenas cumprissem leis. E de produtores culturais que se apegam a cargos sem perceber que jogam contra sua razão de ser.

Há momento da conciliação possível. Há a hora da tentativa de preservação do espaço conquistado. E também o tempo da oposição sistemática, que amplia o debate e propõe novas sínteses possíveis num terreno marcado pela diversidade. Mas é chegado o momento da ruptura. Do confronto. Do último ato de resistência. De baixar as cortinas da tolerância e partir para a briga. Com censura, não há conversa.

Edição: Joana Tavares