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O Estado é bom negócio

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"Reduzir o Estado significa problemas muito sérios para a maior parte da população brasileira"
"Reduzir o Estado significa problemas muito sérios para a maior parte da população brasileira" - Charge: Leandro Hals
Quando tudo for privado, seremos privados de tudo

Há uma frase muito emblemática, que tem circulado nas redes sociais e em cartazes usados em diversas manifestações públicas, que eu gostaria de recuperar aqui: “Quando tudo for privado, seremos privados de tudo”. Esta frase resume bem o que eu pretendo abordar nesta breve reflexão.

Muitos liberais novos, defensores do Estado mínimo e da privatização de tudo, argumentam que o peso do Estado para os indivíduos seria maior do que o retorno recebido por eles, do Estado, e que, com o valor dos tributos pagos, as pessoas conseguiriam, no mercado, serviços melhores. Isso vem sendo afirmado por representantes daquelas entidades que promovem campanhas contra os tributos, como a insistente campanha anual do “Dia da Liberdade de Impostos”.

Para refutar definitivamente esta falácia, nada melhor do que os números. A metade da população brasileira, ou seja, 104 milhões de pessoas, vive com renda percapita média de 413,00 reais por mês 1 (IBGE 2019). Uma família de quatro pessoas, portanto, composta por dois adultos e duas crianças, terá renda familiar média de 1.652,00 reais por mês.

A carga tributária brasileira, em 2017, fechou em 32,43% do PIB. Na média, portanto, esta família estaria sendo tributada em 536,00 reais por mês, restando a ela uma renda mensal de 1.116,25 reais. Olhando os números dessa forma, a tributação parece ser realmente muito pesada para esta família. Se pensarmos ainda que o sistema tributário brasileiro é bastante regressivo e afeta muito mais as rendas mais baixas, o valor total de tributos pagos por esta família pode ser ainda maior, podendo chegar em torno de 660,00 reais, considerando que a carga represente 40% da sua renda.

Voltando à afirmação destes liberais novos, sem pagar estes tributos, estes 536,00 reais ou os 660,00 reais seriam suficientes para esta família conseguir matricular seus dois filhos numa escola particular e, além disso, contratar um bom plano de saúde para quatro pessoas e garantir ainda a aposentadoria dos dois adultos, para quando não tivessem mais condições para trabalhar. Será que isso seria possível? Evidente que não. Só a mensalidade média de uma escola particular é de aproximadamente 1.000,00 reais por aluno, o que já supera bastante o valor total dos tributos pagos.

Além disso, as coisas públicas financiadas com os tributos não se resumem a educação, saúde e previdência. Retirando o Estado da vida das pessoas, como eles sugerem, com este valor de 660,00 reais por mês, muitos outros serviços deveriam também ser obtidos no mercado, como saneamento básico, pavimentação, segurança, iluminação pública, serviços judiciais, infraestrutura, sistema carcerário, defesa civil, assistência social, combate à incêndios, etc., etc., etc...

Avançando um pouco mais nessa análise, podemos até estimar, pelos custos públicos, e não a preços de mercado, o valor recebido por esta família em alguns destes serviços públicos essenciais, que estão disponíveis a todos.

A média de investimento na educação pública é de aproximadamente 310,00 2 reais por aluno por mês (81% das crianças em idade escolar estudam em escolas públicas). Para duas crianças, portanto, esta família receberia cerca de 610,00 reais por mês. Se vierem a utilizar alguma vaga no ensino superior público, de forma direta ou via bolsas de estudo (única alternativa para famílias de baixa renda), este valor passa para aproximadamente 1.250,00 reais por mês por estudante.

Na saúde pública, o custo estimado por pessoa é de 3,48 reais por dia (cerca de 75% das pessoas só tem o SUS como plano de saúde), o que dá aproximadamente 104,40 3 reais por mês. Para quatro pessoas, portanto, o Estado investe aproximadamente 424,00 por mês.

Vejam que somente em dois serviços públicos, educação e saúde, que são essenciais para famílias de baixa renda, o retorno direto promovido pelo Estado é quase o dobro do valor dos tributos pagos.

Como retorno dos tributos, temos ainda a garantia de aposentadoria após determinada idade, tempo de contribuição ou em uma eventual situação de incapacidade para o trabalho. Embora seja mais difícil estimar o valor recebido no tempo presente por este direito, poderíamos considerar, de forma muito simplista, o valor de uma aposentadoria hipotética de um salário mínimo, que seria paga durante 20 anos 4, por exemplo. Este valor representaria, no momento presente cerca de 571,00 reais por mês por pessoa.

Portanto, quem defende o Estado mínimo, fala de algum lugar diferente e não de onde está a maioria da população brasileira. Talvez o lugar de sua fala seja a dos 1% mais ricos da população que têm renda média superior 16.000,00 por mês, ou, quem sabe, dos 0,01%, cuja renda média é de quase 300.000,00 mensais.

Pelo menos para a metade mais pobre da população brasileira, os serviços públicos são essenciais para a própria sobrevivência das famílias. Para eles, não há como se obter no mercado os serviços que o Estado disponibiliza pelo valor dos tributos que são pagos. Ainda que consideremos que esta renda percapita não represente a renda de todos, já que, sendo média, haveria pessoas com rendas superiores neste grupo, é razoável supor que mais da metade dessas 104 milhões de pessoas têm rendas inferiores a este valor de 413,00 reais por mês.

Se, como vimos, reduzir o Estado significa problemas muito sérios para a maior parte da população brasileira, para o setor privado, que retira seus lucros das necessidades das pessoas, esta medida representa o que eles chamam de “melhoria do ambiente de negócios”.

A necessidade da presença do Estado na vida da maior parte da população, por outro lado, exige uma profunda e urgente reforma na estrutura do Sistema Tributário, não para reduzir tributos, como alguns defendem, mas para deslocar uma parte significativa da carga que incide sobre o consumo, e que afeta mais os mais pobres, para tributos que incidam sobre a renda e o patrimônio, que afetaria mais os mais ricos. Somente assim, com uma Reforma Tributária Solidária 5, é que teremos um sistema fiscal mais justo e capaz de promover, de forma mais efetiva, o bem-estar social.

 

1 https://www.istoedinheiro.com.br/metade-dos-brasileiros-vive-com-r-413-mensais-desigualdade-atinge-nivel-recorde/ 

2 https://novaescola.org.br/conteudo/11890/quanto-custa-um-aluno-no-brasil

3 https://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=27961:2018-11-12-17-57-13&catid=3

4 Considerando 1.000, reais por mês, por 20 anos, daria um montante de 240.000,00. Este valor que seria recebido no futuro, se fosse dividido por 35 anos, daria agora um valor investido de 571,00 reais por pessoa.

5 Reforma Tributária Solidária é uma proposta desenvolvida pela ANFIP e pela FENAFISCO, com participação de várias entidades, dentre as quais o Instituto Justiça Fiscal, que serviu de base para a apresentação, pelos partidos de oposição, de Emenda substitutiva à PEC 45/2019. http://reformatributariasolidaria.com.br/ 

Edição: Marcelo Ferreira