Eleições 2019

Relato | Trabalho de base garante hegemonia de Evo Morales nos rincões da Bolívia

Atual presidente conta com os votos de regiões periféricas e isoladas para conquistar o quarto mandato

Brasil de Fato | Montero (Bolívia) |
Entrada da ocupação Guadalupe tem as cores do Movimento ao Socialismo (MAS)
Entrada da ocupação Guadalupe tem as cores do Movimento ao Socialismo (MAS) - Daniel Giovanaz

A Bolívia tem cerca de 7 milhões de eleitores, dos quais quase metade são jovens com até 35 anos. O acesso cada vez mais facilitado à internet, mesmo na zona rural, torna a eleição de domingo (20) diferente de qualquer outra na história da democracia boliviana.

Depois de assistir à ascensão de Donald Trump e Jair Bolsonaro, ninguém duvida que o uso massivo do WhatsApp é capaz de realizar qualquer façanha eleitoral. No entanto, por algum motivo, a direita não decolou nos rincões mais isolados da Bolívia. A pesquisa mais recente do instituto IPSOS mostra que o atual presidente Evo Morales tem a preferência de 52% do eleitorado que vive fora dos perímetros urbanos, 37 pontos percentuais a mais que o segundo colocado, o ex-presidente Carlos Mesa.

Basta se deslocar alguns quilômetros por estradas de chão para descobrir o antídoto encontrado pelo Movimento ao Socialismo (MAS), partido de Morales: o trabalho de base.

Uma experiência

O assentamento Guadalupe II fica nos arredores do município de Montero, 50 km ao norte de Santa Cruz de La Sierra, região oriental do país.

Para entrar, é preciso cruzar uma ponte pintada de azul, preto e branco -- as cores do MAS. Dois guardas uniformizados pedem que os visitantes se identifiquem. Da guarita para dentro, só com autorização dos moradores.

A sensação inicial de hostilidade logo é substituída pelo aconchego dos olhares de quem mudou de vida por meio da luta coletiva.

 


Máximo Flores, dirigente político do bairro. (Foto: Daniel Giovanaz)

 

Com 58 hectares, o assentamento  foi inaugurado há dez anos por cem famílias de trabalhadores da região. O terreno havia sido transferido às escuras pelo Estado em 1987 a militares reformados. O procedimento era ilegal, porque a cessão de terras requeria, segundo a Constituição da época, aprovação no Legislativo.

Hoje, vivem no local cerca de 880 famílias. A maioria veio de povoados ao norte de Montero, em busca de oportunidades de trabalho e acesso a serviços básicos. O terreno ocupado está a menos de 500 metros da Universidad Autónoma Gabriel René Moreno, onde estudam quase todos os jovens da ocupação com mais de 18 anos. A filha de Máximo Flores, dirigente político de Guadalupe II, por exemplo, formou-se em Comunicação Social em 2017.

Para as crianças e adolescentes, há uma escola de ensino fundamental e médio construída pela própria comunidade. O Estado não a reconhece como parte da rede pública de ensino, mas cede material escolar e professores de outros colégios de Montero.

"Alguns professores são da oposição", comenta Flores, despreocupado. A organização política e a luta pelo socialismo estão presentes em tal medida na comunidade que os jovens se tornam menos vulneráveis a influências externas -- seja na sala de aula ou nos aparelhos celulares. 

 


Saída da escola no fim da tarde de sexta-feira, dois dias antes das eleições. (Foto: Daniel Giovanaz)

 

Luta coletiva

Por todo lado, salta aos olhos o respeito dos moradores pela figura de Evo Morales. Na porção oriental do país,  reduto tradicional da direita boliviana, os trabalhadores de Guadalupe II são gratos ao presidente indígena principalmente por mantê-los intocados. Como o terreno pertence ao Estado, somente o Exército poderia tirá-los dali.

Flores diz que foram abertas negociações para regularização dos lotes. Os ocupantes não querem as terras de graça, mas gostariam comprá-las por um preço justo -- "do Estado, que é o dono, e não dos ex-militares".

Situado entre a universidade, a sudoeste, e um hospital público que será inaugurado em novembro, a nordeste, o terreno tornou-se objeto de especulação imobiliária. O preço do metro quadrado mais que dobrou em um ano.

Em Guadalupe II, o trabalho de base não se dá apenas na Casa do Povo, uma espécie de escritório e sala de reuniões que centraliza documentos e fotos da comunidade. Os "Azules del Oriente", braço da juventude do MAS na região, oferecem oficinas de soldagem, fotografia, cursos profissionalizantes, torneios de futebol – não só em época de eleições. A taça leva o nome de Evo Morales, e as traves foram fabricadas pelos próprios moradores.

 


Crianças brincam no campo de futebol da comunidade. (Foto: Daniel Giovanaz)

 

Em uma década de ocupação, a paisagem se tornou irreconhecível. A maioria das casas são feitas de tijolos, e todas têm água e luz elétrica -- algumas, até TV a cabo. Hoje, cada família tem um lote de quatro metros quadrados no cemitério da ocupação para enterrar seus entes queridos.

A novidade que enche os olhos dos moradores são os 50 banheiros ecológicos, construídos quase em frente ao portão do cemitério, para evitar que fezes e urina contaminem o ambiente. Assim como na escola, as mulheres tomaram a frente e foram responsáveis pela construção dos banheiros.

“Há muitas pressões e ameaças”, relata Flores. Há alguns meses, ele se viu obrigado a afastar a secretária da Casa do Povo após descobrir que ela vazava informações de reuniões e documentos internos a especuladores.

Sergio Veizaga, morador que acompanhou a reportagem do Brasil de Fato durante a visita ao bairro, ressalta a origem humilde de Morales, filho de indígenas do povoado de Orinoca, a quase mil quilômetros dali. Em Guadalupe II, a relação de classe social gera mais identificação que a questão étnica ou regional. Se não fosse assim, eles poderiam votar por Óscar Ortiz, opositor nascido em Santa Cruz; ou por Mesa, cujo vice Gustavo Pedraza nasceu no próprio município de Montero.

“Quando veio fazer para o encerramento de campanha, o carro do Mesa percorreu vários bairros de Montero, mas não ousou cruzar a ponte”, ressalta Veizaga. O militante expressa enorme segurança ao falar sobre a expectativa para as eleições deste domingo: “Evo vai ganhar e vamos seguir aprofundando, juntos, as transformações da Bolívia. Já sabemos que o capitalismo é insustentável, tanto para as pessoas como para o ambiente. Por isso, estamos caminhando juntos rumo ao socialismo”.

 


Moradores percorrem o bairro enquanto mostram as conquistas obtidas desde 2009. (Foto: Daniel Giovanaz)

 

Cerca de cem jovens membros dos Azules del Oriente atuam nas proximidades de Guadalupe II. Seus rostos e nomes são conhecidos pelos moradores, e é fácil perceber que o trabalho é de longo prazo. Nos arredores de Montero e Santa Cruz, são mais de 400 militantes, atuando em comunidades ainda mais distantes dos grandes centros.

Veizaga e Flores têm algo em comum, além de morarem na mesma comunidade: há pouco mais de uma década, foram tentar a sorte na Argentina – o primeiro em Mendoza, próximo a Santiago do Chile, e o segundo em Ushuaia, na Patagônia. Na época, compensava receber salário em pesos argentinos e convertê-los para bolivianos, a moeda local. Agora, o jogo virou. “Mais um motivo para votarmos contra o neoliberalismo. Olha o que [o presidente Mauricio] Macri está fazendo, olha o que está acontecendo no Brasil. Com Evo, estamos crescendo e ganhando espaço”, diz o dirigente.

Sobre os próximos desafios da ocupação, para além da regularização dos lotes, ele diz que tem o planos de instalar uma rádio comunitária. “Já conseguimos a concessão, mas falta dinheiro para os equipamentos. Vamos dar um jeito”, garante Flores, enquanto olha o ginásio coberto, palco de grandes disputas futebolísticas.

Em Guadalupe II, não se fala só em política: ela está em tudo. A eleição, para eles, é um momento de confirmação da vontade popular, e não de disputa da hegemonia. Por isso, Veizaga tem tanta segurança na vitória.

Edição: Guilherme Henrique