Bahia

OPINIÃO

ARTIGO | Literatura fornece à nossa cultura impulso civilizatório e humanista

Expressa a complexidade e diversidade da experiência humana em temas muitas vezes interditados pelo medo e preconceito

Brasil de Fato | Salvador (BA) |
Bienal do Livro do Rio de Janeiro se viu às voltas com um prefeito censor, disposto a recolher livros sob o pretexto de “proteger crianças".
Bienal do Livro do Rio de Janeiro se viu às voltas com um prefeito censor, disposto a recolher livros sob o pretexto de “proteger crianças". - Fernando Frazão/Agência Brasil

Ler é importante e ninguém duvida. Quem lê (de maneira competente e crítica) se movimenta no mundo com autonomia, acessa informação de fontes variadas e consegue reunir elementos para tomar decisões, como votar, assinar um contrato, traçar uma rota segura para uma viagem. É o lado público da leitura, por onde a cidadania se exercita. Mas há outra experiência de leitura, estética e quase sempre solitária: é a da literatura, arte da palavra. Quando nos livros, se apresenta em versos poéticos ou prosas narrativas aguardando a companhia de quem vá desfrutá-las. Muitos desses poemas e histórias atravessaram milênios até chegar a nós; outros estão sendo criados hoje, por indivíduos ocupados em reescrever o mundo de um modo especial e necessário. As artes em geral, a literária em especial, são criações da imaginação, do engenho e da sensibilidade humanas. Nelas estão elaboradas as grandes questões da nossa existência como indivíduos (o amor, a dor, as fases da vida e a morte, a ternura, a ferocidade e todas as contradições que aí cabem) e como sociedade (as histórias de nossos heróis, reais ou imaginários, nossas conquistas e derrotas, nossas guerras, violações e violências, as melhorias coletivas que realizamos ou a que aspiramos).  Num verso você pode encontrar a síntese de uma vida (“em que espelho foi parar minha face?”, interroga Cecília Meireles) ou de uma nação inteira (“Ó mar Salgado, quanto de teu sal são lágrimas de Portugal?”, questiona Fernando Pessoa, no século XX, sobre o destino heroico/trágico de sua Pátria nas explorações marítimas do século XV). A literatura também fornece à nossa cultura impulso civilizatório e humanista, expressando a complexidade e diversidade da experiência humana em temas muitas vezes interditados pelo medo e preconceito, depois como violência e repressão, por parte de indivíduos ou instituições. Foi assim que a Bienal do Livro do Rio de Janeiro se viu às voltas com um prefeito censor, disposto a recolher livros sob o pretexto de “proteger crianças” do seu conteúdo. Na cidade em que a população é alvejada a partir de helicópteros da polícia, até julho deste ano, 3.566 pessoas morreram de forma violenta e até o dia 21 de setembro, 16 crianças tinham sido baleadas, 5 delas indo a óbito. Sim, as crianças do Rio precisam de proteção. Mas o que as ameaça não estava na Bienal, nem está nas livrarias e bibliotecas da cidade. 

Dados do ISP RJ 

*Professora da Faculdade de educação UFBA, presidente do Sindicato dos Professores das Instituições Federais de Ensino Superior da Bahia.

Edição: Elen Carvalho