Coluna

O julgamento do STF sobre a presunção da inocência

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Plenário do STF no início do julgamento sobre prisão em segunda instância
Plenário do STF no início do julgamento sobre prisão em segunda instância - Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Questão se reveste de caráter decisivo para a democracia brasileira

*Martonio Mont'Alverne

O Supremo Tribunal Federal (STF) sinaliza que dá início à recuperação da Constituição e de seu sentido político. Não é pouco diante do que tem ocorrido no país nos últimos cinco anos.

No dia 23, que foi retomado o julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade nº 43, 44 e 54, cuja votação foi interrompida após o voto do ministro Ricardo Lewandowski e deverá ser retomada no começo de novembro. O tema central é a aplicação, ou não, de sentença condenatória antes do trânsito em julgado da sentença.

Primeiramente, não há como escapar de uma avaliação estritamente normativista. Surpreende que a mais elevada Corte tenha debatido, por tanto tempo, um assunto que já é claro na expressão inequívoca da Constituição Federal. Se no art. 5º, LVII - dos direitos e garantias fundamentais - a Constituição impõe que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, no art. 60, par. 4º, IV a mesma Constituição impôs aos poderes constituídos qualquer limitação tendente a abolir os direitos e garantias individuais.

Ora, se “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, é um preceito inscrito no rol dos direitos e garantias individuais; se o Congresso Nacional não pode sequer relativizar tal situação, a óbvia conclusão a que se chega é que o Supremo Tribunal Federal também não tem como proferir julgamento “tendente a abolir” o que o poder constituinte transformou em cláusula eterna do texto constitucional.

Não se pode esquecer que devido a esta espera, uma terrível pressão foi desencadeada pela mídia mainstream do Brasil, por partidos políticos, por associações de classe e movimentos sociais “apartidários (porém pagos e incentivados por partidos políticos, como DEM, PMDB e PSDB) e, sobretudo, pela chamada força tarefa da operação Lava Jato, no que se incluem ainda partes do Ministério Público Federal e Poder Judiciário.

Tudo em razão de um único personagem: o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a possibilidade de que este fosse o único beneficiado, e não a totalidade da sociedade brasileira, que se sujeita à mesma Constituição. A pressão foi no sentido de ignorar esta sistemática constitucional, e declarar constitucional o início do cumprimento da pena após o julgamento da segunda instância.

Foi a vigência deste entendimento que autorizou a prisão do ex-presidente Lula em abril de 2018.

Sejamos sinceros: a discussão de caráter eminentemente constitucionalista foi ofuscada por uma razão pessoal, na medida em que sempre permaneceu no horizonte a figura do ex-presidente; especialmente quando foi negado que o cerne da questão seria sua prisão, ou não, e posteriormente, a eventual soltura. Que o Supremo Tribunal Federal tenha caído em tal armadilha já é um indicativo da chamada “disfunção” de nosso sistema constitucional e político.

O STF foi requisitado para sua função principal: exercer a guarda da Constituição, no caso relativamente ao artigo 283 do Código de Processo Penal. Autorizado pela Lei nº 9.868/1999, a Corte deverá aplicar a interpretação conforme a Constituição. Não há razão para grande celeuma: este recurso interpretativo não permite que se crie realidades legais fora da Constituição. Dizer o sentido conforme a Constituição de qualquer dispositivo infraconstitucional, no Brasil, equivale à compreensão de que a natureza do poder constituinte brasileiro imprimiu o caráter garantista à Constituição. Não cabe ao poder constituído relativizar o que não o foi pelo poder originário.

O julgamento das ADCs em pauta não significa mais um julgamento. Ante o atual quadro político brasileiro, as concretas ameaças de retrocessos em relação aos direitos e garantias fundamentais, que têm se materializado na disputa política sobre o “pacote anticrime”, por exemplo, são elementos objetivos reveladores de um grau inusitado de instrumentos legais que objetivam deteriorar o sistema garantista constitucional brasileiro.

Por isso este julgamento se reveste de caráter decisivo para a democracia brasileira. O STF não decidirá somente sobre a possibilidade da prisão em segunda instância, antes do trânsito em julgado de uma sentença condenatória. Na verdade, espera-se que o Tribunal também decida sem receio contra o “terror das ruas”, elemento perversamente construído para desorganizar uma ordem constitucional e seu sentido democrático.

Os três votos a favor da Constituição até agora proferidos no plenário do STF indicam a maturidade constitucional de seus autores: mais que isso, sua disposição em enfrentar forças políticas que, na verdade, jamais toleraram nossa Constituição Federal.

* Martonio Mont’Alverne Barreto Lima é advogado, professor titular da Universidade de Fortaleza e procurador do município de Fortaleza.

Edição: João Paulo Soares