Privatização

Projeto de Lei reedita MP que pode privatizar Companhias de Água e Esgoto

PL do senador Tasso Jereissati reproduz texto da Medida Provisória nº 868/2018 que caducou antes da aprovação no Senado

Brasil de Fato | Fortaleza (CE) |
O PL 3261/2019, além de acabar com a prioridade dos contratos de programa, estabelece a obrigatoriedade de licitação
O PL 3261/2019, além de acabar com a prioridade dos contratos de programa, estabelece a obrigatoriedade de licitação - Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil

Aprovado em regime de urgência no Senado Federal, o Projeto de Lei nº 3261/2019 segue em tramitação na Câmara dos Deputados. A proposta é atualizar o marco legal do saneamento básico no Brasil e tratar dos prazos para a disposição final ambientalmente adequada de rejeitos. O PL é de autoria do senador Tasso Jereissati e basicamente reproduz o texto da Medida Provisória nº 868/2018, da qual foi relator e que caducou três dias antes da aprovação no Senado.

Um dos pontos centrais do PL 3261/2019 é a possibilidade de titularidade dos serviços de abastecimento de água ser da Agência Nacional de Águas (ANA) do Governo Federal, que ficaria responsável por regular a cobrança de tarifas e estabelecimento de subsídios para a população de baixa renda. Com isso, os contratos de saneamento seriam firmados através de licitação, favorecendo criação de Parcerias Público-Privadas (PPPs).

Embora a Constituição federal de 1988 atribua a União, estados e municípios competência comum na promoção de melhorias nas condições de saneamento básico (art. 23, inc. IX), são os municípios brasileiros os titulares desses serviços, que incluem abastecimento de água potável, tratamento de esgoto, gestão de resíduos e drenagem das águas pluviais.

Estes serviços podem ser fornecidos por meio de diferentes situações. Uma delas é através de autarquia ou empresa municipal com a utilização de recursos públicos, de Contratos de Concessão (Comum ou PPP) que geralmente ocorrem por licitação e com prazo temporário, e de “Contratos de Programa”, figura jurídica semelhante ao Contrato de Concessão, mas que possui dois entes públicos como participantes, sendo dispensada a licitação. Atualmente, a iniciativa privada já dispõe de dois instrumentos legais para atuar no setor (Concessões e PPPs).

Cerca de 71% dos Municípios brasileiros possuem contratos de programa com os respectivos Estados da Federação em relação a tratamento e abastecimento de água, enquanto apenas 2% fizeram licitações para concessões plenas e 27% fornecem esses serviços de forma autônoma. O PL 3261/2019, além de acabar com a prioridade dos contratos de programa, estabelece a obrigatoriedade de licitação, ou seja, se houver apenas uma empresa concorrente ela já pode ser considerada ganhadora do certame.

Uma das maiores críticas ao projeto de lei é de que ao transformar serviços que devem ser considerados direitos humanos básicos e universais – como o acesso à água potável, a destinação correta de resíduos e o tratamento de esgoto de modo a preservar o meio ambiente – em passivos que devam gerar lucros e dividendos, empresas privadas apenas terão interesse em atuar em regiões lucrativas, deixando regiões não rentáveis de fora da cobertura. O modelo atual prevê o “subsídio cruzado”, onde as companhias estaduais aplicam os recursos obtidos em operações superavitárias, normalmente capitais e grandes centros urbanos, em cidades menores e mais isoladas.

Em vista disso, uma das emendas aprovadas no Senado estabelece que as licitações sejam realizadas em blocos, definidos pelos Estados, com cidades com diferentes níveis de rentabilidade de forma a garantir a prestação dos serviços (art 6º, inc. I). Outra maneira é a dispensa de licitação em situações em que não haja empresas interessadas e quando a privatização da companhia estadual de saneamento for inviável (art. 6º, § 2º).

Para Marcos Helano Fernandes Montenegro, coordenador-geral do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS), “a licitação em blocos é uma invenção para tentar disfarçar a destruição do subsídio cruzado. O projeto [do senador Tasso Jereissati] não responde ao princípio da sustentabilidade econômica dos serviços entre as diferentes cidades e que hoje, mal ou bem, as companhias estaduais conseguem gerenciar. Além disso, fere a Constituição de 88, que prevê três formas de cooperação: entre a região metropolitana, a zona urbana e a microrregião. E, no nosso entendimento, ainda fere profundamente a autonomia municipal”.

Uma das críticas refere-se à vinculação das empresas estaduais de saneamento ao rombo fiscal dos estados. Desde o governo anterior, propostas foram feitas no sentido de se “trocar” a companhia de saneamento pelo rombo fiscal estadual, através de privatizações como condição imposta pelo governo federal para pacotes de socorro às crises financeiras, apesar do poder concedente ser municipal ou compartilhado. O Rio de Janeiro foi um dos Estados em que a privatização da companhia estadual de saneamento (Cedae) foi aprovada.

Em nota, a Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (ABES) afirma que “o discurso que vem sendo utilizado pelos defensores desta premissa prega pela universalização do saneamento e a preocupação com a população. Nada mais ilusório. O fato é que não se está discutindo uma proposta para melhorar a prestação de serviços de saneamento aos cidadãos, levar mais água tratada, coletar e tratar mais esgoto; o objetivo é pura e simplesmente o equacionamento fiscal dos estados. E as empresas estaduais passaram a ser apenas uma ‘moeda de troca’”.

Outra discussão que se impõe é se os operadores privados que realizam seus lucros através da venda da água estariam dispostos a investir em estímulos de preservação de mananciais e hábitos de consumo sustentáveis. Em um país tão desigual, segundo dados recentes do IBGE, e exposto às mudanças climáticas que geram insegurança hídrica em várias regiões segundo dados apontados em relatório da própria ANA em 2016, há que se considerar adaptações para um melhor uso dos recursos hídricos e para economizar água.

Situação do saneamento no mundo

Um mapeamento realizado por onze organizações europeias registrou cerca de 235 remunicipalizações dos serviços de tratamento e abastecimento de água no mundo entre 2000 e 2017, alcançando 100 milhões de pessoas e indicando uma disposição crescente. Problemas como altas tarifas, ineficiência e falta de investimentos e transparência foram determinantes para a volta desses serviços ao poder público.

Se se considerar outros serviços, foram 835 os casos de reestatização, através de interrupção de contratos de concessão, reversão de privatizações e resgate da gestão pública após o término do período de concessão. Dentre os serviços estão o fornecimento de energia elétrica, coleta de lixo, serviços sociais, educação, saúde e transporte, a maioria ocorrendo a partir de 2009, com 693 casos.

País pioneiro na privatização de seus sistemas de distribuição de água e sede das duas maiores empresas privadas atuantes no setor (Suez e Veolia), a França é a que mais reestatiza esses serviços, com 106 casos. Em entrevista ao Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS), o diretor geral da companhia pública de água de Paris, Benjamin Gestin, aponta que houve redução de 8% na tarifa desde a municipalização, chegando a ficar 20% mais barata após 10 anos em relação às praticadas por empresas privadas, o que garante o direito à água mesmo para as famílias mais modestas.

Segundo o gestor, os motivos que levaram à reestatização foi a perda de controle dos preços cobrados e a pressão popular, a qual considera ser a água um bem comum e essencial, não podendo ser gerida pelo setor privado. Um dos exemplos que demonstram o caso brasileiro estar na contramão da tendência mundial.

Edição: Monyse Ravena