Coluna

Justiça, Democracia e Kafka: um diálogo pertinente

Imagem de perfil do Colunistaesd

Ouça o áudio:

Pensando com o olhar de Kafka, Justiça e Democracia se abraçam e se confundem na perspectiva de punir os não-iguais
Pensando com o olhar de Kafka, Justiça e Democracia se abraçam e se confundem na perspectiva de punir os não-iguais - Foto: TJSP
Essa Justiça municiada de um falso discurso moral e neutro é branca

Por Marilia Lomanto*

"E a justiça, julgando-se eterna e equilibrada, não sabe, mas envelhece, esvazia-se, torna-se objeto de chacotas." -- Roberto Aguiar

O trágico panorama do sistema de Justiça brasileiro traduz Franz Kafka, narrando o autoritarismo do poder de julgar e condenar e da suspeita motivação nunca revelada, a justificar a punição do trabalhador (bancário) que protagoniza a saga do escritor checo. As categorias que desfilam no espetáculo de insanidade repressiva do poder, saltam do texto para o contexto, revelando as não-razões do castigo, à luz da espreita de quem garimpa O Processo com a avidez/paciência do arqueólogo em busca de resíduos de uma história por trás de ossadas preciosamente sepultadas pelo tempo.

Esse deserto de motivações sugadas pelo leitor de Kafka impulsionam a Justiça que vem sendo praticada no verde e amarelo de nosso país, pelos que carregam em suas escolhas a submissão a exigências legais impostas à defesa das garantias de princípios que expressam as conquistas civilizatórias escancaradas no Estado Democrático de Direito.

Justiça, afagada por pensadores preocupados sobre o que seria o “justo dentro de uma sociedade”, como Platão, era entendida por Aristóteles como “virtude” enquanto George Hegel vinculava a origem da justiça à “ideia que norteia a formação do próprio direito”. Democracia, na leitura de Pietro Costa, é entendida como “autogoverno do povo”, e ainda, “um regime onde cada cidadão pode, cada um por vez, comandar e ser comandado” ou ainda “o triunfo da igualdade dos cidadãos e de sua liberdade de palavra e ação política”.

Na filosofia de Rancière, segundo Ester Heuser, em Atenas, o termo demos era atribuído aos que nada possuíam, desse modo, Democracia era o governo das pessoas “mal-nascidas, sem título de riqueza alguma”. A Justiça não sobrevive sem a Democracia, amarradas por um pacto existencial impossível de ser desatado. Luiz Osorio Panza observa que Justiça e Democracia, perspectivas inerentes à sociedade, não devem se apartar, “eis que se misturam tanto no campo do político quanto do direito”.

Na hipótese do Brasil, pautar o debate sobre Justiça e Democracia requer disputar narrativas que incluam driblar as múltiplas ressignificações que os sujeitos, nos seus diversos lugares de fala emprestam a essas categorias, a partir de seus interesses pessoais, ideológicos, no rumo que querem dar a cada uma dessas reinvenções dos termos. Desse modo, a discussão temática impõe um ato de cuidadosa precisão cirúrgica.

A primeira incursão se daria pela captura de alguns significados de Justiça e Democracia a partir da conveniência político-ideológica de quem se aproprie das duas categorias. Em segundo momento, o recorte seria o de se olhar criticamente para os sujeitos que orbitam em torno da Justiça, ultrapassando os limites da esfera meramente conceitual para alcançar a concretude de sua aplicação enquanto ideia de igualdade, liberdade e partilha, e de Democracia para além do toque filosófico do mundo grego para reescrever sua compreensão de modo a expressar não apenas um recuado modo de governar pelo povo, mas para incrementar  processos de interlocução com o mundo real, na sua plena diversidade, pluralidade de sexos, de etnias, de línguas, de símbolos, de cores e veias escancaradas para as transformações abertas para o coletivo de (re)composição da humanidade na sua mais expressiva significação.

Seria possível um fluir relacional entre Justiça e Democracia? Nesse sentido, vale um ensaio fotográfico dos sujeitos que no Pacto Constituinte receberam a tarefa de resguardo dos direitos e garantias que expressam um Estado Democrático. O chamado Sistema de Justiça, constituído por magistratura, ministério público, polícias, se entrelaça com o legislativo, com a ordem capitalista, com os meios de comunicação e sacia o apetite voraz por punição, desfibrando qualquer truque democrático para colocar em seu lugar a razão ideológica de seu mais emblemático senhor: o Mercado.

Essa Justiça municiada de um falso discurso moral e neutro é branca, abastecida de preconceitos e ideologias burguesas que esgrima para mutilar a Democracia que lhe cumpre garantir. Pensando com o olhar de Kafka, Justiça e Democracia se abraçam e se confundem na perspectiva de punir os não-iguais (o mal) e os sujeitos com quem o sistema dialoga (o bem). Dessa textura dualista da sociedade contemporânea de não punir os “bons”, a terceira pergunta também se inspira em Kafka: Justiça e Democracia para quem?

E aqui se arrebentam as classes sociais que não contam na categoria “cidadãos e cidadãs”, porque já entalam no gargalo/bolha de um universo social identificado pelas desigualdades de todos os tipos. Desse modo, a seletividade dos destinatários do remédio/castigo/punição permeia pela população negra, indígena, sem-terra, quilombola, imigrante, lgbte+ e qualquer outra classificação no conjunto social estratificado, despido de direitos, sob o olhar complacente e cúmplice dessa figura tão líquida quanto transitória e incerta que se chama Justiça e desse conceito  volúvel, indócil e enganador que é a Democracia.

A Justiça, nessa punção kafkiana, representa a ordem asséptica de punição de sujeitos desiguais, mesmo que nada revele serem culpados de algum crime. A Democracia, o espaço dos arbítrios, é o desenho do engodo, da truculência, do ultraje à utopia que ela própria imagina ser, o extermínio da essência histórica de suas intenções filosóficas: o povo, na sua mais transversal concepção, despojado do respeito à sua dignidade  de pessoa humana.

Nesse contexto onde as desigualdades saltam “democraticamente” por cima dos marcos ordenatórios da Justiça, o que assusta é o aviltamento ao humano, determinado, sem qualquer critério que não seja o da odiosa discriminação por classe social, “um lugar onde devem permanecer os `desiguais`, vetando, por puro egoísmo racial, oportunidades em espaços por onde transitam direitos a acessos básicos, vitais à condição humana.”

Essa desigualdade perpetuada pela ação da Justiça é plenamente acolhida pela “Democracia”, ou com a filosofia de Marilena Chauí, pelo “novo totalitarismo” reorganizando o neoliberalismo, que faz do Estado uma empresa que trata os conflitos não como uma questão pública, mas como “questão jurídica, no melhor dos casos, e como questão policial”, no pior deles, onde os gestores são conduzidos  por “supostos intelectuais orientando ideologicamente, suas decisões e discursos, estimulando relação de ódio aos diferentes”.

Justiça e Democracia não são figuras estanques, mas elementos de um repertório de tensões que se movimentam  no modo de produção capitalista e suas práticas excludentes, sua insistência no esvaziamento da história, sua indisposição estrutural com os que pensam criticamente e desvelam as invisibilidades da intolerância racial, de gênero, religiosa, política, sua indigesta truculência com os desassistidos, sua intencionalidade fascista contra as forças populares, suas narrativas antidemocráticas ocultas por trás dos discursos de combate à corrupção, de imputação insultante de sujeitos e movimentos  sociais como Inimigos contra os quais o Estado arremete sua violência simbólica e institucional.

O debate público sobre Justiça e Democracia urge ser pautado, na perspectiva de recuperar a utopia, que busque “a liberdade, a fraternidade, a igualdade, a justiça e a felicidade individual e coletiva graças à reconciliação entre homem e natureza, individuo e sociedade, sociedade e poder, cultura e humanidade”, como coloca Marilena Chauí.

*Marilia Lomanto Veloso é advogada da Bahia, doutora em Direito, membro da ABJD, Presidente do Juspopuli Escritório de Direitos Humanos.

Edição: Vivian Fernandes