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Relações perigosas de Bolsonaro vieram mais uma vez à tona
Relações perigosas de Bolsonaro vieram mais uma vez à tona - Agência Brasil
Está evidenciada a relação do presidente com milícias

Ainda que seja difícil afirmar que Bolsonaro tenha relação direta com a morte de Marielle Franco, a semana que começou com o anúncio de um “cometa” contra o bolsonarismo terminou com mais uma evidência da relação do presidente com figuras da milícia. Seria esse o motivo para não termos respostas definitivas sobre o crime há 600 dias e haver tantas interferências e contaminações no processo? Da agilidade do Ministério Público para desmentir a denúncia até o pedido por um novo AI-5, o caos informacional da semana teve cara de uma grande operação abafa. Vamos tentar entender.  

1. As ligações perigosas. Na semana que começou com Queiroz anunciando, através de um áudio, que havia algo do tamanho de um cometa prestes a ser enterrado no bolsonarismo, o Jornal Nacional revelou que, horas antes da execução de Marielle Franco, os suspeitos reuniram-se no condomínio em que mora Jair Bolsonaro. Segundo um porteiro, um deles teria pedido autorização para se dirigir à casa do presidente. Em seguida, Bolsonaro reagiu com um vídeo em que ataca a Rede Globo e o governador do Rio, Wilson Witzel, como informante da reportagem. Além disso, colocou Sérgio Moro para tratar do caso, claramente extrapolando suas funções ministeriais e contradizendo o próprio ministro que dizia que não seria “advogado do governo”.   

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O que aconteceu depois só ilustra a tese de Raquel Dodge de que as investigações no Rio estão estranhamente contaminadas, por uma “relação de promiscuidade” entre as forças de segurança e os milicianos que impede que se chegue aos mandantes do crime. O MP não foi citado na justificativa de Dodge, mas da reportagem do Jornal Nacional até o desmentido por parte do Ministério Público do Rio de Janeiro não se passaram mais de 20 horas. Curiosamente, segundo a promotora Carmen Carvalho, o MP não havia recolhido a planilha de entrada no condomínio onde vivia Lessa porque não havia registro de entrada para a casa 65. O crime ocorreu em março de 2018, Lessa foi preso em março deste ano e o MP não tinha a planilha. Além disso, a perícia nos áudios dos interfones do condomínio só foi feita um dia após a divulgação do caso pelo Jornal Nacional e ficou pronta em cerca de 2 horas e 25 minutos. A perícia também não levou em consideração o fato de que os áudios poderiam ter sido adulterados, afinal de contas, antes mesmo da PGR, Carlos Bolsonaro, também morador do condomínio, exibia as mensagens nas suas redes sociais. Por fim, um pequeno detalhe: Carmen Carvalho é militante bolsonarista do nível falar “esquerdopata” e também pediu o arquivamento da investigação contra policiais do Bope na ocultação do corpo de Amarildo.

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E, claro, no final sobrou para o porteiro que, segundo Moro, pode ter mentido ou ter sido induzido a mentir e que pode ser enquadrado nos crimes de obstrução à Justiça, falso testemunho ou denunciação caluniosa. Até a Advocacia Geral da União entrou em campo para investigar agentes públicos que teriam vazado a informação. O El País pergunta: por que um funcionário tão antigo do condomínio, conhecendo o caso e as figuras citadas, mentiria colocando a própria vida em risco?

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2. Leão ferido. Se aparentemente era uma bomba contra Bolsonaro, o episódio do porteiro e do vídeo veio a calhar à imagem do presidente perseguido injustamente pela Globo - enquanto está “ralando longe da família” - igualzinho ao vídeo das hienas e justamente poucos dias depois do reaparecimento do 04 da família, o ex-PM e ex-assessor de Flavio Bolsonaro, Fabricio Queiroz. Para Luis Nassif, os áudios em que Queiroz reclama que o Ministério Público tem o suficiente para atingi-los e que ninguém está agindo, seriam um recado vazado pelo próprio Queiroz para avisar que não cairá sozinho. O fato é que Queiroz incomoda muito mais do que a “rachadinha” de salários entre servidores e a família Bolsonaro, possivelmente ele seja elo entre a família e os milicianos que atuam em Rio das Pedras, justamente os mesmos milicianos suspeitos de assassinarem Marielle Franco. Como alerta Leonardo Sakamoto, provavelmente Queiroz assumiu que fazia algo ilegal – desviar recurso público do salário dos funcionários do gabinete – para afastar denúncias de algo mais ilegal ainda: destinar parte desse recurso público para milicianos que operam no Rio. O jornalista Igor Mello cita nesta postagem no Twitter as diversas relações entre a família e o Escritório do Crime, incluindo nomeações de assessores e condecorações na Assembleia do Rio. O PSOL defende que a investigação não seja federalizada e teme que o STF atrase ou interrompa as investigações. Já as Frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo convocaram um ato para o próximo dia 5 com o mote “Basta de Bolsonaro! Justiça para Marielle”.

3. A fábula das hienas. Talvez porque já soubesse o que viria pela frente, talvez porque quisesse tirar o foco da volta de Queiroz, o fato é que Bolsonaro e família postaram um vídeo em que o presidente se via como um leão enfrentando hienas, como o comunismo, o STF, o PSOL, o PSL e basicamente toda a humanidade, menos um tal “conservador patriota” que deveria vir em seu socorro. Para variar, surtiu efeito. Dias Toffoli - aquele do pacto e da live com Bolsonaro no Facebook, lembra? - foi atacado por manifestantes na saída do STF, assim como a Rede Globo em Brasília. Se a estratégia funciona para manter a sua tropa animada, por outro, mais uma vez ela gasta a paciência de quem ocupa as outras instituições, por mais que o episódio tenha sido vendido como mais uma travessura do pequeno Carluxo. Além disso, com ou sem vídeo, Bolsonaro, que estava em artilharia apenas contra o seu próprio partido, resolveu voltar a atacar a Rede Globo e o governador do Rio. Porém, o problema de declarar guerra a tudo e todos é de que os atacados podem aceitar e contra-atacar. Então, quantos flancos de combate simultâneos, Bolsonaro e família dão conta de enfrentar? E de vencer? No site Divergentes, Rudolfo Lagos avalia que os olavistas, assustados com as mudanças na América do Sul, apostam que só terão sucesso no Brasil se partirem já para o confronto. Eduardo Bolsonaro parece estar cumprindo a ideia à risca: por duas vezes nesta semana defendeu a instituição de um AI-5 e repetiu a cantilena fascista de que um país forte é feito por homens fortes. O ex-presidente do PSL, Gustavo Bebbiano, acredita que uma tentativa de ruptura institucional, um golpe, está no horizonte da família. Já Igor Gielow, na Folha, chama a atenção que sempre que está nas cordas, a família apela para saídas autoritárias, porém o “problema é que, de factoide em factoide, os limites podem chegar a pontos de ruptura. Uma provocação aceita aqui, um erro de cálculo ali, e algo sério pode acontecer - esse é o risco da escalada autoritária do clã Bolsonaro”. Para variar, diante da rejeição pública, Bolsonaro deu aquela puxadinha de orelha de leve, Eduardo disse que não era bem assim, mas a oposição apresentou notícia-crime ao STF afirmando que a conduta do deputado configura incitação e apologia ao crime. A justificativa de Eduardo de que se refere a um cenário idêntico ao Chile e de radicalização da esquerda obviamente não se sustenta. Na Folha, Mônica Bergamo levanta duas hipóteses para a declaração: ou estaria se antecipando a saída de Lula ou a alguma denúncia ainda mais grave envolvendo o clã.

4. Cada vez menos Estado. Ameaça autoritária? Uso das instituições para proteger a própria família e perseguir desafetos? Se você pensa que o mercado financeiro está preocupado, pode tirar seu cavalo da chuva. O Nexo elencou três índices do mercado que podem ser utilizados para medir a confiança e otimismo com o governo Bolsonaro. Todos estão elevados ou crescendo. E, depois da reforma da Previdência, os executivos de bancos estão esfregando as mãos: de acordo com reportagem da agência Bloomberg, banqueiros de instituições como Itaú Unibanco e BTG Pactual agora se empenham na defesa da reforma administrativa, que visa reduzir os custos do funcionalismo público brasileiro, com mudanças nas políticas de remuneração, métricas de produtividade e demissão, entre outras. A matéria é muito interessante porque, a uma certa altura, demonstra que o mercado financeiro está pouco preocupado com as “polêmicas” envolvendo Bolsonaro: “Num governo muitas vezes envolvido em polêmicas, a aprovação da reforma da Previdência permite uma ?narrativa construtiva em relação à uma agenda positiva do Brasil?, afirmou Octavio de Lazari, presidente do Bradesco”. Interessante observar que, na mesma edição em que revelou a citação ao nome de Bolsonaro na investigação sobre o assassinato de Marielle, o Jornal Nacional fez longa matéria falando sobre a importância de combater os privilégios no serviço público. A reforma administrativa deve estabelecer novas regras para contratação de servidores, reduzir salários iniciais, aumentar o tempo para promoçõe, acabar com a estabilidade para novos servidores e reduzir o número de carreiras, entre outros pontos.

5. Máquinas paradas, braços cruzados. Depois de 52 anos, de atividade, a Ford encerrou nesta quarta (30) a produção na fábrica de Taboão, em São Bernardo do Campo (SP). A decisão de sair do segmento de caminhões na América do Sul havia sido anunciada pela empresa em fevereiro. Cerca de 600 trabalhadores que atuam na linha de montagem serão dispensados. Outros mil funcionários do setor administrativo ainda devem trabalhar até o mês de março do ano que vem, data em que serão realocados em São Paulo. A Rede Brasil Atual fez uma longa matéria explicando o histórico da decisão e as perspectivas para os trabalhadores. Trata-se, de certa forma, de um símbolo da deterioração do emprego formal no Brasil dos últimos anos e que não deve ser revertida tão rapidamente como alardeia o governo. O Valor Econômico fez uma boa reportagem mostrando a realidade por trás dos números sobre a recente geração de empregos (aqui um link alternativo para a matéria): das 2,4 milhões de vagas criadas entre o segundo trimestre do ano passado e igual período deste ano, 37,2%, foram ocupadas por pessoas que trabalham menos do que gostariam. Os subocupados - pessoas que trabalharam menos de 40 horas na semana e gostariam de trabalhar mais - somavam 7,4 milhões no segundo trimestre deste ano, três milhões a mais do que no mesmo período de 2014, antes de a crise chegar com força ao mercado de trabalho. O rendimento médio destes trabalhadores é abaixo do salário mínimo.

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6. Petróleo no litoral. Em meio ao caos informacional da semana, o vazamento de petróleo no litoral do nordeste saiu do foco no noticiário nacional, mas continua provocando estragos e ainda não tem uma explicação. Duas informações que circularam merecem ser esclarecidas. A primeira delas diz respeito a uma suposta mancha gigante de óleo identificada a partir de imagens de satélite por um laboratório da Ufal. Segundo a Marinha e o Ibama, não se trata de óleo e tudo indica que pode ser algo como uma nuvem ou algum fenômeno oceanográfico que provocou a mancha na imagem do satélite. A segunda informação, decorrente da primeira, é que o vazamento de óleo poderia ter vindo do pré-sal. Essa informação circulou com força na última semana. De oficial, um diretor do Ibama afirmou em audiência na Câmara que não descarta essa possibilidade, mas é importante deixar claro que ele disse isso em resposta a questionamentos de parlamentares, no sentido de que, como técnico, não pode descartar essa possibilidade. A Petrobras também afirmou que biomarcadores das amostras de óleo recolhidas não possuem características compatíveis com os óleos provenientes de reservas do pré-sal. A grande questão aqui é que o governo, além de ter demorado para agir, contribui para a desinformação sobre as causas do vazamento. Checagem da agência Aos Fatos mostrou que integrantes do primeiro escalão vêm recorrendo a informações falsas para minimizar o tamanho da tragédia ambiental. A mesma agência traz um bom resumo do que se sabe até agora sobre o vazamento. O governo também atrapalha em outras frentes. Reportagem do UOL mostra como o corte de recursos das universidades afetou o trabalho de pesquisadores, que bancaram despesas por conta própria. O mesmo teria acontecido com especialistas em óleo no Ibama, que se deslocaram para o Nordeste por iniciativa própria na última semana para contribuir com as soluções, a despeito da falta de convocação do Ministério do Meio Ambiente. Para que não se perca de vista a magnitude desta tragédia, vale ler esta reportagem do El País: especialistas afirmam que, num cenário pessimista, os componentes químicos do petróleo continuem circulando pela corrente marítima mesmo que o piche seja retirado das praias, estendendo os danos por décadas.

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7. Ponto Final: nossas recomendações de leitura

  • Ainda antes do estouro da polêmica da semana, Marcos Nobre deu uma entrevista ao jornal O Globo em que reforça a ideia de que o foco de Bolsonaro não é governar, mas manter consolidado o apoio de um terço do eleitorado. “Bolsonaro se tornou o primeiro presidente que governa para só um terço do Brasil”, diz o filósofo. Para Nobre, Bolsonaro tem um objetivo eleitoral que não inclui, agora, conquistar a maioria, o que o exime de governar. “Todo mundo acha que a estratégia do Bolsonaro é insustentável, que a economia não vai andar, e por aí vai. E quem garante que ele perde em 2022?”, questiona.
  • O que aconteceu com o Brasil um ano depois da eleição de Jair Bolsonaro foi a questão da agência alemã DW para diversos analistas. A violência policial e os ataques aos direitos humanos aumentaram, a polarização política aparentemente diminuiu, mas o governo radicaliza o seu discurso na medida em que perde popularidade. Já a esquerda entrou em colapso, “não consegue lidar com seu luto e passar para uma nova fase”, como avalia o filósofo Vladimir Safatle.
  • Procurador da República que ficou famoso com denúncias de corrupção no governo FHC, Luiz Francisco de Souza deu uma boa entrevista ao UOL nesta semana. Nela, ele critica a parcialidade de Deltan Dallagnol, dizendo que o procurador direcionou o MPF contra o PT, critica a prisão em segunda instância e a ausência de provas nas denúncias contra Lula, embora critique a postura do ex-presidente.
  • No final das contas o que o Chile nos ensina é de que as reformas são eficientes apenas em países com menor desigualdade. Na América Latina, ao contrário, as reformas pró-mercado só acentuam as desigualdades, como comprova o desastre da previdência chilena, na coluna de Celso Barros de Rocha na Folha.
  • No Instituto Humanitas, César Sanson tenta responder por que o ciclo da esquerda e do progressismo foi interrompido na América Latina e por que os neoliberais retornaram e por que agora são fustigados? Para o sociólogo, as populações podem não estar distinguindo mais entre projetos de esquerda e direita, também pelo erro da esquerda de ter se contentado com o pouco que fez, achando que era muito.
  • "Às favas, senhor presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência” foi a declaração de Jarbas Passarinho na reunião em que a ditadura militar decidiu instituir o AI-5. Além das gravações originais da reunião, o podcast Café da Manhã da Folha entrevista o historiador Carlos Fico sobre o contexto e o significado do AI-5 na ditadura e neste momento.

Edição: Daniel Giovanaz